domingo, 26 de dezembro de 2021

DEVO MORRER POR QUE SOU MULHER? O REI DE PORCELANA (연모) E O NEOCONFUCIONISMO


Baseado no manhwa (história em quadrinhos coreana), “The King’s Affection” (연모), "O Rei de Porcelana" (título em português), é uma série original do Netflix, que teve seus últimos capítulos, 20 no total, exibidos no dia 24 de dezembro, no Brasil. Trata-se de um drama de época sul-coreano, que gira em torno da história de dois gêmeos, Lee Hwi (o menino) e Dam-i (a menina). Filhos do príncipe-herdeiro, as crianças ao nascerem trazem caos para o palácio. Primeiro, porque o nascimento de gêmeos era sinal de mal agouro, segundo, porque de acordo com a doutrina neoconfuncionista, ao dividir o ventre da mãe com uma menina, o menino era considerado um homem fraco. Isso poderia ser tolerado entre os plebeus, mas era uma fraqueza para a nobreza, em especial a família real.

A solução para isso foi matar a menina e todos que tinham conhecimento da sua existência. Ela deve morrer por ser mulher? Essa é a questão que é levantada ao longo de toda a trama. A pequena e indefesa Dam-i deve ser sacrificada para que seu irmão possa ascender ao trono. No entanto, a princesa-herdeira desafia o neconfucionismo e salva a vida da menina que, mais tarde, por uma reviravolta do destino, assume o lugar do irmão mais velho e torna-se rei, durante a Dinastia Joseon, no século XV.

Dam-i  deixa de existir para que Lee Hwi possa continuar existindo e, com isso, garantir sua própria sobrevivência. A menina se torna menino. "O Rei de Porcelana" conta a história de uma donzela guerreira, que precisa esconder seu gênero e viver uma vida que não é sua. A questão dos papeis de gênero perpassa toda a narrativa. Sendo mulher, mas vivendo como homem, Dam-i  mostra que esses papeis são apenas construções. Por mais de uma década ela mantém a farsa e acaba sendo coroada rei, e um rei muito competente. Não lhe falta nada: sabedoria, força, habilidade de luta e carisma.

Imagem do manhwa (2011), capturada em: https://amazonesstory.tistory.com/354


Essa temática, mulheres que se disfarçam de homens, é recorrente em dramas asiáticos, não sendo esse a originalidade da série. No entanto, a forma como a narrativa de desenvolve e os questionamentos que emergem ao longo da trama, fazem de "O Rei de Porcelana" um drama que foge do lugar comum e, no qual, a nossa donzela guerreira apesar da sua trajetória trágica, não se render ou ser subjugada pelo papel masculino que assume. Ao contrário, ela reivindica sua identidade como mulher.

"O Rei de Porcelana" subverte o papel da donzela guerreira, que morre ou é sacrificada ao final da sua trajetória. Nessa história, Lee Hwi morre para que Dam-i  possa viver. O neoconfuncionismo não é apenas criticado, mas desafiado. Ela não deve morrer por ser mulher, essa é a mensagem final do drama. Uma mensagem que dialoga com o presente, num país no qual mulheres e homens ainda são influenciados por valores arcaicos, baseados numa filosofia que sobrevive ancorada no patriarcalismo.

Essa série dramática coloca em cena a questão do gênero de forma a nos levar a refletir sobre o que realmente é ser homem e ser mulher. Vale destacar a atuação de Park Eun-bin, que a protagonista, que interpreta a nossa donzela guerreira. Uma história muito bem orquestrada, uma narrativa cheia de reviravoltas do início ao fim, um elenco magistral, uma bela trilha sonora e uma cenografia de tirar o fôlego fazem de O Rei de Porcelana uma obra ímpar, que vale a pena ser assistida.


sábado, 27 de novembro de 2021

REPRESENTAÇÕES DAS MULHERES NOS QUADRINHOS DE AVENTURA: SHEENA, THE QUEEN OF THE JUNGLE


Saiu esta semana um artigo que eu escrevi, retornando aos quadrinhos estadunidenses dos anos de 1930 e 1940, depois de muito tempo e me arriscando pela primeira vez com adaptações para televisão. Primeira vez mesmo. Foi o primeiro artigo que eu escrevi do gênero e finalmente foi publicado na revista Cult de Cultura: revista interdisciplinar sobre arte sequencial, mídias e cultura pop , no dossiê "Cultura Pop: problematizações". O título do artigo é "Representações das Mulheres nos Quadrinhos de Aventura: Sheena, The Queen Of The Jungle"

Segue o resumo: O presente artigo pretende analisar as adaptações da personagem Sheena, the Queen of the Jungle, criada  em  1937,  como  uma  versão  feminina  de  Tarzan,  para  os  quadrinhos.  Esta  personagem  foi posteriormente adaptada para a televisão e para o cinema, ao longo do século XX e no início do século XXI. Nosso objetivo é, a partir da análise da personagem, identificar representações do feminino e entender até que ponto o corpo objetificado da personagem foi um instrumento de perpetuação da dominação  masculina,  numa  sociedade  patriarcal  e  da  naturalização  dos  papéis  de  gênero.  A personagem e suas adaptações serão analisadas à luz da história, a fim de se identificar mudanças e permanências na forma como ela é representada em contextos distintos. Para tanto, teremos como nossa principal base teórica Teresa Lauretis e Roger Chartier

Caso queira conferir o artigo completo, clique aqui!

terça-feira, 23 de novembro de 2021

O LEVANTE DE BELA CRUZ - DOCUMENTÁRIO

Um das coisas das quais fui privada durante  mais de uma ano de meio de  pandemia foi de poder participar de eventos culturais. Este mês estou rompendo com esse jejum. Ontem pude participar de um evento extremamente gratificante, que foi o pré-lançamento do filme/documentário, 
“O levante de Bela Cruz” , exibido no Espaço Cultural Mauro Almeida, em parceria com o Polo Audio Visual, a Casa de Leitura Lya Maria Müller Botelho e a Secretaria de Cultura. Esporte, Lazer e Turismo de Leopoldina. 

