sexta-feira, 22 de julho de 2022

COMENTANDO A HQ "NÃO ERA VOCE QUE EU ESPERAVA"

Eu desenvolvi nos últimos anos uma preferência por quadrinhos autobiográficos. Isso aconteceu quase que naturalmente, à medida que fui tendo acesso a esse tipo de material. Sobre esse gênero eu o considero ímpar pois ele é capaz de abrir uma comunicação mais ampla entre leitor e autor.  Isso porque, pelo menos no meu caso, eu sinto como se alguém estivesse me contanto uma história. Algo bom pessoal que essa pessoa quer compartilhar com outras pessoas. 

São quadrinhos que tem uma sensibilidade muito grande e muitas vezes falam de coisas que nós costumamos guardar para nós mesmos. São HQs, também, que possuem um certo compromisso com o que estão narrando. Algumas vezes eles nos ensinam sobre o que não sabemos ou o que achamos saber. Eles acabam assumindo uma um função informativa.

Eles podem ser, também, comparados ao gênero literário "memória". Um quadrinista ao fazer um quadrinhos autobiográfico se torna um memorialista, mesmo que não seja essa a sua intenção. Esse exercício da escrita de si é incrivelmente cativante porque temos uma sede enorme de estar com o outro, mesmo que seja apenas apropriando sua narrativa. 

Nos encontramos, muitas vezes, nessas narrativas. Nossas dúvidas, nossos preconceitos, nossas próprias experiências podem estar ali. Conheci muitos quadrinistas que, desde o início da carreira, basearam seus quadrinhos na sua própria experiência, embora usassem de uma dose de ficção. E aqui eu gostaria de destacar quadrinistas mulheres, que com quadrinhos autobiográficos encontraram uma forma de serem ouvidas pelo mundo. Seus personagens ficcionais, na verdade, são canais de comunicação por meio dos quais elas se abrem para o mundo.

No entanto, colocar-se como personagem, abrir seus pensamentos, narrar sua própria experiência na primeira pessoa não é fácil. Embora possa-se usar do recurso da ficção para dar certo alívio cômico ou mesmo para expressar emoções mais profundas, essa escrita de si é extremamente desafiadora.

Dito tudo isso, vamos ao que esse texto se presta, que é comentar a HQ "Não era você que eu esperava", do francês Fabien Toulmé. O Autor é formado em engenharia e depois de trabalhar muitos anos no ramo, inclusive no Brasil (onde fez intercâmbio, abriu uma firma e até se casou e constituiu família), resolveu se dedicar aos quadrinhos. O ponto chave dessa mudança foi o nascimento da sua filha caçula, Júlia. É claro, isso é uma dedução, baseada no fato de que "Não era você que eu esperava" foi seu primeiro quadrinho que, publicado em 2014, e narra os primeiros nos de vida da filha, que nasceu com síndrome de down, também conhecida como  trissomia 21 .

O quadrinho fala das dificuldades de Toulmé, enquanto pai, aceitar a filha como sendo portadora de uma deficiência. Uma verdadeira autoterapia na qual o autor expõe e analisa seus sentimentos. Não há floreios. Toulmé assume seu lado preconceituoso, expõe sua dor e a de sua família. Não se apresenta como um pai perfeito mas como uma pessoa que aprendeu a aceitar as diferenças. Ele narra seu processo de humanização, se posso assim chamar, que ocorre à medida que ele interage com a criança que, desde o início, ele achava que nunca iria aceitar.

Há muitas histórias sobre amor materno. Eu sinto falta de histórias sobre amor paterno. Principalmente quando conseguimos perceber em "Não era você que eu esperava", como o mito do amor incondicional dos pais é realmente uma construção social. Toulmé e sua esposa, Patrícia, tiveram que aprender a amar a criança. Ela não era amada só por existir. Isso porque a relação consanguínea em si não garante que o amor entre pais e filhos floresça. Até para amar é necessário um esforço.

Esse é um ponto que eu gostei muito. Ver esse amor sendo construído. Ele não é natural, mas resultado de interação, de abertura para o outro, de romper preconceitos e padrões. Toulmé discriminava crianças com síndrome de down. Ao se tornar pai de uma criança portadora de trissomia 21 ele foi levado a rever seus preconceitos e aceitar as diferenças. Isso porque esse tipo de medo nasce justamente de não se encontrar no outro, ou seja, naquele que é diferente de nós.

Dito isso, só me resta recomendar o quadrinho. Boa leitura, traço agravável e extremante sensível e impactante.


 

 


terça-feira, 19 de julho de 2022

ARTIGO SOBRE A HQ PELE DE HOMEM

Ano passado eu postei aqui minhas impressões sobre a HQ "Pele de Homem". Gostei tanto que até mesmo participei de um vídeo comentando sobre essa produção, com Valéria Fernandes da Silva e Fabiana Rubira (clique aqui para conferir). Por fim acabei produzindo um artigo sobre ele, com o título: "Pele de Homem e a desconstrução dos Papeis de Gênero nos Quadrinhos", que saiu pela Revista da Universo. Foi meu último trabalho publicado como doutoranda. 

Vou compartilhar aqui o resumo do artigo e, logo depois o link para quem quiser ler na íntegra.

