segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

O ÚLTIMO VOO DAS BORBOLETAS - IMPRESSÕES


Eu terminei de ler hoje o mangá "O último voo das Borboletas", de Kan Takahan, mangaká premiada, que debutou em 2001. Em 2020, a autora venceu o 24º Prêmio Cultural Osamu Tezuka. Sua obra aborda temas cotidianos, o que me agrada muito, e tem influência franco-belga. Não conhecia a autora, até porque eu não sou leitura regular de mangá (e pode até ter sido que eu tenha lido algo antes, mas não me recordo), mas gostei muito dessa HQ. A narrativa, a arte, a preocupação com a pesquisa na construção dos cenários e dos personagens são alguns dos seus pontos fortes.

Cho-no-Michiyuki ou "Voo das borboletas" é uma referência a obra do teatro kubuki, de 1784, de Gohei Namiki. Trata-se de um mangá histórico, ficcional, que se passa no Japão do século XIX. A protagonista é Kichou, uma cortesã de luxo, que trabalhava no bordel Kagetsu-rou  da Casa Hiketa-ya, um estabelecimento muito famoso no Japão, com quase 400 anos, hoje conhecido como Restaurante Histórico Kagetsu. Nele, as gueixas - mulheres que se dedicavam às artes e ao entretenimento, dividiam espaço com as yuujo, como eram chamadas de mulher de diversão, que prestavam favores sexuais. 

Kichou era uma taju, uma cortesã que tinha habilidades de uma gueixa, beleza esmerada e inteligência, e por isso estava no topo da hierarquia dentro do bordel. Seus clientes eram selecionados e pagavam muito mais um valor mais elevado, sendo que ela poderia, inclusive, se recusar a atender uma pessoa, caso não desejasse. 

Uma menina se tornava yuujo quando era enviada ainda bem jovem para o bordel, geralmente vendida pela família, que não tinha condições de alimentar a prole. Essa é a história de Kichou, vendida pelo pai ainda menina. Essas mulheres desenvolviam uma dívida com o estabelecimento que poderia ser paga com o passar do tempo, com seu trabalho, ou por algum amante que desejava torna-la esposa.

É uma história muito interessante e sensível, que fala sobre a vida das mulheres nos bordeis, de doenças como a sífilis, de como o estigma da prostituição as marcava, mesmo quando conseguiam conquistar sua liberdade e estabelecer uma família. Não é um mangá que vai trazer a violência contra as mulheres, mas o modo como elas viviam e conviviam como a realidade social e cultural de um Japão que estava se às portas da Era Meiji.

Embora o local, bordel Kagetsu-rou, seja real, tendo até inspirado outras histórias, os personagens são ficcionais, com exceção de um, o doutor Toon, um médico ocidental – Anthonius Franciscus Bauduin – que realmente existiu e que foi apropriado pela autora, embora sua inserção na obra seja toda ficcional.

Recomendo a leitura, principalmente porque é também uma experiência de aprendizado. A autora teve a preocupação de escrever um prefácio, esclarecendo pontos e contado um pouco sobre o processo de criação do mangá e ainda disponibilizou um glossário, que traz informações tanto sobre termos usados, quando sobre a história e a cultura do Japão do século XIX, durante o Era Edo.

sábado, 10 de dezembro de 2022

A REVOLTA DA VACINA EM QUADRINHOS

Terminei esta semana a leitura da HQ "Revolta da Vacina", de André Diniz. Uma obra de ficção que tem como pano de fundo o Rio de Janeiro durante a gestão de Pereira Passos, em plena reforma urbana e sanitária, retratado o movimento da Revolta da Vacina, que envolveu a massa popular e até setores do exército. Uma obra de ficção comprometida com a fundamentação histórica. Exatamente o tipo de HQ que eu gosto.

Muitos autores se aproveitam de fatos ou eventos históricos para comporem a trama e criarem uma narrativa fictícia, às vezes se apropriando de personalidades históricas, ora como protagonistas, ora como personagens secundários. Temos, por exemplo, uma participação de Oswaldo Cruz no quadrinho, e não apenas fazendo uma breve figuração, mas estabelecendo uma diálogo longo com o protagonista. Nessas narrativas temos um pouco de tudo, de romance, de mistério e até fantasia. O diferencial está no compromisso do autor em fundamentar a trama e  não se valer apenas liberdade poética. Eu gosto de classificar esse tipo de HQ de "quadrinho documentado". 

Não é um termo muito bonito, mas acho que serve para descrever um tipo de HQ que  tem a preocupação em citar suas fontes, em introduzir ao leitor os passos da pesquisa que levaram à composição da narrativa e dos personagens. Eles trazem como anexo, por exemplo, textos de especialistas, esboços/rascunho dos desenhos e descrevem o processo de criação. Eu poderia citar como exemplo, "Degenerado", quadrinhos ricamente documentado, de Chloé Cruchaudet, "Rosa Vermelha", de Kate Evans, HQ sobre a qual já comentei aqui, outro quadrinho que tem a preocupação em apresentar documentos e bibliografia e, agora, "Revolta da Vacina".

Conheço André Diniz já há muitos anos e acompanho sua trajetória como autor. Por mais de uma vez, ele já me procurou para pedir opinião sobre suas HQs baseadas em fatos históricos. Por isso, eu sei que esse autor tem uma preocupação legítima com a pesquisa. Em "Revolta da Vacina" eu acredito que ele amadureceu ainda mais nesse quesito. Além de incluir no texto da HQ fatos históricos bem explicados e, em alguns pontos, detalhados, o autor nos presenteia com um anexo rico, com um artigo escrito pelo escritor e historiador Luiz Antônio Simas,  e uma série de charges publicadas durante o período da revolta da vacina, copiladas na HQ.

A narrativa gira em torno do personagem Zelito, um jovem que sonha em ser cartunista, mas que enfrenta desde o descrédito da família às suas próprias questões pessoais. Zelito é um jovem problemático, que deseja o sucesso imediato, não aceita o fracasso e não sabe valorizar aquilo que a vida lhe oferece. Trata-se de uma HQ que coloca em cena não apenas a história do Brasil do início do século XX mas que, também, apresenta o lado sombrio de pessoas que perdem a  noção do limite ao buscar a realização pessoal. 

Há muitos elementos psicológicos na trama e na composição dos personagens que podem ser identificados e, portanto, é um quadrinhos que explora, também, questões mentais. Seu texto é complexo e, ao mesmo tempo, muito simples e fluido. No aspecto físico, a obra em si é muito bonita, com capa dura e miolo impresso em papel de qualidade,  além de estar num preço acessível.

