domingo, 25 de outubro de 2020

HISTÓRIA DA INFANCIA E DA EDUCAÇÃO NO BRASIL - BREVE PANORAMA

A história da educação infantil no Brasil está relacionada à história da infância que, a partir do século XIX, passou a ser um tema cada vez frequente tanto entre educadores quando no âmbito das políticas públicas. É um momento de grande e conquista sua independência em, em 1822. Assistimos, então, a construção de uma nação marcada pela escravidão e pela desigualdade social e econômica, na qual o assistencialismo foi a base das políticas públicas voltadas para a infância e a educação.

 

Ao longo da história do Brasil, a infância foi marcada pelo abandono das crianças pobres, entregues às instituições de caridade administradas pelo Estado ou pela igreja, uma prática constante nos séculos XVIII e XIX. Um abando que não era negado pela própria legislação portuguesa, que tutelava o Brasil. Neste período já podemos identificar legislações de proteção à infância, que seguiam as leis portuguesas do século XVI, que visava os grupos subalternos, tendo entre outros objetivos o combate à delinquência. Em 1775 e 1783 havia leis específicas acerca dos cuidados para com as crianças abandonadas, como consequência da pobreza dos pais.[1]


As crianças eram abanadas, geralmente pela, mães em instituições como as Santas Casas de Misericórdia, onde havia as “rodas dos expostos”, nas quais as mais ou pais, de forma anônima, depositavam bebês, muitos deles com poucas horas ou dias de vida. As crianças que sobreviviam eram encaminhadas a lares “adotivos”, cujas famílias recebiam ajuda financeira para a manutenção das crianças. No entanto, elas eram muitas vezes submetidas desde bem cedo a trabalhos extenuantes desde bem jovens, e se tornavam “crias”[2].

 


Havia ainda os asilos de órfãos que recebiam crianças abandonadas. Neles, por exemplo, as meninas eram preparadas para o casamento, uma vez que era prática comum, buscar nos asilos esposas jovens, cuja moral não era garantida pela instituição[3]. Ainda no período do Império, vimos surgir as escolas agrícolas, que acolhiam os meninos órfãos e os preparavam para trabalhar nas fazendas, como mão de obra barata e especializada. Este modelo foi mantido no século XX, durante a Primeira República.[4]


A educação das crianças pobres, quando ocorria, era voltada para o trabalho e/ou para a preparação para o casamento. Já as crianças de famílias abastardas, recebiam educação domiciliar, com tutores contratados pelos pais ou eram enviadas aos internatos, nos quais permaneciam por longos períodos sem contato com suas famílias e sob uma rígida disciplina que incluía, inclusive os castigos físicos.


Meninos e meninas de classes privilegiadas, ao longo do século XIX, foram educados sob o olhar de tutores e professores cuja função era ensinar conteúdos como língua portuguesa e matemática e, acima de tudo, disciplinar crianças e adolescentes, para que se tornem indivíduos responsáveis. Desde o período colonial a educação brasileira foi fortemente influenciada pela doutrina cristã católica, na qual a aquisição da leitura e da escrita que lhe permitisse ler os textos sagrados, era considerado suficiente para sua formação geral.


Cartilhas de alfabetização e ensino da religião eram comumente usadas, tanto no aprendizado a domicílio, quanto naquele público. Sedimentando o trabalho que já deveria ter sido feito pela mãe, na primeira fase da vida da criança, tais cartilhas voltavam à carga sobre tudo o que dizia respeito à vida espiritual. A escola deveria ter um crucifixo diante do qual, ao entrar, as crianças se persignavam, ajoelhando e benzendo-se pois “o sinal da santa cruz é o mais forte para vencer as tentações do inimigo comum”: o terrível e maldoso Satã.[5]


Mesmo após a instituição do ensino laico, com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759, o ensino ainda foi fortemente influenciado pela doutrina cristã. A religião esteve constantemente presente nas escolas brasileiras mesmo o Estado tendo declarado o ensino laico, na última Constituição brasileira, de 1988[6], sendo comum a presença de símbolos religiosos em escolas não confessionais, mesmo na atualidade.


