quinta-feira, 11 de março de 2021

AS "OUSADAS" E A MEMÓRIA DAS MULHERES NOS QUADRINHOS

Eu tenho utilizado dois termos com muita frequência em meus artigos sobre mulheres nos quadrinhos: "lugar de memória" e "lugar de fala". Lugar de memória porque muitos quadrinhos, notadamente aqueles feitos por mulheres, embora não necessariamente apenas por elas, têm trazido histórias de mulheres cuja memória ou foi esquecida ou não é conhecida pelo grande público ou pelo público mais jovem. Esses quadrinhos, a meu ver, são lugares de memória, e possuem uma função muito importante que é a de socializar conhecimento e colocar as mulheres no centro de vários debates, que vão além das pautas feministas.

Lugar de fala, porque por meio de quadrinhos, muitas autoras conseguem expressar suas ideias, seus sentimentos e compartilhar suas angústias. Não invariavelmente, quadrinhos de ficção são baseados em experiências de suas autoras, algumas delas traumáticas, e se tornam espaços nos quais elas compartilham com seus leitores e leitoras sua vivência, tornando os quadrinhos uma porta para o espaço privado. Dependendo do tipo de quadrinho e da interpretação do (a) leitor (a), muitas obras assumem estas duas características.

Neste sentido, eu gostaria de colocar aqui minhas impressões sobre os quadrinhos da francesa Pénélope Bagieu, publicados no Brasil em 2019 (vol. 01) e 2020 (vol.2), pela editora Nemo, “Ousadas: mulheres que só fazem o querem”. Trata-se de uma série de pequenas biografias de mulheres, trinta delas, se eu contei corretamente. Vou apontar aqui os pontos positivos da obra e o que eu não gostei, lembrando que eu estou partindo de um ponto de vista pessoal, mesmo que baseada em algum conhecimento teórico.

O primeiro ponto que eu destacaria aqui é a diversidade que caracterizou a obra, em vários sentidos. Diversidade temporal: mulheres de diversos períodos da história foram biografadas, desde a antiguidade até o século XXI. A autora não obedeceu uma ordem cronológica. Num momento estávamos no século VI no outro no XVII aí voltávamos para a antiguidade clássica. Não havia uma linha temporal estabelecida, o que pode parecer meio caótico para aqueles que são mais metódicos, mas que não atrapalha de forma alguma a leitura, uma vez que cada biografia independe da outra.

Temos ainda a diversidade espacial: Pénélope Bagieu nos leva a uma verdadeira viagem volta ao mundo, passando por todos os continentes. A autora teve muito cuidado em inserir o máximo possível de mulheres representando várias regiões e, também, diversas etnias. Elas são brancas, negras, ameríndias, asiáticas. São mulheres de credos orientação sexual diversos. Acima de tudo, temos na obra uma seleção de mulheres tão humanizadas que é difícil não se sentir próxima de algumas delas. Rainhas, médicas, zoólogas, xamãs, dançarinas, cientistas, exploradoras e donas de casa. 

Pénélope Bagieu fez uma pesquisa cuidadosa ao compor essas biografias. Ela consegue trazer de forma leve e bem-humorada, a vida dessas mulheres, que nem sempre era um mar de rosas. Muitas dessas mulheres sofreram formas de discriminação e violência física ou simbólica, seja pela sua aparência, sua origem social, sua etnia ou por serem diferentes de outras mulheres. Temos personagens autistas, refugiadas, mulheres revolucionárias esposas e mães dedicadas que têm em comum o fato de terem sido ousadas, ou seja, mesmo com todos os obstáculos elas “fizeram o que queriam”.

Uma leitura indicada para mulheres de todas as idades. E não apenas mulheres, homens deveriam ler, também, uma vez que essas personagens maravilhosas em toda a sua diversidade, são universalmente inspiradoras. Para quem quiser conferir, uma dica: eu comprei um box com os dois volumes e achei que ficou bem em conta. 

Agora o que eu não gostei. Embora o conteúdo e a qualidade do material ser muito bom, o formato que a editora escolheu, 24x17, dificulta a leitura. Isso porque a autora utiliza, também, letras cursivas nos quadrinhos, cuja leitura fica difícil e cansativa porque o tamanho da letra fez com que eu, em muitos momentos, ficasse presa a um quadro tentando enxergar o que estava escrito. A opção por um formato maior teria sido melhor para o leitor e aí, seria perfeito.

Por fim, quero abrir um parênteses para dizer que, no Brasil, este tipo de quadrinho biográfico, seguindo a mesma linha de "Ousadas", já vem sendo publicado. Temos, por exemplo, a HQ de Aline Lemos, "artistas brasileiras" (clique aqui para conferir) e "Divas brasileiras", de  Eduardo Ribas e Guilherme  Miorando (mais informações, aqui)


Um comentário:

Adelmo disse...

Ainda não tive a oportunidade de ler, porém o artigo aguçou meu interesse.

Agradeço a indicação.