segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

O ÚLTIMO VOO DAS BORBOLETAS - IMPRESSÕES


Eu terminei de ler hoje o mangá "O último voo das Borboletas", de Kan Takahan, mangaká premiada, que debutou em 2001. Em 2020, a autora venceu o 24º Prêmio Cultural Osamu Tezuka. Sua obra aborda temas cotidianos, o que me agrada muito, e tem influência franco-belga. Não conhecia a autora, até porque eu não sou leitura regular de mangá (e pode até ter sido que eu tenha lido algo antes, mas não me recordo), mas gostei muito dessa HQ. A narrativa, a arte, a preocupação com a pesquisa na construção dos cenários e dos personagens são alguns dos seus pontos fortes.

Cho-no-Michiyuki ou "Voo das borboletas" é uma referência a obra do teatro kubuki, de 1784, de Gohei Namiki. Trata-se de um mangá histórico, ficcional, que se passa no Japão do século XIX. A protagonista é Kichou, uma cortesã de luxo, que trabalhava no bordel Kagetsu-rou  da Casa Hiketa-ya, um estabelecimento muito famoso no Japão, com quase 400 anos, hoje conhecido como Restaurante Histórico Kagetsu. Nele, as gueixas - mulheres que se dedicavam às artes e ao entretenimento, dividiam espaço com as yuujo, como eram chamadas de mulher de diversão, que prestavam favores sexuais. 

Kichou era uma taju, uma cortesã que tinha habilidades de uma gueixa, beleza esmerada e inteligência, e por isso estava no topo da hierarquia dentro do bordel. Seus clientes eram selecionados e pagavam muito mais um valor mais elevado, sendo que ela poderia, inclusive, se recusar a atender uma pessoa, caso não desejasse. 

Uma menina se tornava yuujo quando era enviada ainda bem jovem para o bordel, geralmente vendida pela família, que não tinha condições de alimentar a prole. Essa é a história de Kichou, vendida pelo pai ainda menina. Essas mulheres desenvolviam uma dívida com o estabelecimento que poderia ser paga com o passar do tempo, com seu trabalho, ou por algum amante que desejava torna-la esposa.

É uma história muito interessante e sensível, que fala sobre a vida das mulheres nos bordeis, de doenças como a sífilis, de como o estigma da prostituição as marcava, mesmo quando conseguiam conquistar sua liberdade e estabelecer uma família. Não é um mangá que vai trazer a violência contra as mulheres, mas o modo como elas viviam e conviviam como a realidade social e cultural de um Japão que estava se às portas da Era Meiji.

Embora o local, bordel Kagetsu-rou, seja real, tendo até inspirado outras histórias, os personagens são ficcionais, com exceção de um, o doutor Toon, um médico ocidental – Anthonius Franciscus Bauduin – que realmente existiu e que foi apropriado pela autora, embora sua inserção na obra seja toda ficcional.

Recomendo a leitura, principalmente porque é também uma experiência de aprendizado. A autora teve a preocupação de escrever um prefácio, esclarecendo pontos e contado um pouco sobre o processo de criação do mangá e ainda disponibilizou um glossário, que traz informações tanto sobre termos usados, quando sobre a história e a cultura do Japão do século XIX, durante o Era Edo.

sábado, 10 de dezembro de 2022

A REVOLTA DA VACINA EM QUADRINHOS

Terminei esta semana a leitura da HQ "Revolta da Vacina", de André Diniz. Uma obra de ficção que tem como pano de fundo o Rio de Janeiro durante a gestão de Pereira Passos, em plena reforma urbana e sanitária, retratado o movimento da Revolta da Vacina, que envolveu a massa popular e até setores do exército. Uma obra de ficção comprometida com a fundamentação histórica. Exatamente o tipo de HQ que eu gosto.

Muitos autores se aproveitam de fatos ou eventos históricos para comporem a trama e criarem uma narrativa fictícia, às vezes se apropriando de personalidades históricas, ora como protagonistas, ora como personagens secundários. Temos, por exemplo, uma participação de Oswaldo Cruz no quadrinho, e não apenas fazendo uma breve figuração, mas estabelecendo uma diálogo longo com o protagonista. Nessas narrativas temos um pouco de tudo, de romance, de mistério e até fantasia. O diferencial está no compromisso do autor em fundamentar a trama e  não se valer apenas liberdade poética. Eu gosto de classificar esse tipo de HQ de "quadrinho documentado". 