Ao longo do século XIX e durante o século XX a infância foi chamando a atenção de educadores, médicos e políticos. Era preciso educar as crianças desde a mais tenra idade para inibir a delinquência, entre os pobres, e formar a juventude que iria tomar as rédeas da política e da economia do país, entre as elites. Escolas particulares deram atenção aos pequenos herdeiros de comerciantes e fazendeiros, enquanto que foram criadas creches para acolher os filhos dos trabalhadores das cidades. 

A partir da segunda metade do século XIX, o quadro das instituições destinadas à primeira infância era formado basicamente da creche e do jardim de infância ao lado de outras modalidades educacionais, que foram absorvidas como modelos em diferentes países. No Brasil, por exemplo, a creche foi criada exclusivamente com caráter assistencialista, o que diferenciou essa instituição das demais criadas nos países europeus e norte-americanos, que tinham nos seus objetivos o caráter pedagógico. Essas diferenças exigem que seja analisada na sua especificidade, para que se possa compreender a trajetória desse nível de ensino no caso brasileiro e na relação que estabelece com o contexto universal.[7]

Ao longo do século XIX crescia um discurso que via na escola uma instituição criada para preservar a infância e a juventude de todo mal. Este pensamento se pautava em questões morais defendidas pela medicina daquele período e sobre as quais irão ser erigidas as práticas higienistas que marcaram a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Estas práticas se assentavam no controle da sexualidade e ao combate aos vícios que eram reproduzidos desde o período colonial e se apoiavam numa “[...] pedagogia infantil disseminada na segunda metade do século XIX influência perniciosa, e moldadas de acordo com os princípios higienistas.[8]

Na passagem para o século XX, durante o período republicano, o crescimento das cidades fez acentuar a mortalidade infantil. As cidades brasileiras estavam constantemente sob ameaça de epidemias como a de varíola e de febre amarela, vitimando principalmente as crianças pequenas. Só na cidade do Rio de Janeiro faleceram, entre os anos de 1903 a 1909, vítimas da varíola, 1.646 crianças, entre 0 e 1 ano de idade.[9] Esta situação acabou levando ao surgimento de inciativas de cunho assistencialista como objetivo de proteger a infância.

Muitas creches foram criadas a partir da inciativa de organizações filantrópicas, voltadas para o atendimento às crianças pobres, cujas mães precisavam trabalhar fora de casa. Vários setores da sociedade defendiam a criação dos jardins de infância, baseada em um pensamento jurídico-policial, que relacionava o abandono à delinquência, e a ideário médico-higienista e religioso cujo objetivo era combater a mortalidade infantil.[10]

Ao longo do século XX este discurso assistencialista foi reforçado e reproduzido, no que diz respeito à educação pública, que se assentava na ideia de uma educação compensatória. A função da educação infantil estava relacionada não necessariamente com a aprendizagem. Ela era vista como um meio de suprir as necessidades básicas de crianças oriundas das classes populares, consideradas carente e inferiores, uma vez que não correspondiam ao ideal de infância, que tinha como modelo as crianças de classe média. Segundo Pascoal e Machado, “ a fim de superar as deficiências de saúde e nutrição, assim como as deficiências escolares, são oferecidas diferentes propostas no sentido de compensar tais carências”.[11] 

Nos anos de 1970, prevalecia ainda esse discurso assistencialista que defendia uma educação compensatória e que via a educação infantil também como uma forma de driblar o fracasso escolar, comumente relacionado à pobreza das famílias. Mais do que reformas sociais e investimentos no desenvolvimento humano, os defensores deste tipo de pensamento acreditavam que o cuidado com a infância iria solucionar os problemas do país, colocando sobre a educação infantil e a educação básica expectativas que não seriam alcançadas.

Nos anos de 1970, as políticas educacionais voltadas à educação de crianças de 0 a 6 anos defendiam a educação compensatória com vistas à compensação de carências culturais, deficiências linguísticas e defasagens afetivas das crianças provenientes das camadas populares. Influenciados por orientações de agências internacionais e por programas desenvolvidos nos Estados Unidos e na Europa, documentos oficiais do MEC e pareceres do então Conselho Federal de Educação defendiam a ideia de que a pré-escola poderia, por antecipação, salvar a escola dos problemas relativos ao fracasso escolar.[12] 

Este tipo de perspectiva ia de encontro com o pensamento de educadores como Paulo Freire para quem a educação não iria resolver todos os problemas do Brasil, mas era um passo importante neste caminho. Para Freire, a educação infantil deveria estar focada na criança, como sujeito do conhecimento, e visar não apenas sua formação escolar, mas, sobretudo, cidadã.[13] Não se poderia ignorar as necessidades das crianças, como seres sociais e simplesmente pensa-las como operários que iriam construir o futuro. Neste sentido, a década de 1980, sob influência do pensamento freiriano trouxe as primeiras conquistas, no que diz respeito aos direitos das crianças e à forma como a educação infantil passou a ser tratada dentro das políticas públicas.

Uma legislação que garantisse a educação infantil nas escolas públicas e que pudesse atender às classes menos favorecidas só foi possível na década de 1980, graças à pressão da sociedade civil, que se mobilizou em prol da defesa da infância. O tema foi colocando no centro dos debates sobre propostas para a educação, que deveriam constar da nova Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988. A partir de então, à criança de zero a seis anos passou a ser considerada como sujeito de direitos, podendo gozar plenamente de seus direitos de cidadania.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, é “[...] O dever do Estado para com a educação será efetivado mediante a garantia de oferta de creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade”[14]. Estas instituições não se limitariam apenas aos cuidados físicos para com as crianças, mas também estariam voltadas para um trabalho, deixando de estar vinculadas à assistência social para atuarem também como parte da formação educacional da criança, na pré-alfabetização.

Em 1990, foi aprovada a Lei 8.069/90, que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente, conferindo às crianças os direitos humanos. Segundo o Estatuto, a criança e o adolescente devem ter assegurados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, para que seja possível, desse modo, ter acesso às oportunidades de “[...] desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”[15] Complementado os ganhos legais para infância no Brasil, neste período, foi aprovada em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que inseriu a educação infantil como primeira etapa da Educação Básica, colocando como sua finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, como forma  de complemento ao papel da família e da comunidade.[16]



[1] VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas, Papirus, 1999, p. 21.

[2] Nome que se dava a crianças, principalmente meninas, adotadas informalmente, e que se tornavam criados e criadas nas casas de senhores e senhores e senhoras ricos, trabalhando em um regime de semiescravidão, por casa e comida, e passíveis de castigos físicos.

[3] LEITE, Míriam Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro, no século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: HUCITEC, Universidade de São Paulo, 1984, p. 38

[4] NOGUEIRA, Natania. Aparecida da Silva. Leopoldina: instrução, mito político e formação de elites na Zona da Mata Mineira (1895-1930). Leopoldina: Ed. do autor, 2011, p. 95.

[5] PRIORE, Mary Del. O cotidiano da criança livre no brasil entre a colônia e o império. In: História das crianças no Brasil / Mary Del Priore organizadora 7. ed. – São Paulo: Contexto, 2010, p. 55.

[6] O Brasil teve várias constituições, sendo a primeira as Constituição do Império, de 1824, e a última a Constituição de 1988, promulgada com o fim da Ditadura Militar (1964-1985).

[7] PASCHOAL. Jaqueline Delgado, MACHADO, Maria Cristina Gomes. A história da educação infantil no Brasil: avanços, retrocessos e desafios dessa modalidade educacional. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.33, p.78-95,mar.2009. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8639555>. Acesso em: 10 set. 2020, p. 81.

[8] RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. História da saúde mental infantil: a criança brasileira da colônia à República Velha. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 1, p. 29-38, jan./abr. 2006. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a04.pdf>. Acesso em 08 set. 2020.

[9] PEREIRA, Thales Augusto Zamberlan. Mortalidade entre brancos e negros no Rio de Janeiro após a abolição. Estud. Econ., São Paulo, vol.46, n.2, p. 439-469, abr.-jun. 2016. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/ee/v46n2/0101-4161-ee-46-02-0439.pdf>. Acesso em 08 set. 2020.

[10] PASCHOAL, Op. Cit, 2009, p.83.

[11] PASCHOAL, Op. Cit, 2009, p.83.

[12] KRAMER , Sonia As crianças de 0 a 6 anos nas políticas educacionais no brasil: educação infantil e/é fundamental. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 797-818, out. 2006. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 29 ago 2020, p. 799.

[13] SAUL, Alexandre, SILVA, Camila Godói da. Contribuições de Paulo Freire para a educação infantil: implicações para as políticas públicas. Disponível em <https://anpae.org.br/simposio2011/cdrom2011/PDFs/trabalhosCompletos/comunicacoesRelatos/0020.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2020.