O documentário narra de um episódio corrido em Minas Gerais, em 1833, durante o período regencial. Uma rebelião de escravizados, envolvendo disputas políticas entre fazendeiros, na região de Carrancas, nas fazendas Campo Alegre e Bella Cruz, pertencentes a família Junqueira. No evento de lançamento, estava presente a diretora e produtora do documentário,  Elza Cataldo, cineasta, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Após a exibição do documentário, a diretora e membros da equipe da produção abriram para debate, respondendo perguntas e compartilhando detalhes e impressões sobre a experiência de produzir o documentário.

Eu não vou fazer uma resenha do documentário, mas levantar apenas algunas pontos que me chamaram a atenção. O primeiro é o tema. Como professora, conhecer mais sobre partes da história de Minas é, por si só enriquecedor, mas poder ter acesso a um movimento envolvendo escravos, no período regencial, é ainda mais importante. É um material que, mesmo que não possa ser exibido na sua íntegra, durante uma aula, pode trazer elementos importantes para se discutir o período, indo além do lugar comum.

Trata-se de uma produção que valoriza a a memória coletiva, dando voz a pessoas comuns, que contam a história a partir daquilo que aprenderam por meio da tradição. Nesse sentido, temos um documentário que sabe equilibrar muito bem a pesquisa historiográfica com elementos da memória que ajudam, inclisive, a solidificar uma identidade étnica e mesmo regional.

Abrindo espaço para debates sobre violência, escravismo e política, no século XIX, “O levante de Bela Cruz” também permite um diálogo como presente. Por tudo isso eu recomendo o documentário para professores e para o público geral, como uma forma de conhecer mais nossa história e repensar certos preconceitos e tabus que reproduzimos ao longo dos séculos e que ainda precisam sem rompidos.

O documentária está disponível no site do Polo Áudio Visual e pode ser acessado clicando aqui!


sexta-feira, 1 de outubro de 2021

MONEYPENNY E A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NO UNIVERSO DE JAMES BOND

Sean Connery como James Bond junto com Lois Maxwell como Miss Moneypenny em 'Goldfinger' 

O texto que segue, eu escrevi há alguns anos, para colaborar com o artigo do amigo Octávio Aragão. Hoje, relendo, senti vontade de compartilhar. Então resolvi postar aqui no blog, afinal, demandou esforço e acho que talvez agrade a alguns dos leitores e leitoras do blog.

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James Bond e todo o universo fictício que o cerca surgiram dentro de um contexto histórico impactado, de um lado, pelo horror da Segunda Guerra Mundial, e outro pelas transformações geopolíticas que começavam a desenhar os contornos do que seria a nova ordem mundial, marcada pela Guerra Fria.  Ian Fleming foi perspicaz ao se apropriar de um cenário que mostrava promissor como pano de fundo para uma obra de ficção na qual ele pode ainda utilizar suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial, na Divisão de Inteligência Naval e como jornalista.

Os anos de 1950, no entanto, não podem se resumidos apenas à geopolítica ou à memória da Segunda Guerra. Eles são, também, um período marcado por grande retrocesso nas relações sociais, especialmente no que diz respeito à inserção social da mulher. Durante os anos e guerra, as mulheres conquistaram espaço no mercado de trabalho, ocupando cargos que, até então, eram quase que exclusivamente masculinos. Durante o esforço de guerra as lideranças mundiais tentaram ignorar o gênero dos seus soldados. As britânicas foram convocadas para o exercito, as estadunidenses pilotavam aviões de carga e construíam submarinos, as soviéticas pilotavam tanques de guerra, as francesas tiveram um papel muito importante no movimento de resistência.

Mas as representações das mulheres na Segunda Guerra Mundial foram estereotipadas, principalmente nos anos que se seguiram ao conflito. De um lado elas aparecem como as secretarias ou auxiliares fiéis, muitas vezes austeras ou com ar inocente, quase infantil. Por outro lado são apresentadas, também, como as espiãs pérfidas, que seduzem e desvirtuam os homens. Onde estão as atiradoras de elite, as aviadoras intrépidas, as mulheres que combatiam as trincheiras?

Após a Segunda Guerra os papeis de gênero foram reconfigurados num processo que Susan Faludi (2001) chamou de Backlash, um enorme retrocesso nas relações entre homens e mulheres, que marcou o período pós-guerra As mulheres, que na década de 1940 foram valoradas como profissionais, passaram a ser desqualificadas.  O papel de dona de casa, mãe e esposa foi reforçado, assim como o preconceito contra aquelas que insistiam em seguir uma carreira profissional considerada “não-feminina”.

Não por acaso a Moneypenny de Lois Maxwell aparece usando um uniforme da marinha britânica no filme in You Only Live Twice (1967), reafirmando a presença das mulheres nas formas armadas mas, reforçando seu papel burocrático. Ela é militar, mas não deixa está em campo, ou seja, não deixa de ser apenas uma secretária.

Criada nos anos de 1950, Moneypenny nasceu dentro de um contexto no qual as mulheres deveram servir aos homens e auxiliá-los, mas jamais assumir qualquer protagonismo. Elas podem flertar, mas não devem se manter castas desempenhando sempre o papel da boa moça. As mulheres das décadas de 1950 e 1960, em particular, são constantemente vitimas de uma violência simbólica, reforçada por um discurso no qual as mulheres são levadas a aceitarem como sendo natural a sua condição de inferioridade. 

 
Lois Maxwell, com Money penny em You Only Live Twice

Exercida através de um conjunto de mecanismos de conservação e reprodução das estruturas de domínio, a violência simbólica se perpetua, fazendo parte tanto do universo masculino quanto do feminino. Os dominados, inconsciente e involuntariamente, assimilam os valores e a visão do mundo dos dominantes, o modo de ver, a maneira de valorar. As concepções de fundo são as dos dominantes, mas os dominados ignoram totalmente esse processo deaquisição e partem ingenuamente do princípio de que essas ideias e esses valores são os seus (NOGUEIRA, 2015, 80).