Eu recomendo a leitura para quem gosta de quadrinhos que trazem questões mais densas e para professores que querem ilustrar suas aulas, com uma fonte alternativa para o ensino da história e mesmo nas áreas de sociologia e saúde, incluindo saúde mental.  

domingo, 4 de dezembro de 2022

COMENTANDO A HQ BERTHA LUTZ E A CARTA DA ONU

Não tenho lido tantos quadrinhos quanto eu gostaria, mas estou muito satisfeita com aqueles que eu decidi  priorizar a leitura. Um deles é a HQ Bertha Lutz e a Carta da ONU, de Angélica Kalil, Mariamma Fonseca, com cores Faw Carvalho  e mentoria da quadrinista Ana Luiza Koehler. E já começo elogiando essa HQ por ser resultado de um trabalho conjunto que, acredito eu, resultou da troca de ideias entre todas as envidas, Um trabalho de história de memória em forma de quadrinhos que nos coloco dentro de um contexto de militância feminista num momento no qual as mulheres estão sendo incluídas de forma inédita no espaço macro político.

Mas comecei e já apontei diversos méritos da obra.

Quem acompanha as postagens que faço no meu blog sabe que tenho uma predileção por quadrinhos que trazem conteúdo biográfico ou autobiográfico. Da mesma forma gosto de obras que tem na história sua principal referência e que se preocupam em utilizar fontes e contextualizar, mesmo que isso não seja uma obrigatoriedade em obras de ficção.

Essa HQ sobre Bertha Lutz se encaixa dentro disso. É obra que eu chamaria de referência para quem quer trabalhar a história do feminismo mundial e brasileiro. Bertha, perdoem-me a intimidade, foi uma mulher fabulosa. Cientista, feminista, política, militante sufragista, ao longo de outras mulheres como Jerônima Mesquita foi responsável pela conquista do voto feminino.

Além disso, foi uma das poucas mulheres a participar da elaboração da Carta da ONU, em 1945. Esse documento, histórico, propunha a construção e um futuro melhor, após o flagelo de duas guerras mundiais. As mulheres estavam lá, 14 mulheres, sobre as quais acabamos tendo conhecimento não apenas da sua existência, pois confesso que além de Bertha, não conhecia nenhuma delas, como também de seus feitos e conquistas. Algumas delas nos trazem simpatia, outras nem tanto. É notável perceber que, ao contrário do que muitos pensam, as mulheres não pensam igual. As posições e ações de Bertha, por exemplo, iam de encontro a concepções mais conservadoras de algumas delas.


Mas como eu disse, trata-se de uma biografia histórica que traz à tona a memória do feminismo e não apenas a memória de uma feminista. Uma obra de ficção que dialoga com a história. Ficcção pois a Bertha que nos é apresentada e o resultado da apropriação e da visão de mundo as autoras, mas baseia-se em documentos, em relatos. Documentos de época como cartas, textos oficiais e fotografias.

Há na obra passagens muito interessantes, marcadas por uma crítica sutil, por uma ironia leve mas certeira, por informações e cenas que ajudam a enriquecer o estudo tanto da política internacional brasileira quando do que era ser mulher nos anos de 1940. Enfim, recomendo a leitura da obra, tanto pelo seu valor histórico e seu conteúdo rico quando pelo fato de ser, realmente, uma boa leitura.

E o que é uma boa leitura para mim?

Um texto leve, mas rico, um traço simples, mas marcante, uma obra despretensiosa mas que alcança tudo que propõe e muito mais.

OFICINA DE PERFUME INSPIRADA NO UNIVERSO DE HARRY POTTER

Oficina realizada no dia 18 de novembro com alunos do Ensino Fundamental II da E. M. Judith Lintz Guedes Machado, em Leopoldina - MG.

Acredito que várias gerações, até mesmo a minha, leu as obras da autora britânica   J. K. Rowling, criadora a série de romances de Harry Potter, que foram posteriormente adaptados para mídias como quadrinhos, filme e games. O universo fantástico de Harry Potter influenciou e ainda influencia muitas mentes jovens e ávidas por aventura. Mas não é apenas isso, Harry Potter se tornou, também, uma porta para a ciência.

Ficção Fantástica e ciências? Será?

Ora, claro que sim! Não foi muitas vezes na ficção que a ciência encontrou inspiração para grandes descobertas e invenções? O maior exemplo dessa afirmação talvez seja o aclamo romancista do século XIX, Júlio Verne. Com seus livros "Cinco Semanas em um Balão", "Viagem ao Centro da Terra”, "Da Terra à Lua", "Vinte Mil Léguas Submarinas" e "A Volta ao Mundo em 80 Dias" ele não apenas foi um dos pioneiros na da ficção científica como inspirou cientistas do mundo inteiro. Não seria demais dizer que Verne era pop, a sua maneira.

A cultura pop, e aqui especificadamente o universo de Harry Potter, pode ser um caminho para se introduzir a ciência entre os jovens, inspirar novos cientistas, criar futuros adultos mais críticos e abertos ao novo. Exemplo disso foi a oficina que tivemos nas escolas aqui em Leopoldina (MG), entre os dias 17 e 19 de novembro.  Com o título "Perfumes: obras de arte, composições químicas ou poções mágicas?", a oficina se baseia no universo de Harry Potter para levar aos jovens estudantes temas complexos ligados às Ciências da Natureza e suas Tecnologias, usando de interdisciplinaridade, discutindo tópicos de Biologia e Química numa abordagem CienciArte.


Falando assim, o leitor deve se perguntar: "Mas é possível?". Pois eu confirmei que é. Participei como observadora de uma das oficinas, com alunos de escola pública entre 12 e 14 anos e fiquei encantada tanto com o que eles aprenderam como pela forma como o conteúdo foi apresentado. Esses estudantes puderam ter acesso a informação sobre a botânica de plantas aromáticas, sobre metabolismo vegetal, biodiversidade, misturas, solutos e solventes orgânicos, moléculas apolares, volatilidade molecular, cultura do perfume: aspectos históricos e outros temas igualmente complexos, em duas horas de oficina. E, no final, todos muito perfumados, não queriam ir embora. Eu, particularmente fiquei fã do pesquisador/cientista /arte educador da Fiocruz Helder Silva Carvalho.

Eu o assisti ensinado meus alunos a lerem gráficos e entenderem o que leram. Depois de quase dois anos de isolamento, com pouco ou nenhum acesso a aulas remotas, estes estudantes voltaram para a sala de aula este ano com uma série de deficiências de aprendizagem que vão pesar no futuro. Mas na oficina eu percebi que eles estão abertos ao apreender novos conteúdos e que a forma como ensinamos faz diferença. Sei que não podemos ter uma oficina como essa toda semana, ou mesmo todos mês mas, se pudermos planejar atividades como esta com certa regularidade para alunos e mesmo para professores, creio que será possível vencer os desafios que a pandemia de Covid-19 trousse para os professores de todo o mundo.

