domingo, 25 de outubro de 2020

HISTÓRIA DA INFANCIA E DA EDUCAÇÃO NO BRASIL - BREVE PANORAMA

A história da educação infantil no Brasil está relacionada à história da infância que, a partir do século XIX, passou a ser um tema cada vez frequente tanto entre educadores quando no âmbito das políticas públicas. É um momento de grande e conquista sua independência em, em 1822. Assistimos, então, a construção de uma nação marcada pela escravidão e pela desigualdade social e econômica, na qual o assistencialismo foi a base das políticas públicas voltadas para a infância e a educação.

 

Ao longo da história do Brasil, a infância foi marcada pelo abandono das crianças pobres, entregues às instituições de caridade administradas pelo Estado ou pela igreja, uma prática constante nos séculos XVIII e XIX. Um abando que não era negado pela própria legislação portuguesa, que tutelava o Brasil. Neste período já podemos identificar legislações de proteção à infância, que seguiam as leis portuguesas do século XVI, que visava os grupos subalternos, tendo entre outros objetivos o combate à delinquência. Em 1775 e 1783 havia leis específicas acerca dos cuidados para com as crianças abandonadas, como consequência da pobreza dos pais.[1]


As crianças eram abanadas, geralmente pela, mães em instituições como as Santas Casas de Misericórdia, onde havia as “rodas dos expostos”, nas quais as mais ou pais, de forma anônima, depositavam bebês, muitos deles com poucas horas ou dias de vida. As crianças que sobreviviam eram encaminhadas a lares “adotivos”, cujas famílias recebiam ajuda financeira para a manutenção das crianças. No entanto, elas eram muitas vezes submetidas desde bem cedo a trabalhos extenuantes desde bem jovens, e se tornavam “crias”[2].

 


Havia ainda os asilos de órfãos que recebiam crianças abandonadas. Neles, por exemplo, as meninas eram preparadas para o casamento, uma vez que era prática comum, buscar nos asilos esposas jovens, cuja moral não era garantida pela instituição[3]. Ainda no período do Império, vimos surgir as escolas agrícolas, que acolhiam os meninos órfãos e os preparavam para trabalhar nas fazendas, como mão de obra barata e especializada. Este modelo foi mantido no século XX, durante a Primeira República.[4]


A educação das crianças pobres, quando ocorria, era voltada para o trabalho e/ou para a preparação para o casamento. Já as crianças de famílias abastardas, recebiam educação domiciliar, com tutores contratados pelos pais ou eram enviadas aos internatos, nos quais permaneciam por longos períodos sem contato com suas famílias e sob uma rígida disciplina que incluía, inclusive os castigos físicos.


Meninos e meninas de classes privilegiadas, ao longo do século XIX, foram educados sob o olhar de tutores e professores cuja função era ensinar conteúdos como língua portuguesa e matemática e, acima de tudo, disciplinar crianças e adolescentes, para que se tornem indivíduos responsáveis. Desde o período colonial a educação brasileira foi fortemente influenciada pela doutrina cristã católica, na qual a aquisição da leitura e da escrita que lhe permitisse ler os textos sagrados, era considerado suficiente para sua formação geral.


Cartilhas de alfabetização e ensino da religião eram comumente usadas, tanto no aprendizado a domicílio, quanto naquele público. Sedimentando o trabalho que já deveria ter sido feito pela mãe, na primeira fase da vida da criança, tais cartilhas voltavam à carga sobre tudo o que dizia respeito à vida espiritual. A escola deveria ter um crucifixo diante do qual, ao entrar, as crianças se persignavam, ajoelhando e benzendo-se pois “o sinal da santa cruz é o mais forte para vencer as tentações do inimigo comum”: o terrível e maldoso Satã.[5]


Mesmo após a instituição do ensino laico, com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759, o ensino ainda foi fortemente influenciado pela doutrina cristã. A religião esteve constantemente presente nas escolas brasileiras mesmo o Estado tendo declarado o ensino laico, na última Constituição brasileira, de 1988[6], sendo comum a presença de símbolos religiosos em escolas não confessionais, mesmo na atualidade.


Ao longo do século XIX e durante o século XX a infância foi chamando a atenção de educadores, médicos e políticos. Era preciso educar as crianças desde a mais tenra idade para inibir a delinquência, entre os pobres, e formar a juventude que iria tomar as rédeas da política e da economia do país, entre as elites. Escolas particulares deram atenção aos pequenos herdeiros de comerciantes e fazendeiros, enquanto que foram criadas creches para acolher os filhos dos trabalhadores das cidades. 