[14] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 29 ago. 2020.

[15] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 29 ago. 2020.

[16] BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: MEC, 1996. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 29 ago. 2020.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

GRAMA, AS COMFORT WOMEN E AS MULHERES NOS QUADRINHOS

Eu tive o prazer de ler recentemente o manhwa (história em quadrinhos coreana) “Grama”, da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, publicada no Brasil, em 2020, pela Pipoca & Nanquim. Também assisti às entrevistas a autora e tive o prazer de poder trocar com ela algumas palavras via e-mail. Aliás, vale ressaltar que Keum Suk Gendry-Kim foi muito gentil, tendo respondido às minhas poucas perguntas solicitamente.

Grama é um quadrinho que todos deveriam ler. Ele fala sobre a história dramática das mulheres que foram vitimadas pelo sistema de comfort women (mulheres de conforto), criado pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Este episódio é pouco conhecido, mas muito representativo, pois expõe mazelas da sociedade patriarcal que ainda permanecem e que precisam ser combatidas. Fala sobre a escravidão sexual, que vitimou centenas de milhares de mulheres e que ainda está presente nos dias de hoje.

Comfort women é um termo utilizado para designar as mulheres que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram forçadas à escravidão sexual em bordéis criados pelo exército japonês. Esse sistema de exploração sexual baseado na criação de “estações ou casas de conforto” vitimou centenas de milhares de mulheres que ainda aguardam a reparação pelos danos físicos e psicológicos deixados pela experiência.

O sistema de comfort women teve origem na prática institucionalizada pelo Estado japonês de enviar mulheres jovens ao estrangeiro como escravas sexuais. País profundamente patriarcal, o Japão tratava as mulheres como uma mercadoria. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão impôs essa realidade às suas colônias, criando o sistema de comfort women para atender às necessidades de seus soldados. 

Foram criadas cerca de 400 “estações de conforto”, espalhadas pela China, Filipinas, Taiwan, Cingapura, Indonésia, Birmânia, Tailândia e Vietnã, sempre próximas às bases militares. Estima-se que cerca de 80 a 200 mil mulheres foram forçadas a prestar serviços sexuais a soldados japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, sendo que apenas 30% delas sobreviveram. O maior número de mulheres era de origem coreana, cerca de 80% delas.[1]

A justificativa do governo japonês para a criação dessas estações era de combater a propagação de doenças sexuais e prevenir crimes sexuais por soldados em áreas ocupadas. Esse tipo de crime havia ocorrido durante a invasão da China, entre 1937 e 1938, quando soldados japoneses estupraram e assassinaram entre 20 mil e 80 mil mulheres, entre crianças e idosas, no episódio que ficou conhecido como “Estupro Nanjing”.[2] Mas não se resumia apenas a isso. 

Uma vez que eram consideradas prostitutas a serviço do Estado, a violação das comfort women não era qualificada como estupro. No entanto, aquelas mulheres, em sua maioria, foram aliciadas com falsas promessas de emprego e tiradas de suas famílias pobres, que eram enganadas pelos aliciadores. Muitas delas eram raptadas e enviadas para campos de trabalho forçado e para “estações de conforto”. Além de vítimas de discriminação de gênero, elas também tiveram sua situação de escravas sexuais condicionada ao seu status social e econômico.

A pobreza e a fome eram constantes para grande parte da população da Coreia ao longo da sua história. Essa realidade foi agravada durante as invasões e guerras às quais a região foi submetida na primeira metade do século XX. Keum Suk Gendry-Kim, durante uma live promovida pelo Centro de Cultura Coreana no Brasil, afirmou que a questão das comfort women era uma questão de classes, uma vez que vitimava aqueles que eram mais pobres, que não possuíam meios de se defender.[3]

Grama nos coloca dentro das memórias de uma das sobreviventes, a vovó Ok-sun Lee. É, portanto, é um quadrinho biográfico e, ao mesmo tempo, uma reportagem em quadrinhos ou jornalismo em quadrinhos que dá voz àquelas mulheres que foram esquecidas ou silenciadas pela história. Este manhwa é, acima de tudo, um lugar de memória e de fala dessas mulheres.