Por fim, é preciso agradecer à FIOCRUZ por nos proporcionar essa atividade e à ASPAS, a Secretaria de Educação e o Colégio Imaculada Conceição que, juntos tornaram possível que nossos alunos e os alunos de outras escolas pudesse ter essa oportunidade.

Veja a seguir o depoimento do oficineiro sobre a experiência:




domingo, 23 de outubro de 2022

HELENA FONSECA NA PAPIERS NICKELÉS


Recentemente publiquei um artigo sobre a quadrinista Helena Fonseca na revista francesa Papiers Nickelés, nº 73. Uma autora que eu admiro muito mas sobre a qual não tenho muitas informações, infelizmente. Ela inclusive foi escolhida para ser homenageada pelos alunos da minha escola, quando da escolha do nome da nossa gibiteca escolar. Tenho até uma postagem sobre ela, um pouco menor do que o artigo que eu enviar para a revista.  Quem quiser conferir, é só clicar aqui. Caso algum pesquisador queira usar o texto em francês para alguma referência, mas não tem acesso a revista, pode ler o artigo, clicando aqui!

domingo, 9 de outubro de 2022

CAPÍTULO SOBRE QUADRINHOS AUTIOBIOGRÁFICOS NO LIVRO " QUADRINHOS & CONEXÕES INTERMÍDIAS"

Esta semana tivemos mais dois lançamentos da ASPAS: os volumes 01 e 02 de Quadrinhos e Conexões Intermídias, resultado de pesquisas apresentadas em evento da ASPAS de 2021. Eu dei minha pequena colaboração como organizadora e estou participando do primeiro volume com o um texto que eu particularmente adorei escrever, no qual eu trabalhei a questão da autobiografia. Usei como referência três autoras que eu gosto muito Anneli Furmark, Nicole Claveloux e Catia Ana Baldoíno, com seus quadrinhos, produzidos em  períodos e países diferentes, nos quais podemos trabalhar várias questões dentre elas a memória.

Convido a todos e todas conferir não apenas meu capítulo, mas a todos os capítulos dos dois livros. Há textos excelentes, para todos os gostos. Recomendo a leitura e o download dos livros, que são gratuitos, dentro do espírito da ASPAS de contribuir para a democratização e o acesso ao conhecimento. Para ter acesso aos dois volumes, assim como a outras publicações da ASPAS, basta clicar aqui! Segue um breve resumo do meu capítulo.

Os quadrinhos autobiográficos como forma de expressão para as mulheres

No texto iremos analisar o componente autobiográfico na produção de quadrinhos por mulheres, a partir da análise de obras de autoras como Anneli Furmark, Nicole Claveloux e Catia Ana Baldoíno.  São quadrinhos que misturam elementos ficcionais com as experiências das autoras que, por meio de seus personagens, trazem suas auto-representações e utilizam os quadrinhos como recurso como um espaço para autoconhecimento e autoanálise. Partimos da ideia de que, ao utilizar suas experiências, essas mulheres quadrinistas transformaram seus quadrinhos em “lugares de fala”, nos quais podemos encontrar não apenas representações sociais, ideias políticas ou posicionamentos ideológicos, mas, também, experiências de vida a serem apropriadas e compartilhadas com seus leitores e leitoras. Podemos, também, por meio deles, adentrar ao ambiente privado, tão restrito e pouco documentado enquanto objeto de análise. Neste sentido, trataremos essa produção midiática como um produto da cultura material e uma fonte para se estudar a História das Mulheres, uma vez que esse componente autobiográfico, muitas vezes implícito em uma obra, nos ajuda a compor um quadro geral acerca de relações familiares e profissionais que envolvem mulheres comuns cujas memórias possivelmente não serão registradas nos anais da história. Como base teórica utilizamos a obra de Michelle Perrot e Roger Chartier.

domingo, 2 de outubro de 2022

A MULHER REI E A HISTÓRIA DAS MULHERES NA ÁFRICA

Divulgação do filme - "A Mulher Rei".

Fazia um bom tempo que eu ia ao cinema assistir um filme que me marcasse, mas A "Mulher Rei" simplesmente puxou o meu tapete, e isso num bom sentido. Eu fiquei sem chão e mergulhei de cabeça em uma história que me fez pensar em muitas coisas. Até então, eu dizia que poucos filmes sobre a África haviam realmente me marcado. Vou citar dois, "O menino que descobriu o vento" e " Pantera Negra". Ambos, de formas diferentes, descontroem muitos estereótipos que temos da África.  Mas a "Mulher Rei" vai além disso. Ele descontrói a própria história da África e das mulheres africanas, sempre representadas como fracas, submissas, vítimas constantes de violência e mutilação.  

Um filme que traz um reino africano, em sua plenitude, enfrentando seus inimigos, não se curvando aos homens brancos europeus. Um filme de mulheres fortes e com um elenco composto por atrizes experientes, muitas delas de ascendência africana, valorizando não apenas as atrizes negras, mas atrizes negras africanas. Além disso, salvo a licença poética característica de obra de ficção, é um filme com fortes bases históricas e com uma pesquisa realmente bem feita. Podemos perceber isso pela preocupação com o figurino, com a contextualização história e com a escolha e elaboração de cenários.

Amazonas de Daomé

O filme é ambientado na África, no Reino de Daomé, atual Benin, um dos reinos mais poderosos daquele continente entre os séculos XVI e XIX. Daomé permaneceu um reino autônomo até 1904, quando o último rei foi destronado e os franceses o anexaram ao seu império colonial, depois de muitos anos de guerra. A história gira em torno das "Agodjié", também chamadas de Ahosi ou Mino, uma tropa de elite formada por mulheres guerreiras a serviço do rei.  O grupo é comandado por Nanisca, personagem de Viola Davis, que além de defender o reino de tribos inimigas e de colonizadores franceses ainda entoa um poderoso discurso contra a escravidão de africanos e sua venda para traficantes europeus. As "Agodjié", inclusive, inspiram as “Dora Milaje, mulheres da guarda real de Wakanda no filme “Pantera Negra.

Essas mulheres guerreiras realmente existiram e foram temidas tanto por africanos quanto por europeus, estes últimos as chamavam de Amazonas, uma referência ao mito grego. Segundo registros, o primeiro regimento de "Agodjié" foi formado durante o reinado de Tassi Hangbe, a primeira e única mulher que reinou em Daomé, no século XVIII e, também, a primeira "Agodjié". Há também relatos que afirmam que elas eram, originalmente, mulheres caçadoras. Essas guerreiras bem treinadas atuavam na segurança da família real, como espiãs e em batalhas.