 Segundo Pierre Bourdieu (1998), utiliza-se critério biológico como forma de justificar uma divisão social, baseada numa relação de gênero desisigual, na qual as mulheres são submetidas à dominação masculina. Cabe às mulheres, dentro dessa configuração, um papel de submissão e aceitação da sua condição de inferioridade frente aos homens, seus superiores. Por sua vez, para Joan Scott (1989),  o gênero é uma construção, um universo simbólico a partir do qual definimos a forma como vamos enxergar a nós mesmos(as) e a realidade em que vivemos; um saber, uma percepção sobre as diferenças sexuais, é uma relação de poder que vai muito além da questão biológica (o sexo), alicerçada em hierarquias sociais, valores culturais, em símbolos e significados.

Essas relações de gênero pode ser vistas como socialmente produzidas e reforças, negando às mulheres seu protagonismo em esferas nas quais, supostamente, apenas homens podem adentrar. Talvez por isso cause tanto espanto ao público masculino a possibilidade de uma mulher assumir o lugar do lendário 007 rompendo com o ciclo de dominação.

A ideia de inferioridade feminina está presente no nome da personagem Moneypenny, que pode ser traduzido como algo do tipo “dinheiro em centavos”, algo de baixo valor. Conscientemente ou não, ao construir a personagem, na década de 1950, o autor deu a ela um nome singular que marca sua condição de coadjuvante em uma trama na qual sua participação é pequena e muitas vezes figurativa. Se houve momentos de emporamento a eles se seguiram blacklashs, quando a personagem não se considera capaz de assumir um papel mais ativo na trama e se recolhe, novamente, ao papel de secretária.

REFERÊNCIAS

FALUDI, Susan. Backlash. O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Trad. Mário Fondelli. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

BOURDIEU. Pierre. La domination masculine. Paris - Éditions du Seuil, 1998.

NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. As representações femininas nas Histórias em Quadrinhos norte-americanas: June Tarpé Mills e sua Miss Fury (1941-1952). Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Mestre em História - Universidade Salgado de Oliveira - Niterói, 2015.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica (1989). Disponível em: <http://bit.ly/2yKYNX3>, acesso em 27 mai. 2017.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

GUERRA FRIA EM CHARGES: A GUERRA DA COREIA NAS PÁGINAS DA GAZETA DE LEOPOLDINA

Usei charges do jornal local, a Gazeta de Leopoldina, para trabalhar com questões relacionados ao uso da imagem durante a Guerra Fria, com destaque para a Guerra da Coreia. Confira o resumo:


Nesse trabalho fez-se uma análise do discurso contido no periódico “A Gazeta de Leopoldina”, jornal do município de Leopoldina em Minas Gerais. O período analisado corresponde ao ano de 1951, quando o jornal publicou uma série de charges sobre a Guerra da Coreia, com viés anticomunista. O objetivo é demonstrar como o jornal pode ser utilizado, tanto como fonte de pesquisa, quanto como recurso didático para se estudar determinados períodos da história. Metodologicamente, optou-se pela análise do conteúdo a fim de identificar a orientação ideológica do periódico. Buscou-se conceitualizar a charge, como arte gráfica e meio de expressão, inserindo-a nos campos da política e da ideologia. Em seguida, foram apresentados, exemplos de como ela foi utilizada como forma de propaganda comunista e anticomunista ao longo do século XX. Por fim, partiu-se para o foco principal do estudo, que é a análise das charges publicadas, com a preocupação de se apresentar tanto o contexto histórico geral, quanto efetuar uma análise do conteúdo publicado neste periódico, aliado aos interesses dos grupos aos quais ele atendia”.

 

O texto possuí versão em inglês e espanhol. Para ler o texto na íntegra, clique aqui!


Sobra Revista Cajueiro

A Revista Cajueiro foi criada no âmbito das ações do PLENA - GRUPO DE PESQUISA EM LEITURA, ESCRITA E NARRATIVA: Cultura, Mediação, Apresentação Gráfica, Editoração, Manifestações. Sua missão primordial é a disseminação de pesquisas, ações, políticas, boas práticas, além do debate de ideias sobre a formação de leitores e a cultura da leitura no Brasil, com ênfase na Ciência da Informação.

 

Seu objetivo principal é agregar conhecimento à Ciência da Informação e áreas afins, contextualizando socialmente os conteúdos e também estabelecendo o debate e a aproximação da academia com a sociedade e seus segmentos, as profissões voltadas para a formação do leitor e a produção de leituras.

 

O público-alvo da Revista Cajueiro é formado pelos pesquisadores acadêmicos, docentes, bibliotecários, documentalistas, arquivistas, profissionais da informação, gestores e dirigentes de sistemas e unidades de informação (Bibliotecas, Gibitecas, Arquivos, Pontos de Leitura, Centros Culturais), editores, assim como professores, educadores, terapeutas da leitura, contadores de histórias, e lideranças sociais e políticas vinculadas a disseminação de práticas leitoras e ao fortalecimento da cultura da leitura.

 

Os temas em vista para a publicação na Revista Cajueiro são: Documentação e Gestão da Informação; Formação do Leitor e Cultura da Leitura; História e Cultura Editorial; Leitura Pública e Políticas de Leitura; Mediação de Leitura e Letramento; Narrativa Sequencial Gráfica em análise; Narrativa Sequencial Gráfica em Exposição; Temática Interdisciplinar em Ciência da Informação.

 


terça-feira, 14 de setembro de 2021

TRABALHADORAS INVISÍVEIS: MULHERES QUADRINISTAS E OS SILÊNCIOS DA HISTÓRIA


Produzi esse texto em parceria com a querida amiga Valéria Fernandes da Silva, para o 31º Simpósio Nacional de História da ANPUH. O encontro ocorreu em julho deste ano (2021) e foi publicado  este mês, em formato eletrônico. Nele estamos falando sobre a história de mulheres quadrinistas, cuja memória vem sendo revisitada. Os desafios, os obstáculos que muitas delas encontraram ao longo da profissão, não apenas por serem mulheres mais, também, pelo fato de ser quadrinista nem sempre foi considerada uma atividade digna de status. Segue o resumo do artigo.