A partir da segunda metade do século XIX, o quadro das instituições destinadas à primeira infância era formado basicamente da creche e do jardim de infância ao lado de outras modalidades educacionais, que foram absorvidas como modelos em diferentes países. No Brasil, por exemplo, a creche foi criada exclusivamente com caráter assistencialista, o que diferenciou essa instituição das demais criadas nos países europeus e norte-americanos, que tinham nos seus objetivos o caráter pedagógico. Essas diferenças exigem que seja analisada na sua especificidade, para que se possa compreender a trajetória desse nível de ensino no caso brasileiro e na relação que estabelece com o contexto universal.[7]

Ao longo do século XIX crescia um discurso que via na escola uma instituição criada para preservar a infância e a juventude de todo mal. Este pensamento se pautava em questões morais defendidas pela medicina daquele período e sobre as quais irão ser erigidas as práticas higienistas que marcaram a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Estas práticas se assentavam no controle da sexualidade e ao combate aos vícios que eram reproduzidos desde o período colonial e se apoiavam numa “[...] pedagogia infantil disseminada na segunda metade do século XIX influência perniciosa, e moldadas de acordo com os princípios higienistas.[8]

Na passagem para o século XX, durante o período republicano, o crescimento das cidades fez acentuar a mortalidade infantil. As cidades brasileiras estavam constantemente sob ameaça de epidemias como a de varíola e de febre amarela, vitimando principalmente as crianças pequenas. Só na cidade do Rio de Janeiro faleceram, entre os anos de 1903 a 1909, vítimas da varíola, 1.646 crianças, entre 0 e 1 ano de idade.[9] Esta situação acabou levando ao surgimento de inciativas de cunho assistencialista como objetivo de proteger a infância.

Muitas creches foram criadas a partir da inciativa de organizações filantrópicas, voltadas para o atendimento às crianças pobres, cujas mães precisavam trabalhar fora de casa. Vários setores da sociedade defendiam a criação dos jardins de infância, baseada em um pensamento jurídico-policial, que relacionava o abandono à delinquência, e a ideário médico-higienista e religioso cujo objetivo era combater a mortalidade infantil.[10]

Ao longo do século XX este discurso assistencialista foi reforçado e reproduzido, no que diz respeito à educação pública, que se assentava na ideia de uma educação compensatória. A função da educação infantil estava relacionada não necessariamente com a aprendizagem. Ela era vista como um meio de suprir as necessidades básicas de crianças oriundas das classes populares, consideradas carente e inferiores, uma vez que não correspondiam ao ideal de infância, que tinha como modelo as crianças de classe média. Segundo Pascoal e Machado, “ a fim de superar as deficiências de saúde e nutrição, assim como as deficiências escolares, são oferecidas diferentes propostas no sentido de compensar tais carências”.[11] 

Nos anos de 1970, prevalecia ainda esse discurso assistencialista que defendia uma educação compensatória e que via a educação infantil também como uma forma de driblar o fracasso escolar, comumente relacionado à pobreza das famílias. Mais do que reformas sociais e investimentos no desenvolvimento humano, os defensores deste tipo de pensamento acreditavam que o cuidado com a infância iria solucionar os problemas do país, colocando sobre a educação infantil e a educação básica expectativas que não seriam alcançadas.

Nos anos de 1970, as políticas educacionais voltadas à educação de crianças de 0 a 6 anos defendiam a educação compensatória com vistas à compensação de carências culturais, deficiências linguísticas e defasagens afetivas das crianças provenientes das camadas populares. Influenciados por orientações de agências internacionais e por programas desenvolvidos nos Estados Unidos e na Europa, documentos oficiais do MEC e pareceres do então Conselho Federal de Educação defendiam a ideia de que a pré-escola poderia, por antecipação, salvar a escola dos problemas relativos ao fracasso escolar.[12] 

Este tipo de perspectiva ia de encontro com o pensamento de educadores como Paulo Freire para quem a educação não iria resolver todos os problemas do Brasil, mas era um passo importante neste caminho. Para Freire, a educação infantil deveria estar focada na criança, como sujeito do conhecimento, e visar não apenas sua formação escolar, mas, sobretudo, cidadã.[13] Não se poderia ignorar as necessidades das crianças, como seres sociais e simplesmente pensa-las como operários que iriam construir o futuro. Neste sentido, a década de 1980, sob influência do pensamento freiriano trouxe as primeiras conquistas, no que diz respeito aos direitos das crianças e à forma como a educação infantil passou a ser tratada dentro das políticas públicas.