Elas eram moças recrutadas entre o povo de Daomé ou oferecidas, quando meninas, pelas suas famílias ao rei. Elas podiam ser também mulheres capturadas de outras tribos e transformadas em cativas. A essas últimas era feita a oferta de servir ao rei como mulheres livres. Isso aparece em uma passagem do filme. Quando uma mulher de uma tribo inimiga é questionada sobre a razão que a leva a aceitar a oferta ela responde algo como “Aqui vou ser o caçador e não a presa”. E não deviam ser poucas que aceitavam pois dos escravos traficados do reino, a minoria era de mulheres.

Grupo de durante uma visita a Paris, 1891 - Fonte: https://www.historyvshollywood.com/reelfaces/woman-king/

Tornar-se uma "Agodjié" dava às mulheres um novo papel dentro de uma sociedade dominada por homens. Elas abriam mão do casamento e dos filhos e recebendo em troca o reconhecimento e um status social que as colocava entre as pessoas mais respeitadas e admiradas de Daomé. Os homens comuns não podiam encará-las, inclusive as temiam, e tinham que abrir caminho quando elas passavam. Apesar de todos os riscos e do treinamento intenso muitas mulheres escolhiam se tornar "Agodjié", tanto que elas representavam cerca de um terço das topas de Daomé. Além disso, as "Agodjié" tinha influência política e participação de decisões importantes. Em muitos reinos africanos mulheres chegaram a assumir posições de liderança ou mesmo certo status social, mas em Daomé as mulheres encontraram-se em uma posição de empoderamento única, o que torna ainda mais interessante sua história, contada no filme.

O Brasil tem uma ligação com o reino de Daomé que começou com Portugal, durante as navegações. Os portugueses estabeleceram relações econômicas e diplomáticas na região, tendo lá construído uma feitoria no reino de Daomé, posteriormente transformada na Fortaleza de São João Batista de Ajudá. De lá vieram considerável parte dos escravos trazidos para a América. Daomé enriqueceu com esse comércio, trocando prisioneiros de guerra por mercadorias europeus. No entanto, como tempo, o próprio povo de Daomé acabou vendido como escravo. Não atoa a região recebeu o nome de “Costa dos Escravos”. Daomé também tinha relações diplomáticas com o Brasil, tendo sido o primeiro Estado a reconhecer a nossa independência, em 1922, antes mesmo dos Estados Unidos, o que ocorreu apenas em 26 de maio de 1824.

Fortaleza de São João Batista de Ajudá - 1886 - Fonte: wikipedia.

No filme, por exemplo, o próprio rei afirmou que sua mãe havia sido vendida e que ele procurava por ela para trazê-la de volta para África. A maior parte dos escravizados vinha para o Brasil, daí a ligação de Daomé com nosso país. A presença brasileira naquele reino e sua relação com o Brasil está presente no filme.  

Muitos ex-escravizados, inclusive chegaram a retornar para Daomé. Seus descentes representam hoje 5% da população de Benin e são chamados de agudás. Os agudás têm origens diversas e se encontram atualmente em todas as classes sociais. Fazem parte do grupo, também, descendentes de traficantes, de comerciantes brasileiros e portugueses estabelecidos na região. Há ainda aqueles sem ligação ancestral com o Brasil mas que estão de alguma forma ligada aos brasileiros e se apropriaram de seus costumes.

Eu me emocionei no filme porque senti que pela primeira vez vou ter um material realmente rico e empoderador para poder utilizar na escola. Trabalho com muitos alunos afrodescendentes, “A Mulher Rei” traz não apenas uma boa contextualização da história de um reino africano como, também, de empoderamento feminino. Essas mulheres guerreiras, na sua ferocidade, entoam um discurso libertário. Elas agarram a oportunidade e fogem do papel de submissão representado pelo casamento, geralmente arranjado, no qual não seria valorizada e estaria à mercê da violência. Assistam à “A Mulher Rei”, independente do seu gênero e da sua cor, tenho certeza que vai ser uma ótima experiência.

Fontes consultadas:

Agudás - de africanos no Brasil a ‘brasileiros’ na África. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/hcsm/a/vtXQvFkGbHFSHQhs5BQv3rs/?lang=pt>. Acesso em 02 de out. 2022.

Amazonas de Daomé: as mulheres mais temidas do mundo. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-amazonas-daome-mulheres-temidas-mundo.phtml>. Acesso em 02 de out. 2022.

Amazonas: O exército feminino do Reino do Daomé. Disponpível em: https://www.dw.com/pt-002/amazonas-o-ex%C3%A9rcito-feminino-do-reino-do-daom%C3%A9/a-56823669. Acesso em 02 de out. 2022.

JIF : Je vous Présente les Agodjié, Braves Amazones du Danhomè. Disponível em: <https://fafadi323701274.wordpress.com/2020/02/29/jif-je-vous-presente-les-agodjie-braves-amazones-du-danhome/>. Acesso em 02 de out. 2022.

Os guerreiros deste reino de África Ocidental eram formidáveis – e eram mulheres. Disponível em: <https://www.natgeo.pt/historia/2022/09/os-guerreiros-deste-reino-de-africa-ocidental-eram-formidaveis-e-eram-mulheres>. Acesso em 02 de out. 2022.

Reino do Daomé. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Reino_do_Daom%C3%A9>. Acesso em 02 de out. 2022.

The Woman King (2022). Disponível em: <https://www.historyvshollywood.com/reelfaces/woman-king/>. Acesso em 02 de out. 2022.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

DOIS LIVROS LANÇADOS EM SETEMBRO

Eu prometi a mim mesma que em 2022 eu assumira compromissos depois que defendesse minha tese. Infelizmente, não sou uma pessoa confiável. Acho que nunca escrevi tanto e nem trabalhei tanto como este ano. Eu participei até agora de vários eventos sobre quadrinhos, e ainda há mais chegando por até dezembro. Além disso, publiquei vários textos em revistas e capítulo de livro. Além disso, estou finalizando a escritura de dois livros de história e na organização de alguns livros sobre quadrinhos. 

Dois deles saíram este mês. O primeiro livro foi "Imagem, pesquisa e criatividade: os quadrinhos como vetores de conhecimento". Esse livro foi organizado juntamente com Amaro Xavier Braga Jr e Caetano Borges, este último é inclusive o autor da capa, de muito bom gosto, por sinal. O livro reúne vários textos de trabalhos apresentados durante os encontros da ASPAS e conta com o prefácio de Nataniel dos Santos Gomes. 

Trata-se de uma obra diferenciada em vários sentidos. Primeiro, porque traz muitos textos de referência, que tratam de questões metodológicas, como o capítulo assinado por Lucas de Almeida Melo e João Paulo Ovídio, que faz um levantamento trabalhos de iniciação científica usando quadrinhos, realizados na UFRJ, entre os anos de 2006 e 2017.  