Resumo: Quando nos dedicamos a falar das mulheres quadrinistas, normalmente, nos deparamos com grandes silêncios que sugerem que elas não existiam, ou não produziram nada que merecesse figurar nos livros de História. Este tipo de discurso foi produzido e reproduzido ao longo dos anos e reforçada tanto por intelectuais, especializados nos estudos sobre quadrinhos, quanto pelos fãs e os meios de comunicação. Vez ou outra, algumas mulheres conseguiram romper essa barreira, somente para terem sua obra celebrada como exceção ou escrutinada a partir de critérios estabelecidos para validar a obra de autores masculinos. Consideradas excepcionais, elas não podiam servir, portanto, de modelo para as outras mulheres. Dentro das narrativas sobre a História das histórias de quadrinhos, constituiu-se como uma verdade que a profissão é masculina e que as mulheres no Ocidente não seriam nem produtoras, nem consumidoras de quadrinhos. As discriminações e omissões decorrentes do gênero, isto é, dos papéis atribuídos à homens e mulheres em uma dada sociedade historicamente determinada, vem sendo muito estudadas nos últimos anos. Vários estudiosas colocaram abaixo muitas das teorias que, por exemplo, relacionavam a suposta inferioridade biológica e intelectual das mulheres com reação aos homens. Outras demostraram que os papeis sociais outrora naturalizados foram socialmente construídos. O objetivo desse trabalho é abordar, utilizando-se das discussões feministas e do campo dos estudos de gênero, este aspecto da História dos Quadrinhos, mas ir um pouco além, a partir das falas de algumas autoras e sobre elas mesmas, é possível perceber outro fator de exclusão: a carreira de quadrinista não era vista digna de ser perseguido por um artista sério, mas, especialmente, em tempos de crise econômica, ou de guerra, era um trabalho temporário que deveria ser superado tão logo fosse possível. Em nosso trabalho, pretendemos resgatar as falas de mulheres quadrinistas que enfrentaram uma barreira a mais para produzirem seus quadrinhos e como as formas de literatura vistas como populares eram consideradas inferiores e mesmo perniciosas para a juventude até por seus próprios autores. Acreditamos que os quadrinhos sejam não apenas um lugar de fala mas, também, um lugar de memória dessas mulheres e que, a partir de sua trajetória podemos compor um quadro mais amplo no qual temos não apenas a possibilidade de analisar relações de gênero mais de identificar pontos relevantes para a construção de uma história das mulheres nas artes gráficas, um campo que por muito tempo foi monopolizado pelos homens.  

Caso alguém se interesse, clique aqui para ler o texto na íntegra.

Como citar esse texto:

SILVA, Valéria Fernandes da, NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. Trabalhadoras invisíveis: mulheres quadrinistas e os silêncios da História. Anais do 31° Simpósio Nacional de História [livro eletrônico] : história, verdade e tecnologia /organização Márcia Maria Menendes Motta. -- 1. ed. --São Paulo : ANPUH-Brasil, 2021.

sábado, 11 de setembro de 2021

MINHAS IMPRESSÕES SOBRE A HQ "PELE DE HOMEM"


Eu me sinto incomodada quando as pessoas falam de  forma generalizante que os homens não entendem as mulheres. Quais homens? Quais mulheres? 

Começo o meu texto com essa provocação depois de me deliciar com a leitura de "Pele de Homem"(2020), uma HQ aclamada e que tem acumulado não apenas elogios como, também, prêmios. Essa HQ foi roteirizada por Hubert Boulard, ou apenas Hubert, que nos deixou em 2020, aos 49 anos de idade. A ilustração e as cores ficaram a cargo de Zanzim, pseudônimo de Frédéric Leutelier.

Dois homens que souberam colocar em imagem e texto os dilemas enfrentados por uma mulher que vive em uma cidade italiana, no período do renascentista. A HQ levanta diversas questões, que vão dos papeis de gênero impostos a homens e mulheres ao fanatismo religioso e à homoafetividade. 

"Pele de Homem" narra a história de Bianca, uma mulher que recebe como herança de família uma pele de homem. Ao vesti-la ela realmente se torna um homem, com músculos mais forte e sendo inclusive capaz de ter um relacionamento sexual. Bianca quer entender o mundo dos homens, conhecer o seu futuro marido e, por tabela, acaba se descobrindo enquanto mulher. 

Uma HQ que valoriza as mulheres, reivindica respeito e explora o mundo dos homens a partir de uma perspectiva feminina. Pois é, e essa HQ foi escrita por dois homens. Intrigante, não? Talvez não tanto. Há homens plurais, assim como mulheres plurais, por isso sempre evitamos usar o singular para nos referirmos a um e outro. 

Há homens que conseguem se colocar no lugar das mulheres e o fazem muito bem. É o caso dessa HQ que, surpreendentemente nos brinda com uma história de empoderamento, quando uma mulher se torna um homem numa sociedade fechada para as mulheres e a revoluciona. 

Mas se a pele é de homem, a mente, as ações e as ideias são de Bianca, se descobre como mulher. Isso não porque pode se disfarçar de homem, mas porque é capaz de identificar os mecanismos de dominação que colocam as mulheres como seres inferiores e se recusa a se curvar a eles.

Enfim, uma obra muito bonita, tanto pelo traço delicado quando pela profundidade do texto.  Pele de Homem foi publicada em português e é um excelente leitura, tanto para homens quando para mulheres.

domingo, 5 de setembro de 2021

QUADRINHOS E MEMÓRIA: OUVINDO A VOZ DAS MULHERES

Tornei-me admiradora dos quadrinhos de Keum Suk Gendry-Kim quando li “Grama”, primeira HQ da autora sul-coreana a ser publicado no Brasil Agora reafirmo minha admiração após ler "A Espera", HQ publicada recentemente no Brasil. Keum Suk Gendry-Kim trabalha com memórias, a partir das quais cria obras de ficção. Uma ficção que traz uma base sólida, pois é criada a partir de entrevistas e de pesquisas. Umberto Eco afirma que a ficção só se constrói a partir da realidade, nada mais certo e que pode ser comprovado em "A Espera". 

