quarta-feira, 14 de outubro de 2020

REAL LIFE: COMO OS COMICS REPRESENTAVAM O BRASIL DURANTE A II GUERRA

Durante o meu mestrado eu consultei muito o acervo do Comic Book Plus, um site com scaners de quadrinhos (comics), notadamente da "Era de Ouro" dos quadrinhos nos Estados Unidos. Se não engano, todos já em domínio público. Retirei muito material de lá para escrever artigos e minha dissertação de mestrado. Hoje o amigo Pedro Bouça indicou a leitura de um comic publicado em 1944, disponibilizado no Comic Book Plus. Um achado, por várias razões.

Primeiro, primeiro porque é um documento que registra o discurso oficial dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Segundo porque  por meio dele podemos ter acesso a representações do Brasil, a partir o olhar estadunidense. A revista, cujo título já renderia uma longa problematização, chama-se Real Life Comics (Quadrinhos da Vida Real) #19, de setembro de 1944. Uma revista que diz trazer "As verdadeiras aventuras dos maiores heróis do mundo". 

Ela está dividida em nove partes, cada uma com uma HQ que ou enaltece os feitos heroicos de um aliado dos Estados Unidos, ou fala dos esforços destes mesmos aliados em manterem a democracia. A publicação passa a ideia de ser baseada em fatos históricos.

Dentro do espírito da política da boa vizinhança, o título do editorial da revista é "Good Neighbors". Resumidamente, o editor detona Hitler e enaltece os valorosos vizinhos, latino-americanos, que estão lutando pela democracia. Discurso próprio da época e até certo ponto crível, se não fosse um detalhe: ele apresenta ditadores latino-americanos como sendo defensores da democracia. 

Vamos pegar o exemplo do Brasil, cuja história é contada desde a chegada de Cabral, na quarta HQ da revista, cujo título  é Brazil. No primeiro quadrinho nosso país é apresentado da seguinte forma: "O colosso das Américas promete a ajuda de 45 milhões de bons vizinhos e uma reserva infinita de matérias-primas... para a salvaguarda a democracia pan-americana." Destaque para a parte da "reserva infinita de matérias-primas". Como todo bom país imperialista, os Estados Unidos estavam de olho nas nossas reservas naturais.

Em seguida temos a um breve resumo da história da colonização Portuguesa, passando pela descoberta e até citando a invasão de Pernambuco pelos holandeses que, pasmem, segundo o quadrinho, que está mostrando a "Vida Real", tomaram a região com o objetivo de cultivar açúcar e...CAFÉ! 

Pois é, também fiquei assustada com o fato de que já no século XVII os holandeses produziam e exportavam café em larga escala. Pelo menos não omitiram a escravidão dos indígenas no início da colonização, no entanto, não citam os escravos africanos. Mas calma, a  cereja do bolo ainda vai chegar. Segundo a HQ, os bravos bandeirantes encontraram ouro na... AMAZÔNIA.

Seguindo um pouco mais, temos a chegada da família real portuguesa, Dom Pedro I proclamando a independência. Dom Pedro II aparece como a pessoa que semeou a democracia no Brasil, ao se colocar contra o trabalho escravo (agora citaram os escravos, mas não sua origem africana). Falar em democracia durante o século XIX, quando o Brasil é uma monarquia autoritária, e três poderes (legislativo, executivo e judiciário) são limitados pelo poder moderador que é de uso exclusivo do imperador, é pra lá de confuso.

Outra coisa, no quadrinho, nosso Imperador declara que ele deseja que todos os brasileiros possam usufruir dos mesmos direitos não importando a cor. Peraí? Mas cadê a Princesa Isabel? Pois é, ela não aparece quando o assunto é a abolição, dando a entender que Dom Pedro II é o libertador, aquele que aboliu a escravidão no Brasil. As mulheres raramente aparecem na HQ, e quanto o fazem é apenas para compor o cenário.  