Além disso, para pesquisadores que trabalham com fanzines há dois excelentes capítulos. Um deles, por Sara Gaspar, "Fanzines 'comer pra quê?' - relato e uma experiência  de aproximação com temas relacionados à Alimentação", é resultado de um projeto de iniciação científica, e traz um relato de experiências rico e instigante, do trabalho com fanzines na educação alimentar.  O capítulo  outro, "Fanzines cartoneiros: reflexões sobre o cenário ambiental contemporâneo global e regional", escrito por Danielle Barros, que já é conhecida por seus trabalho com fanzines, também traz experiências da pesquisadora com a produção de fazines e das oficinas que ela desenvolveu junto com seus alunos e a comunidade, com temas relacionados ao meio ambiente.

Há ainda o texto que eu escrevi em conjunto com Dani Marino. Aliás, minha parceria com ela já rendeu três artigos, sendo que um ainda permanece inédito, aguardando publicação. O título do capítulo é "Mulheres e quadrinhos no Brasil: a explosão dos quadrinhos femininos no século XXI". Nesse capítulos tentamos fazer um síntese sobre a produção de quadrinhos por mulheres no Brasil e sobre alguns obstáculos enfrentados por quadrinistas que ingressam nesse mercado, que ainda permanece muito restrito. Foi um prazer poder escrever esse texto pois ele basicamente inaugurou uma nova fase minha, na qual eu me volto um pouco mais para a produção de quadrinhos nacional, uma vez que tanto no mestrado quando o doutorado eu me concentrei na produção estrangeira.

Temos ainda outros capítulos, igualmente interessantes. Você pode conferir todo o livro, clicando aqui.

A segunda publicação é um dossiê que trata dos quadrinhos como instrumento de ensino. Esse dossiê é um projeto da ASPAS, cujos capítulos contam apenas com textos de aspianos, voltada para professores da educação básica. No livro "Do lazer ao fazer: as histórias em quadrinhos na escola", eu, Maiara Alvim e Nataniel Gomes ficamos a cargo da organização do livro, com a arte na capa de Catia Ana Baldoino. O prefácio foi generosamente escrito por Henrique Magalhães. 

Ao conceber esta publicação pensamos em produzir um material exclusivo para professores com uma linguagem acessível. Procuramos trazer uma abordagem mais prática, envolvendo temas que dizem respeito à mais diversas disciplinas. A ASPAS busca sempre reforçar a característica interdisciplinar da pesquisa acadêmica e, mais ainda, compartilhar experiências. E esse livro, em particular, tem essas características.

É até difícil escolher sobre quais capítulos escrever, então vamos pegar apenas alguns como exemplos. O primeiro é o Para surdo ouvir, para cego ver: a acessibilidade em histórias em quadrinhos é possível?", de Valéria Aparecida Bari e Ana Laura Campos Barbosa. Nesse capítulos os quadrinhos são apresentados como uma ferramenta importante para a inclusão de pessoas que necessidades especiais. Um trabalho excelente que merece ser conferido. Temos também o capítulo dedicado ao ensino religioso "Sugestões de quadrinhos a serem utilizados em aulas de ensino religioso", de Marcelo Buzzoni, que traz dicas para os professores de ensino religioso. Um material inédito e valioso, uma vez que essa disciplina, em especial, carece desse tipo de referência.

Temas a participação de nossos associados estrangeiros, no capítulo "El cómic en la escuela y el desafío de formar lectores y escritores", de autoria dos pesquisadores argentinos Sebastian Gago e Valeria Daveloza. Neste capítulo os autores trazer a experiência argentina dos quadrinhos nas salas de aula como ferramentas importantes para a formação de leitores. Uma experiência estrangeira mas que pode servir de referência para as escolas brasileiras.  

Temos, também, no ensino da matemática, o texto "Quadrinhos e matemática: uma fundamentação para produções de histórias em quadrinhos", de  Vanuza Camargo Durães e Aparecida Santana de Souza Chiari. Neste capítulos vamos ver como o texto pode ser importante no ensino da matemática e como o uso da criatividade e de ferramentas virtuais pode ajudar o professor de matemática a vencer alguns desafios na aprendizagem dessa disciplina.

E há, como eu disse, muito mais. O livro pode receber, em breve, uma versão impressa mas enquanto isso não acontece, ele pode ser acessado gratuitamente aqui.


sábado, 17 de setembro de 2022

OS DEZ ANOS DA ASSOCIAÇÃO DE PESQUISADORES EM ARTE SEQUENCIAL


Há um pouco mais de 10 anos surgiu em Leopoldina (MG), a Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial - ASPAS. Leopoldina é uma cidade do interior da Zona da Mata de Minas que, particularmente, não tem nada de especial, nem alguma ligação forte com os quadrinhos. Por exemplo, não temos um grande nome como Maurício de Sousa, que seja nativo daqui. Mas temos uma gibiteca escolar, a primeira, acredito, que foi criada e reconhecida como tal, em uma escola pública. E tudo começou com essa pequena gibiteca.

Por conta dela, o município acabou investindo muito na formação de professores e tivemos vários encontros envolvendo  pesquisadores que trabalham com quadrinhos, nas mais diversas disciplinas, com objetivo de trazer novas possibilidades para o uso dos quadrinhos em sala de aula. Por conta disso, a cada ano, desdes 2007, a cidade recebeu muitos nomes importantes neste campo como, por exemplo, o professor Waldomiro Vergueiro e a professora Sonia Luyten, ambos pioneiros na pesquisa dos quadrinhos na USP. E, em meio, a isso nasceu a ideia de se criar uma associação que reunisse pesquisadores, organizasse encontros entre eles e fomentasse a produção de conhecimentos a partir do uso dos quadrinhos, tanto do ponto de vista acadêmico quanto didático. 

Com mais de 60 associados, a ASPAS foi além das expectativas e se fez presente em quase todo o território nacional por meio de seus associados. Mais do que isso, ela possibilitou a integração e produção de saberes numa escala antes nunca vista. Hoje podemos oferecer a quem deseja ingressar na pesquisa dos quadrinhos obras de referência dos mais vaiados temas. Esse talvez tenha sido o nosso maior mérito.

A ASPAS, particularmente, mudou minha vida. Eu não apenas tive a possibilidade de conhecer pessoas que me ajudaram muito com o trabalho na escola e com a pesquisa como, também, consegui alçar voos  maiores na minha carreira. De outro lado, forjaram-se amizades que se fortalecem a cada ano. Dito isso, gostaria de convidar a todos e todas a conhecer a ASPAS e as obras que ela disponibiliza no seu blog.

Clique aqui para saber mais sobre a ASPAS e, aqui, para ter acesso a livros produzidos pelos seus associados, disponibilizados gratuitamente.


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

PROJETO GUERREIRAS DA INDEPENDÊNCIA

Para a semana da comemoração dos 200 anos da Independência, preparamos na Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado uma pequena exposição de banners com o tema "Guerreiras da Independência", que vai ser começar no dia 06 de setembro e deve durar até  o final do mês. 

