quarta-feira, 21 de outubro de 2020

GRAMA, AS COMFORT WOMEN E AS MULHERES NOS QUADRINHOS

Eu tive o prazer de ler recentemente o manhwa (história em quadrinhos coreana) “Grama”, da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, publicada no Brasil, em 2020, pela Pipoca & Nanquim. Também assisti às entrevistas a autora e tive o prazer de poder trocar com ela algumas palavras via e-mail. Aliás, vale ressaltar que Keum Suk Gendry-Kim foi muito gentil, tendo respondido às minhas poucas perguntas solicitamente.

Grama é um quadrinho que todos deveriam ler. Ele fala sobre a história dramática das mulheres que foram vitimadas pelo sistema de comfort women (mulheres de conforto), criado pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Este episódio é pouco conhecido, mas muito representativo, pois expõe mazelas da sociedade patriarcal que ainda permanecem e que precisam ser combatidas. Fala sobre a escravidão sexual, que vitimou centenas de milhares de mulheres e que ainda está presente nos dias de hoje.

Comfort women é um termo utilizado para designar as mulheres que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram forçadas à escravidão sexual em bordéis criados pelo exército japonês. Esse sistema de exploração sexual baseado na criação de “estações ou casas de conforto” vitimou centenas de milhares de mulheres que ainda aguardam a reparação pelos danos físicos e psicológicos deixados pela experiência.

O sistema de comfort women teve origem na prática institucionalizada pelo Estado japonês de enviar mulheres jovens ao estrangeiro como escravas sexuais. País profundamente patriarcal, o Japão tratava as mulheres como uma mercadoria. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão impôs essa realidade às suas colônias, criando o sistema de comfort women para atender às necessidades de seus soldados. 

Foram criadas cerca de 400 “estações de conforto”, espalhadas pela China, Filipinas, Taiwan, Cingapura, Indonésia, Birmânia, Tailândia e Vietnã, sempre próximas às bases militares. Estima-se que cerca de 80 a 200 mil mulheres foram forçadas a prestar serviços sexuais a soldados japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, sendo que apenas 30% delas sobreviveram. O maior número de mulheres era de origem coreana, cerca de 80% delas.[1]

A justificativa do governo japonês para a criação dessas estações era de combater a propagação de doenças sexuais e prevenir crimes sexuais por soldados em áreas ocupadas. Esse tipo de crime havia ocorrido durante a invasão da China, entre 1937 e 1938, quando soldados japoneses estupraram e assassinaram entre 20 mil e 80 mil mulheres, entre crianças e idosas, no episódio que ficou conhecido como “Estupro Nanjing”.[2] Mas não se resumia apenas a isso. 

Uma vez que eram consideradas prostitutas a serviço do Estado, a violação das comfort women não era qualificada como estupro. No entanto, aquelas mulheres, em sua maioria, foram aliciadas com falsas promessas de emprego e tiradas de suas famílias pobres, que eram enganadas pelos aliciadores. Muitas delas eram raptadas e enviadas para campos de trabalho forçado e para “estações de conforto”. Além de vítimas de discriminação de gênero, elas também tiveram sua situação de escravas sexuais condicionada ao seu status social e econômico.

A pobreza e a fome eram constantes para grande parte da população da Coreia ao longo da sua história. Essa realidade foi agravada durante as invasões e guerras às quais a região foi submetida na primeira metade do século XX. Keum Suk Gendry-Kim, durante uma live promovida pelo Centro de Cultura Coreana no Brasil, afirmou que a questão das comfort women era uma questão de classes, uma vez que vitimava aqueles que eram mais pobres, que não possuíam meios de se defender.[3]

Grama nos coloca dentro das memórias de uma das sobreviventes, a vovó Ok-sun Lee. É, portanto, é um quadrinho biográfico e, ao mesmo tempo, uma reportagem em quadrinhos ou jornalismo em quadrinhos que dá voz àquelas mulheres que foram esquecidas ou silenciadas pela história. Este manhwa é, acima de tudo, um lugar de memória e de fala dessas mulheres.

Deve-se destacar aqui o comprometimento da autora em contextualizar sua obra, que, embora tenha alguns componentes ficcionais que ajudam a tornar a narrativa mais receptiva, prima pelo bom trabalho de pesquisa. Ao mesmo tempo em que registra as memórias da vovó Ok-sun Lee, Keum Suk Gendry-Kim procura inserir o leitor no contexto histórico, marcado pelo imperialismo Japonês e pela Segunda Guerra Mundial.

“Grama” mistura os registros históricos daquele período com o relato memorialístico de uma sobrevivente, o que agrega à obra um valor maior enquanto referência para aqueles que desconhecem a história do leste asiático, possibilitando que, a partir dessa contextualização, o leitor e a leitora possam se apropriar de informações importantes para a compreensão do enredo.

Keum Suk Gendry-Kim, nascida em 1971, ao contrário de outros autores de manhwa, começou a publicar quadrinhos mais tarde. Obteve sua formação originalmente em artes plásticas, tendo estudado na École Supérieures Des Arts Decoratifs, na França.  Percebe-se que Keum Suk Gendry-Kim tem a preocupação em criar uma narrativa que ultrapasse o mero entretenimento, agregando ainda mais valor à sua obra que tem, em primeiro lugar, um compromisso social. 

Em respeito às vítimas e suas famílias, Keum Suk Gendry-Kim teve especial cuidado com as cenas que envolviam violência. As cenas nas quais as mulheres são vítimas de violência não são explícitas, porém não são omissas. Cabe ao leitor interpretá-las de acordo com os elementos gráficos e narrativos a partir dos quais elas são descritas.  Segundo autora, por ser mulher, consegue se colocar melhor no lugar das sobreviventes e empatizar com sua dor de uma forma que um homem não conseguiria. “Precisamente por ser mulher, provavelmente estou melhor posicionada, em relação aos artistas masculinos, para compreendê-las. Prestei atenção especialmente às cenas de estupro para não mostrá-las diretamente nas imagens.”[4]  

“Grama” e outras produções baseadas em relatos de sobreviventes são importantes para a construção de uma história das mulheres e dos grupos que, dada sua origem social, religiosa ou mesmo sua orientação sexual, foram e são tratados com brutalidade em diversas regiões do mundo, mergulhadas ou não em conflitos. Tornar pública essa história e buscar por uma reparação trata-se, acima de tudo, de um “dever de memória”.

O conceito do “dever de memória”, ou devoir de mémoire, surgiu na França após a Segunda Guerra Mundial. Ele parte do princípio de que a sociedade precisa se responsabilizar e buscar reparação pelos erros cometidos no passado. O caso das comfort women enquadra-se dentro desse conceito, tanto por ser um crime de guerra e um crime contra os direitos humanos quanto pela obrigação de reparação por parte do país agressor, o Japão.

Ao contrário da Alemanha, que, após a Segunda Guerra Mundial, assumiu a responsabilidade pelos crimes cometidos contra a humanidade, o Japão não apenas negou a existência das “estações de conforto” como também destruiu provas da sua existência. Além disso, o sistema não foi encerrado após a guerra. Durante a ocupação estadunidense, ele continuou funcionando, atendendo agora aos soldados dos Estados Unidos. Estima-se que, após a guerra, cerca de 70.000 mulheres foram escravizadas para atender a 350.000 soldados durante a ocupação do Japão.[5]

A busca pelo reconhecimento dos crimes e por reparação tem sido a luta das sobreviventes e suas famílias desde a década de 1990, quando surgiram as primeiras denúncias.  A sociedade civil mobilizou-se, tanto na Coreia quanto em outros países, nos quais as mulheres também foram vítimas da escravidão sexual durante e depois da Segunda Guerra, incluindo o próprio Japão. “Grama” e outras obras que abordam o tema cumprem o papel de reivindicar esse “dever de memória” e ser o lugar de fala dessas mulheres que, por quase 50 anos, permaneceram resignadas e silenciadas em seus sofrimentos, mas que agora estão tendo-os registrados nos anais da história.

“Grama” é uma obra ímpar em muitos aspectos. Em primeiro lugar, por ser um quadrinho que denuncia um crime de guerra e contra a humanidade, levando, em 9 idiomas, a história das comfort women para leitores de vários países do mundo. Em segundo lugar, por demonstrar a versatilidade das HQs enquanto mídia, fontes documentais e obras artístico-literárias. Nesse sentido, é importante destacar a importância da temática abordada e do “dever de memória” que ela evoca. A luta das comfort women tornou-se a luta de todas as mulheres contra a exploração sexual e o machismo, que as sufocam e oprimem em todo mundo, não apenas no Leste Asiático. “Grama” fala com essas mulheres a partir da linguagem universal da justiça, da reivindicação de uma memória, mesmo que dolorosa, dando nome e identidade a mulheres que foram por décadas silenciadas.

* Este texto é uma adaptação de uma artigo maior que foi publicado em 2020, na revista "Pesquisa & Educação a Distância" e que pode ser lido, clicando aqui.



[1] OKAMOTO, Julia Yuri. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico. Revista de Iniciação Científica em Relações Internacionais, João Pessoa, v. 1, n. 1, 2013. p. 92-93. Disponível em: <https://periodicos.ufpb.br/index.php/ricri/article/view/17698/10136>. Acesso em: 12 out. 2020.

[2] OKAMOTO, 2013, p. 94.

[3] CENTRO DE CULTURA COREANA NO BRASIL. Sessão de bate papo com a autora de Grama, Keum Suk Gendry-Kim. 13 ago. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PePYgx5-2V0&t=2168s>. Acesso em: 29 set. 2020.

[4] NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. Entretien avec l'artiste de bande dessinée. Entrevista com Keum Suk Gendry-Kim. Mensagem recebida por: <natania.nogueira2010@gmail.com> em 30 set. 2020.

[5] RAYMOND, Janice. 70 anos depois, um novo sistema de “mulheres de conforto”. Medium. Feminismo com classe. Disponível em: < https://cutt.ly/ngk6PKO >. Acesso em: 28 set. 2020.

 

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