A HQ apresenta Dom Pedro II como vítima de um golpe, acusado de ser um ditador após ter libertado os escravos. Deodoro é apresentado como um inimigo da democracia e é substituído por Floriano. Não que Deodoro da Fonseca não tenha tido uma tendência autoritária, mas Floriano estava longe de ser um democrata. Além disso há um contexto bem maior por detrás da sua renúncia, que não é citado em nenhum momento. Aliás, vale destacar que os uniformes dos militares brasileiros e do próprio Dom Pedro II parecem tirados de um filme/quadrinho da Guerra da Secessão.

Mas eles foram meticulosos e até citaram a participação da marinha brasileira e da força aérea na Primeira Guerra Mundial. Que não foi tão heroica como o quadrinho deixa a entender. Na verdade modesta e até teve episódios vergonhosos. 

Ficamos famosos pelo episódio da "Batalha das Toninhas", no qual o encouraçado Bahia confundiu um cardume de toninhas com um submarino alemão, mantando cerca de 46 delas e manchando o mar no Estreito de Gibraltar de vermelho. As toninhas são mamíferos dóceis parecidos com o golfinho. Um verdadeiro crime ambiental.


Mas nada supera o final da história, contada segundo a visão dos Estados Unidos. A emergência do Movimento Integralista no Brasil, durante o governo de Getúlio Vargas. E, acreditem, Vargas é apresentado como um defensor da democracia (estamos na ditadura do Estado Novo) e inimigo dos fascistas (os mesmo que o ajudaram a dar o golpe do Estado Novo). Ele até atira contra um integralista! Quase um Clint Eastwood gaúcho. 

Aliás, o quadrinho da "Vida real" fala de uma tentativa de invasão alemã ao Brasil que foi refutada pelo povo e pelo exército e que leva o povo Brasileiro a pedir que o país entre em guerra. Detalhe, a bandeira do Brasil é representada como sendo vermelha. 

Conteúdo ideológico a parte, Real Life Comics é uma obra de ficção os início ao fim. Ela faz uma paródia da história do Brasil, contada a partir do discurso que os Estados Unidos queriam propagar entre seus cidadãos. A palavra democracia é utilizada de forma anacrônica e abusiva e os autores da HQ não tiveram o trabalho de fazer uma pesquisa descente sobre o Brasil, reescrevendo a nossa história de forma grosseira. Nem mesmo a bandeira brasileira foi representada corretamente.

Mas é um documento riquíssimo e que pode ser utilizado em sala de aula justamente para incitar os alunos a apontarem os erros e a pesquisarem sobre a História do Brasil. Como professora eu me sinto estimulada a usar este documento em atividades em sala de aula e mesmo em avaliações. Como pesquisadora, me interessa as representações que estão presentes no quadrinhos e as apropriações que foram feitas dele.

O autor dessa HQ sobre a história do Brasil é Henry Carl  (1890 - 1957) Kiefer, quadrinista estadunidense que participou da produção da série Classics Illustrated. Sua formação em artes era francesa, estudou no Julian Atelier em Paris, França. Trabalhou em projetos de várias editoras e foi muito ativo até 1953.

Quem quiser conferir a história na íntegra, basta clicar aqui! Para quem se interessou pela HQ, há outros números dela, que podem resultar em um ótimo estudo de caso ou mesmo num projeto para mestrado ou doutorado.

3 comentários:

Vinicius disse...

Muito bom o texto, mas o que faz pensar que a participação do Brasil na 1ª Guerra Mundial foi "vergonhosa?

Cumprimentos.

Natania Nogueira disse...

A participação do Brasil foi mínima, com pilotos de avião e patrulhando o atlântico. Nossas forças armadas estavam despreparadas e a marinha cometeu muito erros. Tanto que nós temos um grande destaque para a a ação da FEB e FAB durante a II Guerra e quase nada falando sobre a I Guerra, principalmente nos livros de história. A batalha das Toninhas, é um exemplo desse despreparo, e um episódio vergonhoso. O destaque maior foi para os nossos aviadores e para os médicos que ajudaram a Cruz Vermelha. Mas digo isso por alto, não é minha especialidade. Mas faça o teste e pesquise sobre a participação do Brasil na Primeira Guerra. Compare com a participação do Brasil na II Guerra Mundial. Tivemos mais méritos e mais ganhos no segundo conflito.

Carlos de Brito Lacerda disse...

Artigo válido. Também vale pelo sua abordagem em nos trazer algo inédito.