Deve-se destacar aqui o comprometimento da autora em contextualizar sua obra, que, embora tenha alguns componentes ficcionais que ajudam a tornar a narrativa mais receptiva, prima pelo bom trabalho de pesquisa. Ao mesmo tempo em que registra as memórias da vovó Ok-sun Lee, Keum Suk Gendry-Kim procura inserir o leitor no contexto histórico, marcado pelo imperialismo Japonês e pela Segunda Guerra Mundial.

“Grama” mistura os registros históricos daquele período com o relato memorialístico de uma sobrevivente, o que agrega à obra um valor maior enquanto referência para aqueles que desconhecem a história do leste asiático, possibilitando que, a partir dessa contextualização, o leitor e a leitora possam se apropriar de informações importantes para a compreensão do enredo.

Keum Suk Gendry-Kim, nascida em 1971, ao contrário de outros autores de manhwa, começou a publicar quadrinhos mais tarde. Obteve sua formação originalmente em artes plásticas, tendo estudado na École Supérieures Des Arts Decoratifs, na França.  Percebe-se que Keum Suk Gendry-Kim tem a preocupação em criar uma narrativa que ultrapasse o mero entretenimento, agregando ainda mais valor à sua obra que tem, em primeiro lugar, um compromisso social. 

Em respeito às vítimas e suas famílias, Keum Suk Gendry-Kim teve especial cuidado com as cenas que envolviam violência. As cenas nas quais as mulheres são vítimas de violência não são explícitas, porém não são omissas. Cabe ao leitor interpretá-las de acordo com os elementos gráficos e narrativos a partir dos quais elas são descritas.  Segundo autora, por ser mulher, consegue se colocar melhor no lugar das sobreviventes e empatizar com sua dor de uma forma que um homem não conseguiria. “Precisamente por ser mulher, provavelmente estou melhor posicionada, em relação aos artistas masculinos, para compreendê-las. Prestei atenção especialmente às cenas de estupro para não mostrá-las diretamente nas imagens.”[4]  

“Grama” e outras produções baseadas em relatos de sobreviventes são importantes para a construção de uma história das mulheres e dos grupos que, dada sua origem social, religiosa ou mesmo sua orientação sexual, foram e são tratados com brutalidade em diversas regiões do mundo, mergulhadas ou não em conflitos. Tornar pública essa história e buscar por uma reparação trata-se, acima de tudo, de um “dever de memória”.

O conceito do “dever de memória”, ou devoir de mémoire, surgiu na França após a Segunda Guerra Mundial. Ele parte do princípio de que a sociedade precisa se responsabilizar e buscar reparação pelos erros cometidos no passado. O caso das comfort women enquadra-se dentro desse conceito, tanto por ser um crime de guerra e um crime contra os direitos humanos quanto pela obrigação de reparação por parte do país agressor, o Japão.

Ao contrário da Alemanha, que, após a Segunda Guerra Mundial, assumiu a responsabilidade pelos crimes cometidos contra a humanidade, o Japão não apenas negou a existência das “estações de conforto” como também destruiu provas da sua existência. Além disso, o sistema não foi encerrado após a guerra. Durante a ocupação estadunidense, ele continuou funcionando, atendendo agora aos soldados dos Estados Unidos. Estima-se que, após a guerra, cerca de 70.000 mulheres foram escravizadas para atender a 350.000 soldados durante a ocupação do Japão.[5]

A busca pelo reconhecimento dos crimes e por reparação tem sido a luta das sobreviventes e suas famílias desde a década de 1990, quando surgiram as primeiras denúncias.  A sociedade civil mobilizou-se, tanto na Coreia quanto em outros países, nos quais as mulheres também foram vítimas da escravidão sexual durante e depois da Segunda Guerra, incluindo o próprio Japão. “Grama” e outras obras que abordam o tema cumprem o papel de reivindicar esse “dever de memória” e ser o lugar de fala dessas mulheres que, por quase 50 anos, permaneceram resignadas e silenciadas em seus sofrimentos, mas que agora estão tendo-os registrados nos anais da história.