Nesta obra, Keum Suk Gendry-Kim escreve sobre a guerra da Coreia a partir dos relatos de pessoas que foram separadas de suas famílias, no início da década de 1950. A autora faz um levantamento histórico que permite a nós, leigos na história do leste asiático, contextualizarmos o período que vai da Segunda Guerra à guerra da Coreia. Ela faz essa contextualização ao introduzir o testemunho de quem vivenciou esses eventos, por meio de personagens ficcionais baseados em pessoas reais. Uma ficção se que se constrói a partir da memória individual e coletiva.

É uma obra que traz uma fluidez da narrativa que permite ao leitor uma leitura prazerosa, ao mesmo tempo que aborda com sensibilidade tema delicados, como o caso da separação das famílias. Outro ponto que me agrada muito, é o fato da autora se auto representar, na forma de Jina, filha caçula da protagonista, Gwija, uma senhora de 90 anos que foi separada do marido e do filho quando fugiam da guerra. Ao se colocar na narrativa a autora faz o papel de mediadora e cria uma dinâmica única na qual histórias são introduzidas e contadas. 

Ao contrário de “Grama”, quando ela não está apenas pesquisando e colhendo informações e memórias de sobreviventes. Em “A Espera” a autora está também contando a própria história, uma vez que sua mãe também passou pela mesma situação. A autora é parte de uma das famílias que foram separadas e coloca na HQ relatos que colheu no seio familiar. Sendo assim, “A Espera” traz também a escrita de si, uma vez que a autora também vivenciou a questão central, que a separação das famílias e a espera pelo reencontro.

Keum Suk Gendry-Kim dá oportunidade para mulheres contarem a história a partir de um ponto de vista diferente dos homens, assim como fez em Grama. Elas falam do casamento, da maternidade e das dificuldades de ser mulher numa sociedade na qual elas não possuíam espaço para expressão. A obra traz um raio-x do patriarcado coreano, nas décadas de 1940 e 1950, que em muitos pontos se assemelha à realidade das mulheres do Ocidente, que só veio a conhecer mudanças significativas a partir do movimento feminina.

Eu poderia escrever várias páginas sobre essa HQ, e pretendo fazê-lo em breve, mas vou finalizar recomendando fortemente a obra para quem gosta de um quadrinho de ficção que trata de temas sensíveis e que revisita e conta a história de forma clara e comprometida.

sábado, 12 de junho de 2021

EXPERIÊNCIA TRABALHANDO COM O CANVA NA SALA DE AULA

HQ produzida pela aluna Gabrielly, para o projeto interdisciplinar sobre Meio Ambiente.

Há cerca de duas semana eu participei de uma oficina ministrada por Vanuza Durães, mestre em Educação Matemática Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, durante o V Entre ASPAS: O Canva como aliado nos processos de ensino e aprendizado nas produções de HQs. A oficina ensinava a usar o Canva, uma plataforma de design gráfico que possibilita criar uma séria de mídias para serem utilizadas na internet e fora dela, também.

É um verdadeiro paraíso para professores, porque tem basicamente tudo que a gente precisa e coisas que nem sabemos que existe. Só para dar alguns exemplos, no Canva para professores, tem desde templates a modelos de cartazes, designers para tabelas de horário, sugestões de atividades em inglês, matemática, português, que podem ser modificadas e adaptadas, fora a possibilidade de criação de turmas com os alunos. Eu não daria conta de listar tudo até porque eu ainda não explorei todos os recursos, longe disso.

Para a versão do professor, é preciso fazer um registro, comprovando que você trabalha com educação. O registro permite que o professor tenha acesso a muitos recursos de forma gratuita. Exista a versão paga, para aqueles que querem usar o programa com tudo que ele tem para oferecer. A versão gratuita é mais simples e com muitas limitações, principalmente de edição.

Canva para professores
Antes de fazer a oficina eu usava o Canva para produzir alguns logos ou figuras para ilustrar alguma atividade. Mas depois da oficina eu me dei conta de que não cheguei nem perto de usar o programa em todos o seu potencial. Por exemplo, eu não sabia que poderia fazer histórias em quadrinhos utilizando o Canva.

De repente eu me vi diante de uma infinidade de modelos de quadrinhos, assim como de imagens disponíveis para uso, sem preocupação com direitos autorais, além de diversos elementos que podem ser utilizados para compor HQs, das mais curtas às mais longas. Há, também, ainda a possibilidade de upload de imagens.

Esta semana eu resolvi fazer uma experiência e montei algumas HQs com os alunos para um projeto interdisciplinar sobre meio ambiente que a escola está fazendo. Teve quem duvidasse que eu conseguiria. Isso porque os alunos da escola na qual leciono não possuem recursos além do celular e nem sempre podem baixar aplicativos (quase nunca) por conta do espaço da memória. Então, partimos para uma atividade coletiva.

Algumas opções de modelos de quadrinhos que o Canva oferece.
Como assim?

Usei o google meet para reunir 12 alunos de uma das minhas salas de 8º ano e apresentei o Canva para eles, junto com a proposta de criar tirinhas. Mostrei as opções que o programa possuía. Eles foram selecionados os modelos que acharam mais interessantes e pensando nos temas que poderiam usar. Em duas aulas, produzimos 8 tirinhas, sendo que o mais interessante foi a participação. 

Quando um aluno estava montando a sua, junto comigo (escolhendo personagens, elementos e ditando os diálogos), outros alunos davam sugestões e sugerindo como o quadrinho do (a) colega poderia ficar melhor. Eu simplesmente ia seguindo as orientações e minha interferência foi mínima. Nem precisei me preocupar com a disciplina, eles mesmo interrompiam algum(a) colega que por alguma razão desviasse a atenção de quem estava montando sua HQ.

O aluno pode mudar o cenário, acrescentar ou retirar elementos e escolher os personagens que vai querer usar na sua HQ.