Na exposição trazemos a história de mulheres que foram importantes tanto para a declaração da nossa Independência quanto para que ela pudesse se consolidar. Mulheres que foram para a frente de batalha para lutar contra tropas portuguesas, mulheres que se colocaram contra a opressão. Nestes 200 anos queremos trazer aqui sua memória, para que elas possam inspirar novas gerações.

O objetivo do projeto é trabalhar justamente o papel das pessoas comuns nas história, sem tirar o mérito, claro, daqueles que já são conhecidos. Em especial, escolhemos as mulheres porque elas normalmente são esquecidas ou citadas superficialmente. O projeto pretende atender a todos os anos do Ensino Fundamental e do EJA e ser ponto de partida para outros pequenos projetos e para debates. 

Confira nossa pequena exposição.





Agradecimentos

Agradecemos à direção da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado por apoiar o projeto e aos senhores Amilton Kabuna e Luiz de Mello por patrocinarem os banners.

OBS: Os banners podem ser reproduzidos livremente.

Créditos

As imagens foram capturadas na Internet. 

Imperatriz Maria Leopoldina - Flávio Viana (@flaviovianart).  Imagem capturada aqui

Maria Felipa de Oliveira - arte de @ltdathayde. Imagem capturada aqui!

Maria Quitéria de Jesus - ilustração de Guilherme Karsten. Imagem capturada aqui!

Joana Angélica - Imagem capturada aqui!

sexta-feira, 22 de julho de 2022

COMENTANDO A HQ "NÃO ERA VOCE QUE EU ESPERAVA"

Eu desenvolvi nos últimos anos uma preferência por quadrinhos autobiográficos. Isso aconteceu quase que naturalmente, à medida que fui tendo acesso a esse tipo de material. Sobre esse gênero eu o considero ímpar pois ele é capaz de abrir uma comunicação mais ampla entre leitor e autor.  Isso porque, pelo menos no meu caso, eu sinto como se alguém estivesse me contanto uma história. Algo bom pessoal que essa pessoa quer compartilhar com outras pessoas. 

São quadrinhos que tem uma sensibilidade muito grande e muitas vezes falam de coisas que nós costumamos guardar para nós mesmos. São HQs, também, que possuem um certo compromisso com o que estão narrando. Algumas vezes eles nos ensinam sobre o que não sabemos ou o que achamos saber. Eles acabam assumindo uma um função informativa.

Eles podem ser, também, comparados ao gênero literário "memória". Um quadrinista ao fazer um quadrinhos autobiográfico se torna um memorialista, mesmo que não seja essa a sua intenção. Esse exercício da escrita de si é incrivelmente cativante porque temos uma sede enorme de estar com o outro, mesmo que seja apenas apropriando sua narrativa. 

Nos encontramos, muitas vezes, nessas narrativas. Nossas dúvidas, nossos preconceitos, nossas próprias experiências podem estar ali. Conheci muitos quadrinistas que, desde o início da carreira, basearam seus quadrinhos na sua própria experiência, embora usassem de uma dose de ficção. E aqui eu gostaria de destacar quadrinistas mulheres, que com quadrinhos autobiográficos encontraram uma forma de serem ouvidas pelo mundo. Seus personagens ficcionais, na verdade, são canais de comunicação por meio dos quais elas se abrem para o mundo.

No entanto, colocar-se como personagem, abrir seus pensamentos, narrar sua própria experiência na primeira pessoa não é fácil. Embora possa-se usar do recurso da ficção para dar certo alívio cômico ou mesmo para expressar emoções mais profundas, essa escrita de si é extremamente desafiadora.

Dito tudo isso, vamos ao que esse texto se presta, que é comentar a HQ "Não era você que eu esperava", do francês Fabien Toulmé. O Autor é formado em engenharia e depois de trabalhar muitos anos no ramo, inclusive no Brasil (onde fez intercâmbio, abriu uma firma e até se casou e constituiu família), resolveu se dedicar aos quadrinhos. O ponto chave dessa mudança foi o nascimento da sua filha caçula, Júlia. É claro, isso é uma dedução, baseada no fato de que "Não era você que eu esperava" foi seu primeiro quadrinho que, publicado em 2014, e narra os primeiros nos de vida da filha, que nasceu com síndrome de down, também conhecida como  trissomia 21 .

O quadrinho fala das dificuldades de Toulmé, enquanto pai, aceitar a filha como sendo portadora de uma deficiência. Uma verdadeira autoterapia na qual o autor expõe e analisa seus sentimentos. Não há floreios. Toulmé assume seu lado preconceituoso, expõe sua dor e a de sua família. Não se apresenta como um pai perfeito mas como uma pessoa que aprendeu a aceitar as diferenças. Ele narra seu processo de humanização, se posso assim chamar, que ocorre à medida que ele interage com a criança que, desde o início, ele achava que nunca iria aceitar.

Há muitas histórias sobre amor materno. Eu sinto falta de histórias sobre amor paterno. Principalmente quando conseguimos perceber em "Não era você que eu esperava", como o mito do amor incondicional dos pais é realmente uma construção social. Toulmé e sua esposa, Patrícia, tiveram que aprender a amar a criança. Ela não era amada só por existir. Isso porque a relação consanguínea em si não garante que o amor entre pais e filhos floresça. Até para amar é necessário um esforço.

Esse é um ponto que eu gostei muito. Ver esse amor sendo construído. Ele não é natural, mas resultado de interação, de abertura para o outro, de romper preconceitos e padrões. Toulmé discriminava crianças com síndrome de down. Ao se tornar pai de uma criança portadora de trissomia 21 ele foi levado a rever seus preconceitos e aceitar as diferenças. Isso porque esse tipo de medo nasce justamente de não se encontrar no outro, ou seja, naquele que é diferente de nós.

Dito isso, só me resta recomendar o quadrinho. Boa leitura, traço agravável e extremante sensível e impactante.


 

 


terça-feira, 19 de julho de 2022

ARTIGO SOBRE A HQ PELE DE HOMEM

Ano passado eu postei aqui minhas impressões sobre a HQ "Pele de Homem". Gostei tanto que até mesmo participei de um vídeo comentando sobre essa produção, com Valéria Fernandes da Silva e Fabiana Rubira (clique aqui para conferir). Por fim acabei produzindo um artigo sobre ele, com o título: "Pele de Homem e a desconstrução dos Papeis de Gênero nos Quadrinhos", que saiu pela Revista da Universo. Foi meu último trabalho publicado como doutoranda. 

Vou compartilhar aqui o resumo do artigo e, logo depois o link para quem quiser ler na íntegra.