“Grama” é uma obra ímpar em muitos aspectos. Em primeiro lugar, por ser um quadrinho que denuncia um crime de guerra e contra a humanidade, levando, em 9 idiomas, a história das comfort women para leitores de vários países do mundo. Em segundo lugar, por demonstrar a versatilidade das HQs enquanto mídia, fontes documentais e obras artístico-literárias. Nesse sentido, é importante destacar a importância da temática abordada e do “dever de memória” que ela evoca. A luta das comfort women tornou-se a luta de todas as mulheres contra a exploração sexual e o machismo, que as sufocam e oprimem em todo mundo, não apenas no Leste Asiático. “Grama” fala com essas mulheres a partir da linguagem universal da justiça, da reivindicação de uma memória, mesmo que dolorosa, dando nome e identidade a mulheres que foram por décadas silenciadas.

* Este texto é uma adaptação de uma artigo maior que foi publicado em 2020, na revista "Pesquisa & Educação a Distância" e que pode ser lido, clicando aqui.



[1] OKAMOTO, Julia Yuri. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico. Revista de Iniciação Científica em Relações Internacionais, João Pessoa, v. 1, n. 1, 2013. p. 92-93. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/index.php/ricri/article/view/17698/10136>. Acesso em: 12 out. 2020.

[2] OKAMOTO, 2013, p. 94.

[3] CENTRO DE CULTURA COREANA NO BRASIL. Sessão de bate papo com a autora de Grama, Keum Suk Gendry-Kim. 13 ago. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PePYgx5-2V0&t=2168s>. Acesso em: 29 set. 2020.

[4] NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. Entretien avec l'artiste de bande dessinée. Entrevista com Keum Suk Gendry-Kim. Mensagem recebida por: <natania.nogueira2010@gmail.com> em 30 set. 2020.

[5] RAYMOND, Janice. 70 anos depois, um novo sistema de “mulheres de conforto”. Medium. Feminismo com classe. Disponível em: < https://cutt.ly/ngk6PKO >. Acesso em: 28 set. 2020.

 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

REAL LIFE: COMO OS COMICS REPRESENTAVAM O BRASIL DURANTE A II GUERRA

Durante o meu mestrado eu consultei muito o acervo do Comic Book Plus, um site com scaners de quadrinhos (comics), notadamente da "Era de Ouro" dos quadrinhos nos Estados Unidos. Se não engano, todos já em domínio público. Retirei muito material de lá para escrever artigos e minha dissertação de mestrado. Hoje o amigo Pedro Bouça indicou a leitura de um comic publicado em 1944, disponibilizado no Comic Book Plus. Um achado, por várias razões.

Primeiro, primeiro porque é um documento que registra o discurso oficial dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Segundo porque  por meio dele podemos ter acesso a representações do Brasil, a partir o olhar estadunidense. A revista, cujo título já renderia uma longa problematização, chama-se Real Life Comics (Quadrinhos da Vida Real) #19, de setembro de 1944. Uma revista que diz trazer "As verdadeiras aventuras dos maiores heróis do mundo". 

Ela está dividida em nove partes, cada uma com uma HQ que ou enaltece os feitos heroicos de um aliado dos Estados Unidos, ou fala dos esforços destes mesmos aliados em manterem a democracia. A publicação passa a ideia de ser baseada em fatos históricos.

Dentro do espírito da política da boa vizinhança, o título do editorial da revista é "Good Neighbors". Resumidamente, o editor detona Hitler e enaltece os valorosos vizinhos, latino-americanos, que estão lutando pela democracia. Discurso próprio da época e até certo ponto crível, se não fosse um detalhe: ele apresenta ditadores latino-americanos como sendo defensores da democracia. 

Vamos pegar o exemplo do Brasil, cuja história é contada desde a chegada de Cabral, na quarta HQ da revista, cujo título  é Brazil. No primeiro quadrinho nosso país é apresentado da seguinte forma: "O colosso das Américas promete a ajuda de 45 milhões de bons vizinhos e uma reserva infinita de matérias-primas... para a salvaguarda a democracia pan-americana." Destaque para a parte da "reserva infinita de matérias-primas". Como todo bom país imperialista, os Estados Unidos estavam de olho nas nossas reservas naturais.

Em seguida temos a um breve resumo da história da colonização Portuguesa, passando pela descoberta e até citando a invasão de Pernambuco pelos holandeses que, pasmem, segundo o quadrinho, que está mostrando a "Vida Real", tomaram a região com o objetivo de cultivar açúcar e...CAFÉ! 