Melhor que o produto foi a reação dos alunos. Segundo eles, se os professores estivessem com eles juntos para fazerem as atividades, seria bem melhor. Além disso, foi realmente uma atividade em equipe, na qual os colegas foram encorajando uns aos outros e ajudando quando havia alguma dificuldade. Algo do tipo é difícil de conseguir mesmo em sala de aula.

Por fim, achei que seria interessante colocar aqui a minha experiência e recomendo o uso do Canva para fins pedagógicos. Não apenas para o professor criar material como, também, para os alunos terem outras opções de trabalhar o conteúdo. Eu pretendo usar o Canva como alunos da rede particular, que possuem computador e recursos para poderem montar sozinhos suas HQs, mas essa experiência de produção, envolvendo a participação do grupo, é fundamental. Tanto que, antes de partir para a criação autoral eu quero montar junto com o grupo uma HQ coletiva justamente para poder experimentar esse momento de inteiração e participação.

sábado, 1 de maio de 2021

COMO UMA BORBOLETA: COMENTANDO NAVILLERA

 

Navillera (나빌레라), cuja tradução par ao português seria “Como uma borboleta”, é um k-drama que estreou em março no Netflix, e teve seu fim na última semana de abril. Com apenas 12 episódios, de aproximadamente uma hora cada, Navillera foi adaptada de um webtoon, de grande sucesso, que conta a história de um homem que, aos 70 anos de idade, resolve fazer balé. Acompanhei a série pontualmente, todas as segundas e terças, e fiquei hipnotizada com a história, que foge do padrão em vários sentidos.

Não é uma comédia romântica, está mais para uma história de amizade e que foca, também nos conflitos entre pais e filhos. A narrativa é fluida, sensível, colocando em cena problemas comuns relacionados tanto aos jovens, como os desafios que enfrentam no mercado de trabalho, suas dúvidas e angustias com relação ao futuro. Por outro lado, ela fala sobre os desafios que também são enfrentados pelos idosos, suas relações familiares, o preconceito e, também, a forma como problemas de saúde afetam tanto a eles quanto às pessoas que os cercam.

Imagem retirada do webtoon, capítulo 1.
É uma história singela, que prende o expectador do início ao fim, e que foge dos padrões e dos clichês que normalmente encontramos nos quadrinhos e nos seriados. É literalmente um programa para toda a família. Se eu ainda tivesse avós vivos eu assistiria com eles e tenho certeza que eles iriam se divertir. Eu realmente não consigo apontar defeitos e só tenho elogios aos atores, todos sem exceção, dos protagonistas aos coadjuvantes. Mas não tem como deixar de destacar os meus favoritos.

Para começar eu me apaixonei pela atuação de Park In-hwan, ator de 76 anos, que iniciou sua carreira em 1965, tendo atuado em dezenas de produções no cinema, na TV e no teatro. Em Navillera ele é Shim Deok-chul, um carteiro aposentado que resolve aprender balé, um sonho que tinha desde a infância, mas que nunca pode realizar. Primeiro, porque a família não apoiava, segundo, porque não possuía condições financeiras para isso. 

Imagem capturada em: https://revistakoreain.com.br/2021/03/k-drama-navillera-quebra-padroes-e-promete-emocionar/

Um homem que trabalhou muito e passou por muitas dificuldades para criar os três filhos. O retrato do homem comum sul-coreano, que tem uma vida laboriosa e que, após 40 anos de trabalho, se resigna com uma vida pacata de aposentado. Só que no caso desse personagem não vai ser assim, ele corre atrás dos sonhos perdidos, mesmo com toda dificuldade, e mostra que a velhice não é o fim.

Meu segundo personagem preferido é a esposa de Shim Deok-chul, Choi Hae-nam, interpretada pela magnífica atriz Na Moon-hee, de 80 anos de idade. Essa atriz maravilhosa simplesmente roubou o meu coração com sua atuação em Navillera. Ela é o retrato da mãe zelosa, mas é também a esposa parceira, que vai apoiar os sonhos do marido. 

Aliás, a relação dos dois, como casal, é muito harmoniosa e marcada pelo respeito mútuo. Para além do amor, está o companheirismo e a amizade construída pelos anos de convivência. E o casamento aqui não é apresentado como um conto de fadas. Na verdade, o drama deixa bem claro como pode ser difícil construir e manter uma família unida.

Imagem capturada em: https://revistakoreain.com.br/2021/03/k-drama-navillera-quebra-padroes-e-promete-emocionar/

Por fim, eu tiro o chapéu para o jovem ator Song Kang, que interpreta Lee Chae-rok, um talentoso dançarino de 23 anos, que começou a fazer balé aos 19 anos, seguindo os passos da mãe, que era dançarina e que havia morrido há alguns anos. Ele está vivendo uma crise, com o pai preso, sem dinheiro e quase desistindo do balé. É aí que ele conhece Deok-chul, e um acaba mudando a vida do outro.

A relação entre os personagens vai sendo construída a cada episódio e é umas das coisas mais bonitas da série. Um passa a apoiar o outro e Deok-chul devolve a Lee Chae-rok não apenas a esperança mais o sentimento de pertencer a uma família.  Eles, claro, aprenderam alguns movimentos de balé, mas, logicamente, precisaram de dublês para executar movimentos mais complexos. Neste momento, entraram os recursos de câmera e luz que possibilitaram que a performance dos protagonistas fosse o mais real possível.

Imagem Capturada em: https://www.elfolivre.com.br/2021/03/navillera-netflix.html

Se eu escrever mais vou acabar dando spoillers, por isso vou encerrar recomendando novamente a série e deixando aqui o link (clique aqui), para quem quiser conferir o webtoon (em inglês).

quinta-feira, 22 de abril de 2021

CASO DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO SÉCULO XIX

Lá pelos idos de 1998, quando eu estava ainda começando a me aventurar para além de estudos sobre história da educação e história local, umas das coisas que mais me chamavam atenção quando fazia pesquisas em arquivos em Juiz de Fora eram as notícias relacionadas a crimes e acidentes envolvendo mulheres e crianças. Eu, na época lia e analisava processo processos de divórcio do início da República e Jornais publicados em Juiz de Fora como o Jornal do Commercio (meu preferido) e o Pharol. 