Uma legislação que garantisse a educação infantil nas escolas públicas e que pudesse atender às classes menos favorecidas só foi possível na década de 1980, graças à pressão da sociedade civil, que se mobilizou em prol da defesa da infância. O tema foi colocando no centro dos debates sobre propostas para a educação, que deveriam constar da nova Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988. A partir de então, à criança de zero a seis anos passou a ser considerada como sujeito de direitos, podendo gozar plenamente de seus direitos de cidadania.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, é “[...] O dever do Estado para com a educação será efetivado mediante a garantia de oferta de creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade”[14]. Estas instituições não se limitariam apenas aos cuidados físicos para com as crianças, mas também estariam voltadas para um trabalho, deixando de estar vinculadas à assistência social para atuarem também como parte da formação educacional da criança, na pré-alfabetização.

Em 1990, foi aprovada a Lei 8.069/90, que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente, conferindo às crianças os direitos humanos. Segundo o Estatuto, a criança e o adolescente devem ter assegurados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, para que seja possível, desse modo, ter acesso às oportunidades de “[...] desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”[15] Complementado os ganhos legais para infância no Brasil, neste período, foi aprovada em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que inseriu a educação infantil como primeira etapa da Educação Básica, colocando como sua finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, como forma  de complemento ao papel da família e da comunidade.[16]



[1] VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas, Papirus, 1999, p. 21.

[2] Nome que se dava a crianças, principalmente meninas, adotadas informalmente, e que se tornavam criados e criadas nas casas de senhores e senhores e senhoras ricos, trabalhando em um regime de semiescravidão, por casa e comida, e passíveis de castigos físicos.

[3] LEITE, Míriam Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro, no século XIX: antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: HUCITEC, Universidade de São Paulo, 1984, p. 38

[4] NOGUEIRA, Natania. Aparecida da Silva. Leopoldina: instrução, mito político e formação de elites na Zona da Mata Mineira (1895-1930). Leopoldina: Ed. do autor, 2011, p. 95.

[5] PRIORE, Mary Del. O cotidiano da criança livre no brasil entre a colônia e o império. In: História das crianças no Brasil / Mary Del Priore organizadora 7. ed. – São Paulo: Contexto, 2010, p. 55.

[6] O Brasil teve várias constituições, sendo a primeira as Constituição do Império, de 1824, e a última a Constituição de 1988, promulgada com o fim da Ditadura Militar (1964-1985).

[7] PASCHOAL. Jaqueline Delgado, MACHADO, Maria Cristina Gomes. A história da educação infantil no Brasil: avanços, retrocessos e desafios dessa modalidade educacional. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.33, p.78-95,mar.2009. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8639555>. Acesso em: 10 set. 2020, p. 81.

[8] RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. História da saúde mental infantil: a criança brasileira da colônia à República Velha. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 1, p. 29-38, jan./abr. 2006. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a04.pdf>. Acesso em 08 set. 2020.

[9] PEREIRA, Thales Augusto Zamberlan. Mortalidade entre brancos e negros no Rio de Janeiro após a abolição. Estud. Econ., São Paulo, vol.46, n.2, p. 439-469, abr.-jun. 2016. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/ee/v46n2/0101-4161-ee-46-02-0439.pdf>. Acesso em 08 set. 2020.

[10] PASCHOAL, Op. Cit, 2009, p.83.

[11] PASCHOAL, Op. Cit, 2009, p.83.

[12] KRAMER , Sonia As crianças de 0 a 6 anos nas políticas educacionais no brasil: educação infantil e/é fundamental. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n. 96 - Especial, p. 797-818, out. 2006. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 29 ago 2020, p. 799.

[13] SAUL, Alexandre, SILVA, Camila Godói da. Contribuições de Paulo Freire para a educação infantil: implicações para as políticas públicas. Disponível em <https://anpae.org.br/simposio2011/cdrom2011/PDFs/trabalhosCompletos/comunicacoesRelatos/0020.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2020.

[14] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 29 ago. 2020.

[15] BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 29 ago. 2020.

[16] BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF: MEC, 1996. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 29 ago. 2020.

Nenhum comentário: