terça-feira, 26 de maio de 2020

“GOO HAE-RYUNG, A HISTORIADORA” E O SIGNIFICADO DE SER HISTORIADOR(A)




Terminei de assistir esta semana o K-drama “Goo Hae-Ryung, a Historiadora” (신입 사관 구해 ), uma produção da Netflix, lançada em 2019. Uma experiência, no mínimo, gratificante. Os doramas têm sido tanto uma forma de lazer quanto uma inspiração que tem me aberto uma série de possibilidades para temas de pesquisa. 

Além disso, eles estão me introduzido na História do Oriente, área na qual eu nunca havia me envolvido nestes meus 28 anos de formada. Aliás, um dos meus projetos para depois do doutorado é justamente escrever um pequeno e-book falando sobre temas históricos do oriente a partir das produções coreanas e chinesas para televisão. Já estou até selecionando minhas fontes, "Goo Hae-Ryung, Historiadora", certamente será uma delas.

Mas o que este k-drama tem de tão especial para que eu o tenha incluído nos meus projetos futuros? 

Eu poderia citar inúmeros pontos e, entre eles o próprio didatismo de “Goo Hae-Ryung, a Historiadora”, que aborda uma variedade enorme de assuntos que, certamente, serão temas de algumas das minhas aulas. Mas, de tudo que ele pode oferecer duas coisas me chamaram a atenção. Primeiramente, o protagonismo feminino, em segundo lugar a forma com o papel social do historiador é apresentado pelo dorama. Possivelmente eu darei alguns spoilers, vai ser inevitável, mas nada que atrapalhe quem quiser conferir depois este drama na Netflix.

Historiadoras aprendizes do Escritório de Decretos Reais.

Vamos começar falando das protagonistas. Neste K-drama as mulheres roubam a cena o tempo todo. Tanto a protagonista, quanto as personagens do elenco de apoio. É um dorama bem no estilo girl power e com uma grande vantagem: com pouquíssimos clichês. Não espere mocinhas frágeis e heróis viris. Aqui as mulheres tomam a iniciativa no amor e são elas que salvam o príncipe indefeso.


 Goo Hae-Ryung
A heroína da história é Goo Hae-Ryung é uma jovem de 26 anos que se recusa a casar e, para fugir do casamento, ela faz o primeiro concurso público para mulheres e se torna historiadora, junto com mais três jovens, dentre elas a filha de um membro do autoescalão do governo. Ela não quer ser esposa. Goo Hae-Ryung deseja ter uma carreira, ser independente financeiramente e não acredita que o casamento seja a única opção para uma mulher.

Mas estamos no início do século XIX, na Dinastia Joseon (1392–1897), na Coreia. Tanto do ponto de vista social e cultural e moral, uma mulher só encontraria realização se fosse esposa e mãe. Goo Hae-Ryung está numa situação difícil porque se ela não aceitar o marido que o irmão escolheu, o chefe da vila na qual ela morava iria casá-la com alguém aleatoriamente. Afinal, uma mulher não pode ficar sem um homem sem perder sua moral. Tal pensamento não foi exclusivo de países do extremo oriente e, ainda hoje, é defendido em muitas regiões do mundo.

A protagonista consegue evitar seu destino predeterminado pela sociedade e se torna funcionária pública. Neste ponto, a narrativa se constrói no passado, mas com elementos do presente. O discurso acerca da liberação feminina encontra facilmente eco nos dias atuais, assim como as dificuldades que as quatro jovens historiadoras enfrentam para conquistar seu espaço dentro da instituição governamental na qual, até então, as únicas mulheres eram as criadas.

Uma pausa aqui para elogiar o talento de Shin Se-kyung, a atriz que interpreta Goo Hae-Ryung.

Voltando à questão do casamento, as colegas historiadoras de Goo Hae-Ryung compartilham com ela, em maior ou menor escala, o desejo pela independência e, também, não veem no casamento a única alternativa para uma mulher.


Song Sa-hee
Destaque para Song Sa-hee, filha de uma família rica, que evitou ao máximo o casamento, e que deseja ser livre para escolher seu caminho, sem ser usada pela família para alianças políticas ou comerciais. A jovem lady é direta: não quero ser usada. Ela é questionada: Você é de uma família, não precisa trabalhar ou se preocupar com dinheiro, por que quer ser historiadora? No que ela responde: Não tenho nada, nada é meu, pois ou mulher. Para Song Sa-hee, interpretada pela atriz Park Ji-hyun, o cargo público de historiadora é a forma não apenas de se libertar das imposições da família, mas, também, de poder garantir seu sustento futuro.

São mulheres que não querem casar apenas para cumprir exigência social e que não se rendem à ilusão do amor romântico. Elas querem amar, querem ser amadas, mas não vão abrir mão da sua liberdade por conta disso. Goo Hae-Ryung, por exemplo, é muito pragmática. Em certo momento ela recebe a proposta de fugir e deixar tudo para atrás para se realizar no amor. A resposta dela: Eu? Fugir e perder tudo que eu conquistei com o meu esforço e apostar numa paixão que eu sei lá se vai ter futuro? É ruim! Não foram exatamente estas palavras, mas este é o sentido delas.

O interessante do grupo formado pelas quatro historiadoras é o fato de que elas possuem origens sociais diferentes, mas compartilham o mesmo destino por serem mulheres. Destaque para fato que a mulher oriunda de família rica se coloca como a mais oprimida, uma vez que sua família a vê como um instrumento para conquistar ou conservar o poder e status a partir de matrimônios arranjados.

Espirituosas e atrevidas, as historiadoras Oh Eun-im (interpretada por Lee Ye-rim ) e Heo Ah-ran (interpretada por Jang Yoo-bin) dão um ar cômico ao drama.
Oh Eun-im (interpretada por Lee Ye-rim) e  Heo Ah-ran (interpretada por Jang Yoo-bin).

Outra coisa que me encantou neste dorama é a forma como são apresentados os historiadores. Eu poderia dizer que eles e elas são os protagonistas da história. No contexto no qual a narrativa se desenvolve, início do século XX, os historiadores representam um corpo de funcionários públicos com um status elevado na corte: são eles os responsáveis por registrar nos sachaek (caderno que os historiadores carregavam) tudo que era dito em reuniões oficiais, públicas ou particulares. 

Das reuniões oficiais com o rei e o príncipe herdeiro, à rotina cotidiana de membros da corte, como a rainha-mãe, a princesa herdeira, o jovem príncipe, etc, tudo era registrado e arquivado, sendo proibido o acesso a esta documentação quem não fosse historiador. O próprio rei não tinha direito a ler o conteúdo dos sachaek.

O que me seduziu mesmo neste dorama foi a forma como a história foi, o tempo todo, representada: ela é a chave para o futuro da nação. Os historiadores se apresentam como detentores de uma ética inabalável, que deve ser mantida a todo custo e defendem o documento de qualquer tipo de interferência externa. No momento, por exemplo, em que o rei tenta passar em cima lei e interferir no escritório de registros históricos, eles resistem. O poder do rei não se rivaliza ao da história.

Uma passagem, que vou resumir agora, mostra o chefe dos historiadores rebatendo um dos colegas que diz algo do tipo: se o rei quer ler, então deixa ler. Ele retruca dizendo algo assim: A gente deixa o rei ler hoje, ele pede para ler amanhã, depois eu começa a sugerir algumas mudanças e, no fim, nós não sermos mais do que marionetes nas mãos dele. Ainda completa que, as leis que protegem os registros e os historiadores foram conquistas depois de séculos de luta. Se eles cedessem, teriam que recomeçar do zero.



A história é colocada como portadora da verdade. Que verdade? Os registros detalhados feitos pelos historiadores e que, depois, seriam usados para escrever os compêndios nos quais era seria sintetizada. O historiador não poderia julgar, seriam as futuras gerações que o fariam. Ele não poderia interferir nem ter opinião, como uma sentinela silenciosa, ele apenas registra.

Uma visão positivista mas é século XIX, então é compreensível.  Não que isso não seja questionado no decorrer da trama, afinal, a narrativa dialoga o tempo todo com o presente. Não achei fontes para embasar ou confirmar este poder dos historiadores durante a Dinastia Joseon, mas confirmei que, de fato, eles existiram e trabalharam junto aos órgãos do governo, por séculos.

Eu realmente poderia escrever muitas páginas sobre esta série, mas vou encerrar a postagem reforçando minha recomendação. Assista “Goo Hae-Ryung, a Historiadora”. É uma história bonita, com personagens marcantes, é leve e, ao mesmo tempo, muito profunda. Você vai rir, vai se emocionar e vai ter contato com conhecimentos que podem fazer diferença na sua formação escolar, social e política. Fora isso é muito divertido, com uma trilha sonora linda, uma fotografia fabulosa, ótima opção para os dias de isolamento. São 20 episódios de cerca de 70 min cada.



13 comentários:

Denise Maria C. G. Porto disse...

Parabéns pela excelente resenha !! Eu assisti esta deliciosa série , e você soube traduzir de forma muita clara, toda a riqueza de informações históricas que há nela. um grande abraço, Denise G. porto

ART.ARTE.LIFE,VIDA. disse...

Queria saber mais sobre estes historiadores. Procurei no Google e nada...

Natania Nogueira disse...

Para encontrar alguma coisa, só pesquisando em inglês. É difícil achar. Talvez porque seja algo muito específico da história da Coreia.

Rafaela Holanda disse...

Eu maratona esse drama de ontem pra hoje, é simplesmente maravilhoso. Gostei de tudo, principalmente do grupo de historiadores. Uma inspiração!!

Veralves disse...

E de bônus ainda tem aquele príncipe! Hehehe. Também adorei os historiadores.

Unknown disse...

Gostei muito da série, ultimamente tenho assistido muitas séries coreanas. Graças ao Netflix. Nunca parei pra pensar nessa função Historiador e a forma e a importância desse trabalho. Tudo que você falou é realmente o que percebi. Parabéns pela sua narrativa e observações. Fiquei encantadata com tudo: tema abordado, fotografia, vestuário, as casas, mobílias, cultura, valores, o respeito a submissão, etc..

Unknown disse...

Estou assistindo. É uma série empolgante. Também tenho prestado atenção aos elementos culturais, sociais e aprendendo sobre a cultura coreana. Também gostei da situação cronológica.

Izabis disse...

Que maravilha ver seu comentário sobre esta serie!!! Acabei de assistir e estou encantada com o que vi e que é confirmado pelo seu texto. O mais interessante é que vi que você é de Leopoldina e acho que nos conhecemos. Sou de Laranjal e você se parece muito e tem o mesmo nome, da filha de um amigo do meu pai.

Natania Nogueira disse...

Olha que legal! Meu irmão mora em Laranjal e meu pai tem muitos amigos aí :-)

Izabis disse...

Então é você mesma, sou Bel, filha do Tora, amigo do seu pai. Mundo pequeno...rssss

Unknown disse...

Perfeito esse dorama

Anônimo disse...

Não conseguia parar de ver. Gostei muito e seu resumo está maravilhoso.

Gisele Morais de Lima disse...

Eu terminei de assistir ontem, se tornou uma das minhas séries preferidas, e eu amei tua resenha.