Numa dessas acabei produzindo alguns artigos sobre violência contra a mulher e sobre família no período da Primeira República, que era normalmente meu recorte temporal. Apenas muito tempo depois eu me afastei desse período e comecei a me interessar por História Internacional e História Cultural. Na realidade eu poderia afirmar que meu interesse pela História das Mulheres e pelo privado nasceu dessas primeiras pesquisas, que eu ainda quero retomar, mais de duas décadas depois, assim que eu concluir minha tese de doutorado. 

Mas porque estou falando sobre isso?

Eu tenho assistido como ouvinte aulas da minha orientadora do doutorado, Mary Del Priore. Numas dessas aulas ela nos brindou com o fragmento de um de seus livros mais recentes, "Sobreviventes e  Guerreiras", no qual ela transcreve um trecho de um processo que dá sentença de "capadura"(castração) a um agressor sexual, em Sergipe, no ano de 1833. Segundo ela, um caso raro para época, na qual a justiça raramente condenava agressores. 

Mas o que lei do império determinava?

 

Segundo a pesquisadora Naiara Machado, o “No Código Criminal do Império (1830) o estupro contra mulher honesta era previsto e as penas eram de prisão e pagamento de um dote a vítima. Porém, se a vítima fosse prostituta a pena de prisão de 3 a 12 anos seria reduzida para 1mês a 2 anos. Contudo, não se aplicava pena para aquele que se casasse com a ofendida”. Ou seja, era considerado um crime menor e cuja punição variava de acordo com o status da mulher. 

Se a mulher fosse “honesta”, o estuprador recebia uma determinada punição; se a vítima fosse uma profissional do sexo, esta punição era bem menor, se ocorresse. Além disso, a vítima ainda corria o risco de ser obrigada a casar com o agressor. Dois anos depois, uma mudança no código não trouxe uma punição mais severa, acrescendo-se aí pena de trabalhos forçados ao autor do crime, com um agravante se a ofendida fosse menor de 15 anos.

A legislação em si projeta o pensamento da época no qual as mulheres eram subvalorizadas e seu corpo considerado uma propriedade para os homens, pensamento ainda muito presente na atualidade. Mas esse fato faz do processo acima descrito ainda mais singular, uma vez que a pena para réu vai muito além daquilo que a lei determina, o que sinaliza para um outro tipo de comportamento, que destoa da regra geral da época.

Além disso, texto é muito divertido, uma vez que o vocabulário da época traz alguns termos bem interessantes para descrever determinadas ações. Por exemplo, palavras cujo significado eu não consegui encontrar em dicionários como "abrafolar" ou " conxambranas". Estas duas palavras estão relacionadas ao ato sexual, pelo que entendi e o que puder averiguar em alguns sites que pesquisei.  

O texto em si é não apenas um documento interessante do ponto de vista histórico como também do ponto de vista semântico.  É um texto divertido, embora sua redação original não tenha tido essa intenção. Um documento recomendado para ser trabalho não apenas em aulas de história.

 



FONTES:

MACHADO, Naiara. Uma breve história sobre o crime de estupro. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/51014/uma-breve-historia-sobre-o-crime-de-estupro>. Acesso em 22 de abr. 2021

PRIORE, Mary Del. Sobreviventes e Guerreiras. São Paulo: Editora Planeta, 2020.



domingo, 11 de abril de 2021

ORGANIZANDO MEU ACERVO: ALGUMAS REFLEXÕES

Parte da minha coleção de livros teóricos sobre Histórias em Quadrinhos.

Hoje vou fazer uma postagem bem pessoal, mas que acho que pode trazer algum benefício aos colegas que, como eu, foram cultivando, aos poucos, suas coleções de livros e quadrinhos. Eu tento organizar meu acervo sempre que posso, embora nem sempre possa manter certa periodicidade pois, como quem tem uma biblioteca privada bem sabe, isso demanda uma quantidade de tempo da qual nem sempre dispomos no dia a dia. 

A certa idade, eu optei por me desprender daquilo que não é necessário, reservando um espaço apenas pelo que eu considero útil tanto para o meu trabalho na escola quando para fins de pesquisa. Posso dizer que estou mais pragmática e menos emocional com relação ao meu acervo. Por isso, de tempos em tempos eu reorganizo minhas coleções e reservo livros ou quadrinhos do quais não mais necessito para doação. 

Eu, normalmente, os repasso a ex-alunos ou conhecidos que sei que terão interesse e farão bom proveito. No caso da minha coleção de quadrinhos, eu a doei para a escola e a partir dela eu montei uma gibiteca, alimentada por outras doações de colecionadores que, como eu, resolveram abri mão de parte do seu acervo particular. Isso resolve, por exemplo, o problema do espaço, que é o principal tormento de quem não consegue se desapegar de suas coleções.

Parte da minha coleção de História do Brasil, já envolvida em papel filme.

Não tenho pudor em passar adiante obras que me fizerem companhia por muitos anos, nem mesmo aquelas cujos autores me fizeram dedicatórias. Sobre isso, antes eu tinha ressalvas, porque esses livros e quadrinhos possuem um valor emocional agregado a eles. Mas, por outro lado, qual autor não quer que sua obra seja lida por um número maior de pessoas? Doar livros é, também, uma forma não apenas de difusão de conhecimento mas, também, de dar evidência a autores e autoras.

Eu, naturalmente, valorizo minhas coleções, tanto que estou empregando, no momento, algumas técnicas de conservação de livros que aprendi recentemente com a amiga Valéria Aparecida Bari, num dos programas que gravamos para o canal da ASPAS - Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial, no Youtube (clique aqui se quiser conferir). 

A técnica consiste em envolver com papel filme meus livros e meus quadrinhos. Isso tanto possibilita a melhor conservação das obras como resolve dois problemas. O primeiro é o odor que o papel produz com o tempo e o envelhecimento. O segundo é com relação a limpeza, que fica mais fácil porque o pó não penetra nas laterais e nas páginas do livro. A limpeza fica mais fácil desta forma, e o ambiente do escritório mais apropriado para o trabalho, ainda mais em tempos de trabalho remoto. 