"Pele de Homem"(2020) é uma história em quadrinhos, doravante HQ, franco-belga, que conquistou o público europeu e foi traduzida em 2021 para o português. A narrativa é ambientada na Itália do período renascentista e gira em torno de Bianca, uma jovem que se prepara para o casamento, mas que deseja conhecer o futuro marido. Seu desejo se realiza quando ela descobre um artefato místico que é passado de geração em geração para as mulheres da sua família, uma pele de homem. Trata-se de uma HQ que fala, com muita sensibilidade, sobre a condição feminina numa sociedade patriarcalista, que discute questões relativas aos papéis de gênero, a sexualidade e a homoafetividade, ambientado naquele contexto italiano. O roteirista Hubert Boulard e o ilustrador Frédéric Leutelier constroem uma história que mistura elementos históricos e ficção que dialogam com o presente. Nessa narrativa escrita e visual, o leitor(a) pode se encontrar representado(a) em vários momentos.

Para ler o artigo completo, clique aqui!


sábado, 2 de julho de 2022

DESAFIOS DAS ESCOLAS PÚBLICAS PÓS-QUARENTENA

Imagino que mais de uma centena de textos sobre educação trazem como título a palavra desafio. Desafiar, segundo o dicionário, significa, provocar uma pessoa, incitar alguém para um duelo, combate ou guerra, medir forças durante uma luta ou competição. Para a escola, e os professores, desafiar significa enfrentar todos os dias os obstáculos desempenhar bem sua função. Agora, muito mais do que antes, tem sido uma prova de fogo lecionar.

Estamos diante de uma horda de alunos despreparados para a vida escolar. E esse despreparo não se deve apenas às questão de aprendizagem, de apropriação de conteúdos. O desafio maior tem sido o da convivência. Não apenas a convivência com os professores, mas entre eles mesmos. Falo aqui da minha experiência neste primeiro semestre, com alunos do fundamental II, em escola pública. 

Alunos que não tiveram oportunidade de estudar e frequentar a escola por dois anos. As aulas remotas, realizados por meio de aplicativos, usando o celular, desgastaram os professores e não tiveram muito efeito sobre uma clientela que, muitas vezes, nem celular possuía. A saúde mental tanto de alunos quando de professores também sofreu com a pandemia de Covid-19. O resultado disso, eu tenho testemunhado na escola, às vezes durante minhas aulas, às vezes em relatos de colegas. 

Imagem capturada em: https://www.facebook.com/cnj.oficial/photos/a.191159914290110/1681947658544654/?type=3

O bullying na escola aumentou enormemente, a ponto de resultar, em alguns casos, de violência física, quando a vítima chega ao limite e revida de forma quase desesperadora. É praticamente uma rotina constante ficar atenta a sinais de intimidação entre alunos, buscando evitar qualquer tipo de assédio moral.

A imaturidade é outro ponto. Nesses dois anos de afastamento da escola, os alunos perderam ou não desenvolveram o traquejo básico para conviver com outras pessoas, sejam elas os colegas ou os professores. Temos alunos do sétimo ano que agem como crianças do quinto ano. Crises de choro e de ansiedade se tornaram rotina. 

Tanto professores quanto alunos estão sendo vítimas de violência moral. À falta de limites some-se a falta da educação familiar. Alunos rebeldes e desrespeitosos, muito mais do que antes. Claro, isso é uma generalização. Temos alunos que sabem lidar com o ambiente escolar e com os outros de forma cordial, mas acabam sendo prejudicados pelo contexto geral. São eles, inclusive, os que mais sobre com o bullying.

Ouvi de um colega que uma mãe reclamou que a escola não está educando seu filho, pois ele está desenvolvendo "maus hábitos". Fico imaginando que algumas, não todas claro, famílias pensam que a escola deverá ser responsável pela formação moral de suas crianças. Mas isso não é papel dos pais? Não é a família que cria a base da identidade da criança, lhe ensina valores e transmite sua experiência de vida?

Imagem capturada em: https://twitter.com/kaol_/status/1154072744495108096

É muito complicada a própria relação  entre os alunos. Muitas agressões verbais ou mesmo físicas por conta de coisas irrelevantes. Fiquei assombrada com a reação de alunos mais velhos quando solicitei que mantivessem o distanciamento. Eles começaram se se agredir verbalmente, com xingamentos, e ameaças físicas. E como gritam uns com os outros! 

É visível a instabilidade psicológica dos adolescentes, que estão passando por uma fase da vida caracterizada por muitas mudanças físicas. Essa instabilidade se torna visível na forma como tratam o outro. E o apoio da família parece ter diminuído. Talvez para não ter que assumir a responsabilidade de ensinar, no sentido de educar para vida, muitos pais têm apoiado as más ações dos filhos e sobrecarregando o trabalho dos especialistas. Estamos tendo que repensar o papel da escola e do professor, em particular. 

Neste retorno às aula presenciais eu tenho observado muitos dos meus colegas empenhados em trabalhar. Temos buscado alternativas para suprir a deficiência de aprendizagem. No entanto, ao mesmo tempo somos desestimulados pelo ambiente difícil da sala de aula. Com isso o desgaste físico e emocional diários  tem refletido em adoecimento, o que faz com que professores de afastem da sala de aula temporariamente, interrompendo um ciclo de trabalho que precisará ser retomado no futuro.

Enquanto ambiente social, a escola tem sido palco de relações tóxicas, resultado de dois anos de isolamento que parecem ter feito com que os alunos esquecessem de como é ser aluno. Hoje o desafio não tem sido o ensino-aprendizagem, mas incutir normas básicas de convivência social e respeito ao outro. 

OBS: Este texto é uma autoanálise, uma forma que encontrei de refletir sobre os problemas que tenho e que outros colegas têm tido na pratica docente diária. Sempre acreditei no poder da palavra escrita. Não apenas pensar sobre algo, mas escrever sobre algo pode ampliar a compreensão que nós temos da realidade e de nos mesmos.

domingo, 26 de junho de 2022

COMENTANDO O LIVRO "MULHERES QUADRINISTAS - NO CEARÁ TEM DISSO, SIM!"

Terminei neste fim de semana de ler o livro "Mulheres Quadrinistas no Ceará tem disso, sim!", de Jeanni Cordeiro Barros, com prefácio da pesquisadora Sônia Luyten. Comprei o livro durante a pandemia e ele estava entre minhas prioridades de leitura depois que eu concluísse a minha tese. E foi uma leitura muito boa, por sinal. Fazia tempo que um livro teórico não me prendia tanto ao ponto de eu o ler quase todo em um dia. O livro me cativou por duas coisas.

Primeiro porque apresenta a obra de mulheres quadrinistas, apresentando as autoras juntamente com sua obra. Conhecer a autora ou autor, permite o leitor se apropriar de uma forma diferente da obra. Barros faz um trabalho biográfico e, ao mesmo tempo uma História dos Quadrinhos, além do um registro memorialístico. 