Não é um termo muito bonito, mas acho que serve para descrever um tipo de HQ que  tem a preocupação em citar suas fontes, em introduzir ao leitor os passos da pesquisa que levaram à composição da narrativa e dos personagens. Eles trazem como anexo, por exemplo, textos de especialistas, esboços/rascunho dos desenhos e descrevem o processo de criação. Eu poderia citar como exemplo, "Degenerado", quadrinhos ricamente documentado, de Chloé Cruchaudet, "Rosa Vermelha", de Kate Evans, HQ sobre a qual já comentei aqui, outro quadrinho que tem a preocupação em apresentar documentos e bibliografia e, agora, "Revolta da Vacina".

Conheço André Diniz já há muitos anos e acompanho sua trajetória como autor. Por mais de uma vez, ele já me procurou para pedir opinião sobre suas HQs baseadas em fatos históricos. Por isso, eu sei que esse autor tem uma preocupação legítima com a pesquisa. Em "Revolta da Vacina" eu acredito que ele amadureceu ainda mais nesse quesito. Além de incluir no texto da HQ fatos históricos bem explicados e, em alguns pontos, detalhados, o autor nos presenteia com um anexo rico, com um artigo escrito pelo escritor e historiador Luiz Antônio Simas,  e uma série de charges publicadas durante o período da revolta da vacina, copiladas na HQ.

A narrativa gira em torno do personagem Zelito, um jovem que sonha em ser cartunista, mas que enfrenta desde o descrédito da família às suas próprias questões pessoais. Zelito é um jovem problemático, que deseja o sucesso imediato, não aceita o fracasso e não sabe valorizar aquilo que a vida lhe oferece. Trata-se de uma HQ que coloca em cena não apenas a história do Brasil do início do século XX mas que, também, apresenta o lado sombrio de pessoas que perdem a  noção do limite ao buscar a realização pessoal. 

Há muitos elementos psicológicos na trama e na composição dos personagens que podem ser identificados e, portanto, é um quadrinhos que explora, também, questões mentais. Seu texto é complexo e, ao mesmo tempo, muito simples e fluido. No aspecto físico, a obra em si é muito bonita, com capa dura e miolo impresso em papel de qualidade,  além de estar num preço acessível.

Eu recomendo a leitura para quem gosta de quadrinhos que trazem questões mais densas e para professores que querem ilustrar suas aulas, com uma fonte alternativa para o ensino da história e mesmo nas áreas de sociologia e saúde, incluindo saúde mental.  

domingo, 4 de dezembro de 2022

COMENTANDO A HQ BERTHA LUTZ E A CARTA DA ONU

Não tenho lido tantos quadrinhos quanto eu gostaria, mas estou muito satisfeita com aqueles que eu decidi  priorizar a leitura. Um deles é a HQ Bertha Lutz e a Carta da ONU, de Angélica Kalil, Mariamma Fonseca, com cores Faw Carvalho  e mentoria da quadrinista Ana Luiza Koehler. E já começo elogiando essa HQ por ser resultado de um trabalho conjunto que, acredito eu, resultou da troca de ideias entre todas as envidas, Um trabalho de história de memória em forma de quadrinhos que nos coloco dentro de um contexto de militância feminista num momento no qual as mulheres estão sendo incluídas de forma inédita no espaço macro político.

Mas comecei e já apontei diversos méritos da obra.

Quem acompanha as postagens que faço no meu blog sabe que tenho uma predileção por quadrinhos que trazem conteúdo biográfico ou autobiográfico. Da mesma forma gosto de obras que tem na história sua principal referência e que se preocupam em utilizar fontes e contextualizar, mesmo que isso não seja uma obrigatoriedade em obras de ficção.

Essa HQ sobre Bertha Lutz se encaixa dentro disso. É obra que eu chamaria de referência para quem quer trabalhar a história do feminismo mundial e brasileiro. Bertha, perdoem-me a intimidade, foi uma mulher fabulosa. Cientista, feminista, política, militante sufragista, ao longo de outras mulheres como Jerônima Mesquita foi responsável pela conquista do voto feminino.

Além disso, foi uma das poucas mulheres a participar da elaboração da Carta da ONU, em 1945. Esse documento, histórico, propunha a construção e um futuro melhor, após o flagelo de duas guerras mundiais. As mulheres estavam lá, 14 mulheres, sobre as quais acabamos tendo conhecimento não apenas da sua existência, pois confesso que além de Bertha, não conhecia nenhuma delas, como também de seus feitos e conquistas. Algumas delas nos trazem simpatia, outras nem tanto. É notável perceber que, ao contrário do que muitos pensam, as mulheres não pensam igual. As posições e ações de Bertha, por exemplo, iam de encontro a concepções mais conservadoras de algumas delas.