A pergunta que alguém certamente vai fazer, e que eu fiz: " - Mas e quando eu precisar do livro?" Bem, nesse caso, retirasse o plástico e depois coloca-se outro. Dá um certo trabalho, eu sei, mas normalmente não utilizo durante o ano nem 15% do meu acervo. O restante fica constantemente exporto à poeira e agentes biológicos que podem acelerar seu processo de degradação.

Parte da minha coleção de HQs, já com papel filme.

Optei por um sistema de classificação bem simples no qual eu estou organizando minhas coleções a partir de alguns critérios. Primeiro, autoria. Reúno obras do mesmo autor para ficar fácil encontrá-las. No caso das quadrinhos, não apenas autor(a), mas também procedência e gênero. Por exemplo, históricos, superaventura, mangás, manhwas. Optei por colocar o gênero acima da procedência então tenho, por exemplo, superaventura tanto em português quando em francês, grego, alemão e inglês.

Para os livros, eu adotei também o sistema de autoria, mas eles estão subdivididos de acordo com o tema. Livros de história geral, de teoria da história, de história do Brasil, de História das Mulheres, de Educação Patrimonial, Educação ou de Ensino de História e livros teóricos sobre quadrinhos. Percebi que isso facilita muito quando tenho que buscar por um tema especifico e me poupa muito tempo.

Mantenho obras raras e revistas acondicionadas em caixas, separadamente. No caso das obras raras, eu as envolvo com papel de seda, e pretendo manter assim, pois acho mais adequado do que o plástico. Cada um acaba criando seu próprio sistema, até porque num acervo particular, o proprietário faz as regras uma vez que ele será o único usuário.

Mas estou aceitando sugestões, principalmente para a conservação do acervo, que acho ser a parte mais importante. O papel está sempre sujeito a agentes externos e, muitas vezes, só nos damos conta de que uma obra começou a se deteriorar quando o processo já está adiantado. Assim, quem quiser deixar sugestões, elas são bem-vindas!

quarta-feira, 17 de março de 2021

SILENCIADAS: BRUXAS OU FEMINISTAS?


Uma das coisas que o Netflix trouxe de bom foi a variedade de opções de filmes e séries de diversos países. Em tempos de pandemia isso tem sido uma ótima opção, que faz com que a gente possa fugir das já batidas produções estadunidenses e conhecer outros tipos de cinema, descobrindo diretores, roteirista e autores talentosos que até então eram desconhecidos de boa parte do público brasileiro. Da mesma forma, produções brasileiras têm ganhado o mundo e conquistando fãs.

Dito isso, quero falar hoje sobre o filme, “Silenciadas”, uma produção do Netflix. Silenciadas foi dirigido pelo argentino Pablo Agüero e o roteiro é de Katell Guillo. O filme estrelado por Amaia Aberasturi (Ana), Alex Brendemühl (juiz Rostegui), Daniel Fanego (como Consejero), Garazi Urkola (Katalin), Yune Nogueiras (María), Jone Laspiur (Maider), Irati Saez de Urabain (Olaia), Lorea Ibarra (Oneka) e Asier Oruesagasti (Padre Cristóbal). É um filme histórico e, também, um filme que pode ser considerado feminista. Eu o assisti sem grandes expectativas e saí muito satisfeita, tanto com enredo de forma geral, quando com a atuação das atrizes, que protagonizaram a trama.

O filme se passa no início do século XVII, mais precisamente em 1609, numa vila de pescadores, no país Basco, e narra a história de um grupo de jovens mulheres que foram aleatoriamente acusadas de bruxaria, aprisionadas e condenadas como hereges por um inquisidor. A história é uma adaptação do livro "A Feiticeira", de Jules Michelet. Estima-se que por acusação de bruxaria, cerca de 100 mil mulheres podem ter sido executadas durante ao longo da história. O número pode ser até maior. Um verdadeiro genocídio de mulheres, tutelado pelo Estado.

O que mais me chamou atenção nessa produção foi o fato de não encarar as bruxas como seres sobrenaturais. Na verdade, a bruxaria em si não é o centro do debate, mas sim a arbitrariedade com a qual as mulheres são julgadas, sem direito à defesa. São culpadas por serem mulheres. Os homens as temem, isso é deixado bem claro pela narrativa. 

Silenciadas é também um filme que mostra a resistência dessas mulheres, agredidas e humilhadas, que encontram forças para se erguer contra seus opressores. Elas resistem cantando, resistem rindo, quando não há mais esperança, resistem ao desafiarem seus opressores e utilizarem seus medos e superstições contra eles mesmos. Não há como não querer se unir a elas contra o fanatismo e o preconceito.

Do ponto de vista histórico, é um filme que pode servir como referência para estudos sobre a caça às bruxas e a inquisição espanhola. Ele traz muitas boas referências e gira em torno dos mistérios do ritual do shabbat, festa profana que, segundo a Igreja Católica, as mulheres realizam para invocar o Diabo. Um ritual cujo imaginário foi construído ao longo da inquisição a partir de relatos de mulheres que, sob tortura, descreviam essa festa profana usando de toda a imaginação que pudessem acessar, a fim de colocar fim às longas sessões de tortura.

O shabbat foi posteriormente apropriado pela literatura, notadamente a feminista, como um símbolo de libertação das mulheres. Na França da década de 1970, por exemplo, uma das revistas feministas de maior destaque daquele período chamava-se Socières. Artistas como a quadrinista italiana Cecília Capuana, que publicou nas revistas Métal Hulant e Ah! Nana, neste período, utilizaram as bruxas como um símbolo feminino de rebeldia e libertação.

Por fim, algo que eu não posso deixar de comentar. Eu consultei alguns artigos e críticas ao filme antes de escrever a minha e, praticamente em todas elas, o filme está sendo colocado como se passando no século XV, durante a Idade Média. Um erro gravíssimo, pois a história se passa em 1609, portanto, século XVII, Idade Moderna e após a Reforma Religiosa. Não custa pesquisar um pouco ante de escrever a resenha de um filme histórico.