"Pele de Homem"(2020) é uma história em quadrinhos, doravante HQ, franco-belga, que conquistou o público europeu e foi traduzida em 2021 para o português. A narrativa é ambientada na Itália do período renascentista e gira em torno de Bianca, uma jovem que se prepara para o casamento, mas que deseja conhecer o futuro marido. Seu desejo se realiza quando ela descobre um artefato místico que é passado de geração em geração para as mulheres da sua família, uma pele de homem. Trata-se de uma HQ que fala, com muita sensibilidade, sobre a condição feminina numa sociedade patriarcalista, que discute questões relativas aos papéis de gênero, a sexualidade e a homoafetividade, ambientado naquele contexto italiano. O roteirista Hubert Boulard e o ilustrador Frédéric Leutelier constroem uma história que mistura elementos históricos e ficção que dialogam com o presente. Nessa narrativa escrita e visual, o leitor(a) pode se encontrar representado(a) em vários momentos.

Para ler o artigo completo, clique aqui!


sábado, 2 de julho de 2022

DESAFIOS DAS ESCOLAS PÚBLICAS PÓS-QUARENTENA

Imagino que mais de uma centena de textos sobre educação trazem como título a palavra desafio. Desafiar, segundo o dicionário, significa, provocar uma pessoa, incitar alguém para um duelo, combate ou guerra, medir forças durante uma luta ou competição. Para a escola, e os professores, desafiar significa enfrentar todos os dias os obstáculos desempenhar bem sua função. Agora, muito mais do que antes, tem sido uma prova de fogo lecionar.

Estamos diante de uma horda de alunos despreparados para a vida escolar. E esse despreparo não se deve apenas às questão de aprendizagem, de apropriação de conteúdos. O desafio maior tem sido o da convivência. Não apenas a convivência com os professores, mas entre eles mesmos. Falo aqui da minha experiência neste primeiro semestre, com alunos do fundamental II, em escola pública. 

Alunos que não tiveram oportunidade de estudar e frequentar a escola por dois anos. As aulas remotas, realizados por meio de aplicativos, usando o celular, desgastaram os professores e não tiveram muito efeito sobre uma clientela que, muitas vezes, nem celular possuía. A saúde mental tanto de alunos quando de professores também sofreu com a pandemia de Covid-19. O resultado disso, eu tenho testemunhado na escola, às vezes durante minhas aulas, às vezes em relatos de colegas. 

Imagem capturada em: https://www.facebook.com/cnj.oficial/photos/a.191159914290110/1681947658544654/?type=3

O bullying na escola aumentou enormemente, a ponto de resultar, em alguns casos, de violência física, quando a vítima chega ao limite e revida de forma quase desesperadora. É praticamente uma rotina constante ficar atenta a sinais de intimidação entre alunos, buscando evitar qualquer tipo de assédio moral.

A imaturidade é outro ponto. Nesses dois anos de afastamento da escola, os alunos perderam ou não desenvolveram o traquejo básico para conviver com outras pessoas, sejam elas os colegas ou os professores. Temos alunos do sétimo ano que agem como crianças do quinto ano. Crises de choro e de ansiedade se tornaram rotina. 

Tanto professores quanto alunos estão sendo vítimas de violência moral. À falta de limites some-se a falta da educação familiar. Alunos rebeldes e desrespeitosos, muito mais do que antes. Claro, isso é uma generalização. Temos alunos que sabem lidar com o ambiente escolar e com os outros de forma cordial, mas acabam sendo prejudicados pelo contexto geral. São eles, inclusive, os que mais sobre com o bullying.

Ouvi de um colega que uma mãe reclamou que a escola não está educando seu filho, pois ele está desenvolvendo "maus hábitos". Fico imaginando que algumas, não todas claro, famílias pensam que a escola deverá ser responsável pela formação moral de suas crianças. Mas isso não é papel dos pais? Não é a família que cria a base da identidade da criança, lhe ensina valores e transmite sua experiência de vida?

Imagem capturada em: https://twitter.com/kaol_/status/1154072744495108096

É muito complicada a própria relação  entre os alunos. Muitas agressões verbais ou mesmo físicas por conta de coisas irrelevantes. Fiquei assombrada com a reação de alunos mais velhos quando solicitei que mantivessem o distanciamento. Eles começaram se se agredir verbalmente, com xingamentos, e ameaças físicas. E como gritam uns com os outros! 

É visível a instabilidade psicológica dos adolescentes, que estão passando por uma fase da vida caracterizada por muitas mudanças físicas. Essa instabilidade se torna visível na forma como tratam o outro. E o apoio da família parece ter diminuído. Talvez para não ter que assumir a responsabilidade de ensinar, no sentido de educar para vida, muitos pais têm apoiado as más ações dos filhos e sobrecarregando o trabalho dos especialistas. Estamos tendo que repensar o papel da escola e do professor, em particular. 

Neste retorno às aula presenciais eu tenho observado muitos dos meus colegas empenhados em trabalhar. Temos buscado alternativas para suprir a deficiência de aprendizagem. No entanto, ao mesmo tempo somos desestimulados pelo ambiente difícil da sala de aula. Com isso o desgaste físico e emocional diários  tem refletido em adoecimento, o que faz com que professores de afastem da sala de aula temporariamente, interrompendo um ciclo de trabalho que precisará ser retomado no futuro.

Enquanto ambiente social, a escola tem sido palco de relações tóxicas, resultado de dois anos de isolamento que parecem ter feito com que os alunos esquecessem de como é ser aluno. Hoje o desafio não tem sido o ensino-aprendizagem, mas incutir normas básicas de convivência social e respeito ao outro. 

OBS: Este texto é uma autoanálise, uma forma que encontrei de refletir sobre os problemas que tenho e que outros colegas têm tido na pratica docente diária. Sempre acreditei no poder da palavra escrita. Não apenas pensar sobre algo, mas escrever sobre algo pode ampliar a compreensão que nós temos da realidade e de nos mesmos.