Mas como eu disse, trata-se de uma biografia histórica que traz à tona a memória do feminismo e não apenas a memória de uma feminista. Uma obra de ficção que dialoga com a história. Ficcção pois a Bertha que nos é apresentada e o resultado da apropriação e da visão de mundo as autoras, mas baseia-se em documentos, em relatos. Documentos de época como cartas, textos oficiais e fotografias.

Há na obra passagens muito interessantes, marcadas por uma crítica sutil, por uma ironia leve mas certeira, por informações e cenas que ajudam a enriquecer o estudo tanto da política internacional brasileira quando do que era ser mulher nos anos de 1940. Enfim, recomendo a leitura da obra, tanto pelo seu valor histórico e seu conteúdo rico quando pelo fato de ser, realmente, uma boa leitura.

E o que é uma boa leitura para mim?

Um texto leve, mas rico, um traço simples, mas marcante, uma obra despretensiosa mas que alcança tudo que propõe e muito mais.

OFICINA DE PERFUME INSPIRADA NO UNIVERSO DE HARRY POTTER

Oficina realizada no dia 18 de novembro com alunos do Ensino Fundamental II da E. M. Judith Lintz Guedes Machado, em Leopoldina - MG.

Acredito que várias gerações, até mesmo a minha, leu as obras da autora britânica   J. K. Rowling, criadora a série de romances de Harry Potter, que foram posteriormente adaptados para mídias como quadrinhos, filme e games. O universo fantástico de Harry Potter influenciou e ainda influencia muitas mentes jovens e ávidas por aventura. Mas não é apenas isso, Harry Potter se tornou, também, uma porta para a ciência.

Ficção Fantástica e ciências? Será?

Ora, claro que sim! Não foi muitas vezes na ficção que a ciência encontrou inspiração para grandes descobertas e invenções? O maior exemplo dessa afirmação talvez seja o aclamo romancista do século XIX, Júlio Verne. Com seus livros "Cinco Semanas em um Balão", "Viagem ao Centro da Terra”, "Da Terra à Lua", "Vinte Mil Léguas Submarinas" e "A Volta ao Mundo em 80 Dias" ele não apenas foi um dos pioneiros na da ficção científica como inspirou cientistas do mundo inteiro. Não seria demais dizer que Verne era pop, a sua maneira.

A cultura pop, e aqui especificadamente o universo de Harry Potter, pode ser um caminho para se introduzir a ciência entre os jovens, inspirar novos cientistas, criar futuros adultos mais críticos e abertos ao novo. Exemplo disso foi a oficina que tivemos nas escolas aqui em Leopoldina (MG), entre os dias 17 e 19 de novembro.  Com o título "Perfumes: obras de arte, composições químicas ou poções mágicas?", a oficina se baseia no universo de Harry Potter para levar aos jovens estudantes temas complexos ligados às Ciências da Natureza e suas Tecnologias, usando de interdisciplinaridade, discutindo tópicos de Biologia e Química numa abordagem CienciArte.


Falando assim, o leitor deve se perguntar: "Mas é possível?". Pois eu confirmei que é. Participei como observadora de uma das oficinas, com alunos de escola pública entre 12 e 14 anos e fiquei encantada tanto com o que eles aprenderam como pela forma como o conteúdo foi apresentado. Esses estudantes puderam ter acesso a informação sobre a botânica de plantas aromáticas, sobre metabolismo vegetal, biodiversidade, misturas, solutos e solventes orgânicos, moléculas apolares, volatilidade molecular, cultura do perfume: aspectos históricos e outros temas igualmente complexos, em duas horas de oficina. E, no final, todos muito perfumados, não queriam ir embora. Eu, particularmente fiquei fã do pesquisador/cientista /arte educador da Fiocruz Helder Silva Carvalho.

Eu o assisti ensinado meus alunos a lerem gráficos e entenderem o que leram. Depois de quase dois anos de isolamento, com pouco ou nenhum acesso a aulas remotas, estes estudantes voltaram para a sala de aula este ano com uma série de deficiências de aprendizagem que vão pesar no futuro. Mas na oficina eu percebi que eles estão abertos ao apreender novos conteúdos e que a forma como ensinamos faz diferença. Sei que não podemos ter uma oficina como essa toda semana, ou mesmo todos mês mas, se pudermos planejar atividades como esta com certa regularidade para alunos e mesmo para professores, creio que será possível vencer os desafios que a pandemia de Covid-19 trousse para os professores de todo o mundo.

Por fim, é preciso agradecer à FIOCRUZ por nos proporcionar essa atividade e à ASPAS, a Secretaria de Educação e o Colégio Imaculada Conceição que, juntos tornaram possível que nossos alunos e os alunos de outras escolas pudesse ter essa oportunidade.

Veja a seguir o depoimento do oficineiro sobre a experiência: