sexta-feira, 1 de outubro de 2021

MONEYPENNY E A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NO UNIVERSO DE JAMES BOND

Sean Connery como James Bond junto com Lois Maxwell como Miss Moneypenny em 'Goldfinger' 

O texto que segue, eu escrevi há alguns anos, para colaborar com o artigo do amigo Octávio Aragão. Hoje, relendo, senti vontade de compartilhar. Então resolvi postar aqui no blog, afinal, demandou esforço e acho que talvez agrade a alguns dos leitores e leitoras do blog.

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James Bond e todo o universo fictício que o cerca surgiram dentro de um contexto histórico impactado, de um lado, pelo horror da Segunda Guerra Mundial, e outro pelas transformações geopolíticas que começavam a desenhar os contornos do que seria a nova ordem mundial, marcada pela Guerra Fria.  Ian Fleming foi perspicaz ao se apropriar de um cenário que mostrava promissor como pano de fundo para uma obra de ficção na qual ele pode ainda utilizar suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial, na Divisão de Inteligência Naval e como jornalista.

Os anos de 1950, no entanto, não podem se resumidos apenas à geopolítica ou à memória da Segunda Guerra. Eles são, também, um período marcado por grande retrocesso nas relações sociais, especialmente no que diz respeito à inserção social da mulher. Durante os anos e guerra, as mulheres conquistaram espaço no mercado de trabalho, ocupando cargos que, até então, eram quase que exclusivamente masculinos. Durante o esforço de guerra as lideranças mundiais tentaram ignorar o gênero dos seus soldados. As britânicas foram convocadas para o exercito, as estadunidenses pilotavam aviões de carga e construíam submarinos, as soviéticas pilotavam tanques de guerra, as francesas tiveram um papel muito importante no movimento de resistência.

Mas as representações das mulheres na Segunda Guerra Mundial foram estereotipadas, principalmente nos anos que se seguiram ao conflito. De um lado elas aparecem como as secretarias ou auxiliares fiéis, muitas vezes austeras ou com ar inocente, quase infantil. Por outro lado são apresentadas, também, como as espiãs pérfidas, que seduzem e desvirtuam os homens. Onde estão as atiradoras de elite, as aviadoras intrépidas, as mulheres que combatiam as trincheiras?

Após a Segunda Guerra os papeis de gênero foram reconfigurados num processo que Susan Faludi (2001) chamou de Backlash, um enorme retrocesso nas relações entre homens e mulheres, que marcou o período pós-guerra As mulheres, que na década de 1940 foram valoradas como profissionais, passaram a ser desqualificadas.  O papel de dona de casa, mãe e esposa foi reforçado, assim como o preconceito contra aquelas que insistiam em seguir uma carreira profissional considerada “não-feminina”.

Não por acaso a Moneypenny de Lois Maxwell aparece usando um uniforme da marinha britânica no filme in You Only Live Twice (1967), reafirmando a presença das mulheres nas formas armadas mas, reforçando seu papel burocrático. Ela é militar, mas não deixa está em campo, ou seja, não deixa de ser apenas uma secretária.

Criada nos anos de 1950, Moneypenny nasceu dentro de um contexto no qual as mulheres deveram servir aos homens e auxiliá-los, mas jamais assumir qualquer protagonismo. Elas podem flertar, mas não devem se manter castas desempenhando sempre o papel da boa moça. As mulheres das décadas de 1950 e 1960, em particular, são constantemente vitimas de uma violência simbólica, reforçada por um discurso no qual as mulheres são levadas a aceitarem como sendo natural a sua condição de inferioridade. 

 
Lois Maxwell, com Money penny em You Only Live Twice

Exercida através de um conjunto de mecanismos de conservação e reprodução das estruturas de domínio, a violência simbólica se perpetua, fazendo parte tanto do universo masculino quanto do feminino. Os dominados, inconsciente e involuntariamente, assimilam os valores e a visão do mundo dos dominantes, o modo de ver, a maneira de valorar. As concepções de fundo são as dos dominantes, mas os dominados ignoram totalmente esse processo deaquisição e partem ingenuamente do princípio de que essas ideias e esses valores são os seus (NOGUEIRA, 2015, 80).

 Segundo Pierre Bourdieu (1998), utiliza-se critério biológico como forma de justificar uma divisão social, baseada numa relação de gênero desisigual, na qual as mulheres são submetidas à dominação masculina. Cabe às mulheres, dentro dessa configuração, um papel de submissão e aceitação da sua condição de inferioridade frente aos homens, seus superiores. Por sua vez, para Joan Scott (1989),  o gênero é uma construção, um universo simbólico a partir do qual definimos a forma como vamos enxergar a nós mesmos(as) e a realidade em que vivemos; um saber, uma percepção sobre as diferenças sexuais, é uma relação de poder que vai muito além da questão biológica (o sexo), alicerçada em hierarquias sociais, valores culturais, em símbolos e significados.

Essas relações de gênero pode ser vistas como socialmente produzidas e reforças, negando às mulheres seu protagonismo em esferas nas quais, supostamente, apenas homens podem adentrar. Talvez por isso cause tanto espanto ao público masculino a possibilidade de uma mulher assumir o lugar do lendário 007 rompendo com o ciclo de dominação.

A ideia de inferioridade feminina está presente no nome da personagem Moneypenny, que pode ser traduzido como algo do tipo “dinheiro em centavos”, algo de baixo valor. Conscientemente ou não, ao construir a personagem, na década de 1950, o autor deu a ela um nome singular que marca sua condição de coadjuvante em uma trama na qual sua participação é pequena e muitas vezes figurativa. Se houve momentos de emporamento a eles se seguiram blacklashs, quando a personagem não se considera capaz de assumir um papel mais ativo na trama e se recolhe, novamente, ao papel de secretária.

REFERÊNCIAS

FALUDI, Susan. Backlash. O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Trad. Mário Fondelli. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

BOURDIEU. Pierre. La domination masculine. Paris - Éditions du Seuil, 1998.

NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. As representações femininas nas Histórias em Quadrinhos norte-americanas: June Tarpé Mills e sua Miss Fury (1941-1952). Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Mestre em História - Universidade Salgado de Oliveira - Niterói, 2015.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica (1989). Disponível em: <http://bit.ly/2yKYNX3>, acesso em 27 mai. 2017.