Em segundo, a obra não deixa de ser um registro da história dos quadrinhos local. O que é fantástico. Minha primeira formação como pesquisadora foi em História Local e eu tenho o maior respeito por quem se dedica a essa linha de pesquisa. Eu mesma tento, quando posso, voltar às minha origens, produzindo artigos e livros sobre o tema.  Algo que deveria ser feito em todos os Estados. 

Outra coisa que eu gostei muito foi o fato da autora ter feito uma História das Mulheres na Arte. Barros um movimento que vai do macro ao micro. Ela contextualiza as mulheres no campo das artes de uma forma geral, ela parte para as mulheres nos quadrinhos o Brasil e, nos capítulos que seguem, coloca o foca nas mulheres produtoras de quadrinhos no Ceará.

Por fim, resta elogiar o projeto gráfico. O livro é muito bem diagramado. O tamanho e o papel são muito bons, com ilustrações coloridas e em preto e branco. O valor também é acessível. Um item que não pode faltar na biblioteca de quem pesquisa quadrinhos no Brasil.


sexta-feira, 24 de junho de 2022

CONHECENDO O BAIRRO DE BOM RETIRO, EM SÃO PAULO

Fiz minha primeira viagem longa desde o início da pandemia, em 2020, e foi para o Estado de São Paulo. Passei uns dias em Campinas (SP) na casa de uma amiga. Fui curtir um pouco de frio e tomar um bom vinho a noite, acompanhado de uma conversa agradável. Em Campinas eu tive três momentos marcantes. O primeiro foi conhecer a gibiteca da Biblioteca Pública Municipal Prof. Ernesto Manuel Zink. Fui por indicação de um amigo e gostei muito de poder conhecer uma gibiteca que fica dentro de uma biblioteca. É outro tipo de trabalho, ambiente e organização. Fui muito bem recebida, por sinal, e voltei de lá com muitas ideias para futuras parcerias.

Gibiteca da Biblioteca Pública Municipal Prof. Ernesto Manuel Zink

O segundo momento foi reencontrar, depois de uma década, o querido Bira Dantas, cartunista que fez o logotipo da nossa Gibiteca, aqui em Leopoldina (MG). Marcamos de nos encontrar na Nico Paneteria, uma padaria/lanchonete com um cardápio incrível. Boa conversa e doces deliciosos. Foi ótimo. Não sei vocês, mas uma das coisas que eu mais senti falta durante essa pandemia foi de fazer esse tipo de programa. Algo que parece tão trivial, mas que ganhou importância justamente porque não podíamos ter mais esses pequenos prazeres.

Mini-bolo de chocolate com morango do Nico Paneteria. Divino!

O terceiro momento foi assistir a uma manifestação do sindicato dos servidores municipais, que estavam aguardando o resultado das negociações sobre o seu aumento salarial. Minha amiga é servidora aposentada e queria participar. Fui junto pois queria ver como era. Tinha até cartaz pedindo greve. Foi emocionante, no início, mas a emoção acabou quando o líder do sindicato anunciou o fechamento de um acordo desfavorável aos servidores. Acreditam nisso? E ele ainda jogou a seguinte frase: "Não vai ter greve por que amanhã é feriado". Em??? Sério, eu comecei a rir histericamente. Foi tão ridículo. Mas os servidores estavam furiosos, e com razão.

Manifestação dos servidores municipais em frente da Prefeitura de Campinas (SP).

Mas vamos ao prato principal. São Paulo, capital. Fui para São Paulo na sexta-feira dia 17 de junho para assistir a um show de k-pop. Eu combinei com mais duas amigas e resolvemos ter essa experiência. O grupo que se apresentou foi o 2k(Tu:Zi), um grupo formado por 5 rapazes. Olha, foi um excelente show, com mais de duas horas de duração. Foi minha primeira experiência do tipo. Como o show foi em um teatro, na Mooca, foi bem intimista. Eles pararam e conversaram com o público, em inglês, receberam homenagens de fãs e até bilhetes escritos de improviso. As músicas são um rock-pop agradável para os ouvidos. Foi bem além da minha expectativa inicial.


No dia seguinte eu marquei de encontrar com alguns amigos na feira coreana, no bairro de Bom Retiro. Foi bem legal. Experimentei comidas de rua coreanas, daquelas que a gente vê nos dramas. Tudo uma delícia. Comi tteokbokki, uma massa de arroz (que parece um inhoque) com molho picante e, também comi Odeng um bolinho de peixe com a massa feita com amido, farinha, vinho de arroz e outras especiarias. Na feira estava tendo uma série de apresentações em comemoração ao 9º aniversário do BTS. Aliás, no metrô, linha amarela, havia várias propagandas sobre o aniversário desse famoso grupo de k-pop. Isso me surpreendeu e me deu uma noção maior de como a hallyu está mesmo tomando conta do ocidente. Vejam meu caso, eu quis experimentar tudo que eu sempre vejo na televisão.

Comendo Odeng!

Depois de assistir apresentações e comer os petiscos de rua coreanos, fomos a um famoso supermercado coreano, o Otugui, que tem todos os produtos populares na coreia. De macarrão instantâneo (vários tipos) a bebidas, pães e frutas. Eu queria experimentar de tudo um pouco, mas me contive. Comprei algumas coisas, claro. O que eu mais gostei foi do doce de arroz com recheio de feijão. Gente, é muito bom! Não é muito doce e derrete na boca. Quero aprender a fazer.

Quase no fim do nosso passeio fomos a um restaurante coreano super badalado, o Choyee Café e Restaurante. Pedimos um frango frito para comer tomando cerveja, claro. Quando recebemos o cardápio, achamos o preço bem salgado, mas resolvemos ficar, afinal, era um momento de confraternização. Mas, eis a surpresa. O frango que daria para duas pessoas, foi suficiente para quatro, isso porque todos os pratos vinham com acompanhamentos, salada, kimchi, pajeon , japchae e barata doce empada e frita. Tudo delicioso reposto por três vezes. Tudo incluído no preço do prato escolhido. No final ficou super barato, pela quantidade de comida que foi servida.

Melhor frango frito que já comi em toda a minha vida!

Mas senti falta de uma coisa. Fui pesando que entraria na feira artesanato típico da Coreia do Sul, mas não havia nada. A feira tem apenas barracas de comida. Estava ótimo, lógico, mas isso meio que me decepcionou pois eu queria comprar coisas como xícaras, por exemplo. 

Passeio apesar disso foi um ótimo momento, compartilhado com queridos amigos. Por fim, quando nós estávamos nos despedindo nos deparamos com duas belíssimas pinturas na lateral de dois edifícios. A primeira, uma versão coreana de Alice no país das Maravilhas, a outra uma imagem rural da Coreia antiga. É com essas duas imagens que eu encerro esse texto. Espero que meu relato sirva para quem também está curioso sobre a cultura coreana e quer experimentar comidinhas deliciosas.