Pois é, também fiquei assustada com o fato de que já no século XVII os holandeses produziam e exportavam café em larga escala. Pelo menos não omitiram a escravidão dos indígenas no início da colonização, no entanto, não citam os escravos africanos. Mas calma, a  cereja do bolo ainda vai chegar. Segundo a HQ, os bravos bandeirantes encontraram ouro na... AMAZÔNIA.

Seguindo um pouco mais, temos a chegada da família real portuguesa, Dom Pedro I proclamando a independência. Dom Pedro II aparece como a pessoa que semeou a democracia no Brasil, ao se colocar contra o trabalho escravo (agora citaram os escravos, mas não sua origem africana). Falar em democracia durante o século XIX, quando o Brasil é uma monarquia autoritária, e três poderes (legislativo, executivo e judiciário) são limitados pelo poder moderador que é de uso exclusivo do imperador, é pra lá de confuso.

Outra coisa, no quadrinho, nosso Imperador declara que ele deseja que todos os brasileiros possam usufruir dos mesmos direitos não importando a cor. Peraí? Mas cadê a Princesa Isabel? Pois é, ela não aparece quando o assunto é a abolição, dando a entender que Dom Pedro II é o libertador, aquele que aboliu a escravidão no Brasil. As mulheres raramente aparecem na HQ, e quanto o fazem é apenas para compor o cenário.  

A HQ apresenta Dom Pedro II como vítima de um golpe, acusado de ser um ditador após ter libertado os escravos. Deodoro é apresentado como um inimigo da democracia e é substituído por Floriano. Não que Deodoro da Fonseca não tenha tido uma tendência autoritária, mas Floriano estava longe de ser um democrata. Além disso há um contexto bem maior por detrás da sua renúncia, que não é citado em nenhum momento. Aliás, vale destacar que os uniformes dos militares brasileiros e do próprio Dom Pedro II parecem tirados de um filme/quadrinho da Guerra da Secessão.

Mas eles foram meticulosos e até citaram a participação da marinha brasileira e da força aérea na Primeira Guerra Mundial. Que não foi tão heroica como o quadrinho deixa a entender. Na verdade modesta e até teve episódios vergonhosos. 

Ficamos famosos pelo episódio da "Batalha das Toninhas", no qual o encouraçado Bahia confundiu um cardume de toninhas com um submarino alemão, mantando cerca de 46 delas e manchando o mar no Estreito de Gibraltar de vermelho. As toninhas são mamíferos dóceis parecidos com o golfinho. Um verdadeiro crime ambiental.


Mas nada supera o final da história, contada segundo a visão dos Estados Unidos. A emergência do Movimento Integralista no Brasil, durante o governo de Getúlio Vargas. E, acreditem, Vargas é apresentado como um defensor da democracia (estamos na ditadura do Estado Novo) e inimigo dos fascistas (os mesmo que o ajudaram a dar o golpe do Estado Novo). Ele até atira contra um integralista! Quase um Clint Eastwood gaúcho. 

Aliás, o quadrinho da "Vida real" fala de uma tentativa de invasão alemã ao Brasil que foi refutada pelo povo e pelo exército e que leva o povo Brasileiro a pedir que o país entre em guerra. Detalhe, a bandeira do Brasil é representada como sendo vermelha. 

Conteúdo ideológico a parte, Real Life Comics é uma obra de ficção os início ao fim. Ela faz uma paródia da história do Brasil, contada a partir do discurso que os Estados Unidos queriam propagar entre seus cidadãos. A palavra democracia é utilizada de forma anacrônica e abusiva e os autores da HQ não tiveram o trabalho de fazer uma pesquisa descente sobre o Brasil, reescrevendo a nossa história de forma grosseira. Nem mesmo a bandeira brasileira foi representada corretamente.

Mas é um documento riquíssimo e que pode ser utilizado em sala de aula justamente para incitar os alunos a apontarem os erros e a pesquisarem sobre a História do Brasil. Como professora eu me sinto estimulada a usar este documento em atividades em sala de aula e mesmo em avaliações. Como pesquisadora, me interessa as representações que estão presentes no quadrinhos e as apropriações que foram feitas dele.

O autor dessa HQ sobre a história do Brasil é Henry Carl  (1890 - 1957) Kiefer, quadrinista estadunidense que participou da produção da série Classics Illustrated. Sua formação em artes era francesa, estudou no Julian Atelier em Paris, França. Trabalhou em projetos de várias editoras e foi muito ativo até 1953.

