São
quadrinhos que tem uma sensibilidade muito grande e muitas vezes falam de
coisas que nós costumamos guardar para nós mesmos. São HQs, também, que possuem
um certo compromisso com o que estão narrando. Algumas vezes eles nos ensinam
sobre o que não sabemos ou o que achamos saber. Eles acabam assumindo uma um
função informativa.
Eles podem ser, também, comparados ao gênero literário
"memória". Um quadrinista ao fazer um quadrinhos autobiográfico se
torna um memorialista, mesmo que não seja essa a sua intenção. Esse exercício
da escrita de si é incrivelmente cativante porque temos uma sede enorme de
estar com o outro, mesmo que seja apenas apropriando sua narrativa.
Nos encontramos, muitas vezes, nessas narrativas. Nossas dúvidas,
nossos preconceitos, nossas próprias experiências podem estar ali. Conheci
muitos quadrinistas que, desde o início da carreira, basearam seus quadrinhos
na sua própria experiência, embora usassem de uma dose de ficção. E aqui eu
gostaria de destacar quadrinistas mulheres, que com quadrinhos autobiográficos
encontraram uma forma de serem ouvidas pelo mundo. Seus personagens ficcionais,
na verdade, são canais de comunicação por meio dos quais elas se abrem para o
mundo.
No entanto, colocar-se como personagem, abrir seus pensamentos,
narrar sua própria experiência na primeira pessoa não é fácil. Embora possa-se
usar do recurso da ficção para dar certo alívio cômico ou mesmo para
expressar emoções mais profundas, essa escrita de si é
extremamente desafiadora.
Dito tudo isso, vamos ao que esse texto se presta, que é comentar a HQ "Não era você que eu esperava", do francês Fabien Toulmé. O Autor é formado em engenharia e depois de trabalhar muitos anos no ramo, inclusive no Brasil (onde fez intercâmbio, abriu uma firma e até se casou e constituiu família), resolveu se dedicar aos quadrinhos. O ponto chave dessa mudança foi o nascimento da sua filha caçula, Júlia. É claro, isso é uma dedução, baseada no fato de que "Não era você que eu esperava" foi seu primeiro quadrinho que, publicado em 2014, e narra os primeiros nos de vida da filha, que nasceu com síndrome de down, também conhecida como trissomia 21 .
O quadrinho fala das dificuldades de
Toulmé, enquanto pai, aceitar a filha como sendo portadora de uma deficiência.
Uma verdadeira autoterapia na qual o autor expõe e analisa seus
sentimentos. Não há floreios. Toulmé assume seu
lado preconceituoso, expõe sua dor e a de sua família. Não
se apresenta como um pai perfeito mas como uma pessoa que aprendeu a aceitar
as diferenças. Ele narra seu processo de humanização, se posso assim chamar,
que ocorre à medida que ele interage com a criança que, desde o início, ele
achava que nunca iria aceitar.
Há
muitas histórias sobre amor materno. Eu sinto falta de histórias sobre amor
paterno. Principalmente quando conseguimos perceber em "Não era você que
eu esperava", como o mito do amor incondicional dos pais é realmente uma
construção social. Toulmé e sua esposa, Patrícia, tiveram que aprender a
amar a criança. Ela não era amada só por existir. Isso porque a
relação consanguínea em si não garante que o amor entre pais e
filhos floresça. Até para amar é necessário um esforço.
Esse
é um ponto que eu gostei muito. Ver esse amor sendo construído. Ele não é
natural, mas resultado de interação, de abertura para o outro, de
romper preconceitos e padrões. Toulmé discriminava crianças
com síndrome de down. Ao se tornar pai de uma criança portadora de
trissomia 21 ele foi levado a rever seus
preconceitos e aceitar as diferenças. Isso porque esse tipo de medo nasce
justamente de não se encontrar no outro, ou seja, naquele que é diferente de
nós.
Dito isso, só me resta recomendar o quadrinho. Boa
leitura, traço agravável e extremante sensível e impactante.