domingo, 26 de dezembro de 2021

DEVO MORRER POR QUE SOU MULHER? O REI DE PORCELANA (연모) E O NEOCONFUCIONISMO


Baseado no manhwa (história em quadrinhos coreana), “The King’s Affection” (연모), "O Rei de Porcelana" (título em português), é uma série original do Netflix, que teve seus últimos capítulos, 20 no total, exibidos no dia 24 de dezembro, no Brasil. Trata-se de um drama de época sul-coreano, que gira em torno da história de dois gêmeos, Lee Hwi (o menino) e Dam-i (a menina). Filhos do príncipe-herdeiro, as crianças ao nascerem trazem caos para o palácio. Primeiro, porque o nascimento de gêmeos era sinal de mal agouro, segundo, porque de acordo com a doutrina neoconfuncionista, ao dividir o ventre da mãe com uma menina, o menino era considerado um homem fraco. Isso poderia ser tolerado entre os plebeus, mas era uma fraqueza para a nobreza, em especial a família real.

A solução para isso foi matar a menina e todos que tinham conhecimento da sua existência. Ela deve morrer por ser mulher? Essa é a questão que é levantada ao longo de toda a trama. A pequena e indefesa Dam-i deve ser sacrificada para que seu irmão possa ascender ao trono. No entanto, a princesa-herdeira desafia o neconfucionismo e salva a vida da menina que, mais tarde, por uma reviravolta do destino, assume o lugar do irmão mais velho e torna-se rei, durante a Dinastia Joseon, no século XV.

Dam-i  deixa de existir para que Lee Hwi possa continuar existindo e, com isso, garantir sua própria sobrevivência. A menina se torna menino. "O Rei de Porcelana" conta a história de uma donzela guerreira, que precisa esconder seu gênero e viver uma vida que não é sua. A questão dos papeis de gênero perpassa toda a narrativa. Sendo mulher, mas vivendo como homem, Dam-i  mostra que esses papeis são apenas construções. Por mais de uma década ela mantém a farsa e acaba sendo coroada rei, e um rei muito competente. Não lhe falta nada: sabedoria, força, habilidade de luta e carisma.

Imagem do manhwa (2011), capturada em: https://amazonesstory.tistory.com/354


Essa temática, mulheres que se disfarçam de homens, é recorrente em dramas asiáticos, não sendo esse a originalidade da série. No entanto, a forma como a narrativa de desenvolve e os questionamentos que emergem ao longo da trama, fazem de "O Rei de Porcelana" um drama que foge do lugar comum e, no qual, a nossa donzela guerreira apesar da sua trajetória trágica, não se render ou ser subjugada pelo papel masculino que assume. Ao contrário, ela reivindica sua identidade como mulher.

"O Rei de Porcelana" subverte o papel da donzela guerreira, que morre ou é sacrificada ao final da sua trajetória. Nessa história, Lee Hwi morre para que Dam-i  possa viver. O neoconfuncionismo não é apenas criticado, mas desafiado. Ela não deve morrer por ser mulher, essa é a mensagem final do drama. Uma mensagem que dialoga com o presente, num país no qual mulheres e homens ainda são influenciados por valores arcaicos, baseados numa filosofia que sobrevive ancorada no patriarcalismo.

Essa série dramática coloca em cena a questão do gênero de forma a nos levar a refletir sobre o que realmente é ser homem e ser mulher. Vale destacar a atuação de Park Eun-bin, que a protagonista, que interpreta a nossa donzela guerreira. Uma história muito bem orquestrada, uma narrativa cheia de reviravoltas do início ao fim, um elenco magistral, uma bela trilha sonora e uma cenografia de tirar o fôlego fazem de O Rei de Porcelana uma obra ímpar, que vale a pena ser assistida.