Quem quiser conferir a história na íntegra, basta clicar aqui! Para quem se interessou pela HQ, há outros números dela, que podem resultar em um ótimo estudo de caso ou mesmo num projeto para mestrado ou doutorado.

HISTÓRIA DA ARTE POR MEIO DOS QUADRINHOS: OS GUARDIÕES DO LOUVRE


Recentemente eu li o mangá "Guardiões do Louvre", de Jiro Taniguchi (1947-2017). Não sou leitora de mangás. Na verdade, meu interesse pela cultura do leste asiático é bem recente, embora eu tenha assistido a muitos animés na minha juventude. Eu comecei com quadrinhos estadunidenses e nacionais, passei para os europeus e agora estou me interessando pelos quadrinhos asiáticos, de um modo geral.

“Guardiões do Louvre” é o tipo de HQ indicada para o público adulto e um público que tem algum conhecimento sobre história e arte, nem que seja o mínimo. Eu vou classifica-lo aqui como uma obra de História da Arte em quadrinhos, com uma narrativa que mistura ficção/fantasia com história. O cenário, Paris. O protagonista, um mangaká, ou seria o Museu do Louve?

“Guardiões do Louvre” se passa nos corredores do Museu do Louvre um dos mais importantes do mundo, com uma coleção tão vasta que se o visitante for parar para apreciar obra por obra, relíquia por relíquia, precisaria de meses para completar a visita, e ainda correndo o risco de deixar algo de fora. Não é meu museu preferido (já visitei muitos museus, então posso me dar ao luxo de ter um preferido) mas está entre os mais memoráveis (três vezes por sinal) e que pretendo retornar em breve, ainda mais depois de ler essa HQ, que literalmente dá uma alma ao Louvre.

Por onde começo? A história narra a viagem de um quadrinista a Paris, França. Ele visita o Museu do Louvre e é agraciado com uma guia muito especial: Nice, a Vitória de Samotrácia. Ela é uma das “guardiãs” do palácio do Louvre que, segundo suas palavras “é um labirinto do sonho. Um lugar que existe entre os sonhos e a realidade” (p.27).

Cada objeto que foi levado para o Louvre teria, segundo a explicação de Nice, uma alma. E eram essas almas que guardavam o museu e testemunharam as mudanças pelas quais ele passou. Uma verdadeira história dos objetos e da memória que eles carregam. O Louvre é, por excelência, um lugar de memória, não apenas por ser um museu, mas por toda a sua trajetória enquanto parte da cultura material francesa. E sua história também está inserida na narrativa.


Transportado por uma dimensão que fica entre o sonho a realidade, o protagonista é apresentado a vários gênios da arte mundial, e vai nos introduzindo na história da vida e da arte de nomes como Jean Baptiste Camille Corot (1796-1875), paisagista; Chu Asai (1856-1907), pintor japonês; Antônio Fontanesi (1818-1882), paisagista italiano e, meu preferido, Vicente Van Gogh (1853-1890). O traço e a paisagem são belíssimos. Uma pessoa que nunca esteve nos lugares retratados poderia reconhece-los facilmente, tendo por base o desenho de Jiro Taniguchi. Quem já foi ao Louvre, pode reconhecer os espaços que foram transpostos para o papel.

Guardiões do Louvre é, ao mesmo tempo, uma obra de fantasia, uma obra de história da arte, um local de memória e uma obra de arte na forma de quadrinhos. Esse mangá me fez perceber que ir a museu e conhecer o museu são coisas diferentes. Turista nem sempre tem tempo ou paciência de mergulhar numa obra, analisar uma relíquia e pensar sobre ela. Ele tem um cronograma e está sempre com pressa. Por isso, ir ao Louvre requer tempo e paciência, assim como ir a qualquer outro museu. Fica a lição que a HQ deixa para nós, que gostamos mas nem sempre sabemos apreciar o espaço museológico.

Por fim, eu poderia escrever páginas sobre cada impressão que teve ao longo da leitura (que fiz questão que fosse lenta justamente para apreciar melhor). Mas vou encerrar por aqui, recomendando a quem queira e possa adquirir. Aliás, e edição é muito bonita e luxuosa, não deixando nada a desejar aos álbuns produzidos na França e vale cada centavo.