segunda-feira, 7 de setembro de 2020

TUDO BEM NÃO SER NORMAL: UM CONTO DE FADAS PARA ADULTOS

Na sua origem os contos de fadas eram sombrios e tenebrosos, utilizados como uma forma de disciplinar e conter impulsos, por meio de histórias nas quais muitas vezes os vilões não era tão piores do que os mocinhos. Eles traziam representações dos perigos da vida cotidiana, eles estabeleciam os limites entre o certo e o errado, reforçavam papeis de gênero que oprimiam as mulheres e traziam à tona o lado sombrio da sociedade. O recado era bem claro, o mundo do não é justo, aprenda a se defender se quiser sobreviver. Os contos de fadas, também,não distinguiam crianças de adultos.

Philippe Ariès, em seus estudos sobre a origem social da infância, explica que na Idade Média as crianças eram considerados seres sem autonomia ou estatuto social. Vai ser apenas na idade moderna que elas serão reconhecidas como tal. Mesmo assim, a infância seria desfrutada, por um longo tempo, apenas pelas crianças que pertenciam aos grupos privilegiados. Chapeuzinho Vermelho, o Gato de Botas, a Bela Adormecida ou a Branca de Neve e os Sete Anões, contos famosos a literatura infantil universal foram copilados, reescritos e adaptados para se tornarem apropriados para o público infantil, afinal, era preciso criar todos um aparato para educar a criança, que não mais é vista genericamente como uma adulto em miniatura.

Recheados de metáforas esses contos foram e ainda são utilizados de forma disciplinadora. Mas, como no passado, eles continuam sendo apropriados e seu discurso mudando de direção. Sobre folclore europeu e a forma como os contos populares eram utilizados de forma disciplinadora, a primeira leitura que tive e recomendo, é a obra de Robert Darnton, “O Grande Massacre de Gatos: e outros episódios da história cultural francesa”, publicado originalmene em 1984, em particular o capítulo um “Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso”, que fala sobre os contos de fadas e os trata como documentos históricos uma vez que trazem representações sociais a partir das quais se pode perceber as mudanças na mentalidade humana. 

Atualmente temos presenciado essa apropriação ou mesmo um retorno à origem da literatura popular europeia por meio do cinema, dos quadrinhos, games e séries de televisão. Os contos de fadas estão sendo reescritos para os adultos e não trazem apenas metáforas com o objetivos pedagógicos, mas estão se tornando um espaço para que a própria psique humana possa ser representada, interpretada e reinterpretada.

Esta pelo menos é a análise que eu faço como consumidora de cultura, a partir do contato com artefatos culturais pop, dos quais eu quero destacar um aqui, em especial a séria dramática produzida pelo Estúdio Dragon e distribuída mundialmente pelo Netflix, “Tudo bem não ser normal” (사이코 지만 괜찮아).  Este K-drama utiliza contos de fadas modernos para falar sobre traumas e sentimentos. A cada episódio uma história é narrada de forma a associar a trajetória dos personagens principais à história que está sendo contada, utilizando diversas metáforas.

Os contos de fadas, de certa forma dividem o protagonismo com os personagens envolvidos na trama. Temos um enfermeiro/cuidador, Moon Gang-tae , interpretado pelo ator Kim Soo-hyun,  que trabalha e hospitais psiquiátricos e que cuida do irmão mais velho autista sozinho, desde que a mãe morreu tragicamente, quando ele tinha apenas 12 anos de idade.  Moon Sang-tae, o irmão autista que tem um talento enorme para a arte, mas que é extremamente dependente do irmão caçula, interpretado pelo ator Oh Jung-se, diga-se de passagem, com perfeição.  

O trio se completa com Ko Moon-young, interpretada pela atriz Seo Ye-ji, uma escritora de contos de fadas de sucesso, com uma história familiar trágica que fez com que ela se fechasse para qualquer tido de sentimentos. É claro, não falta a bruxa, causadora de toda a dor e tristeza que perseguiu os protagonistas até a vida adulta.

"A mão e o tamboril", "O cão feliz", "A criança Zumbi" e o "O Menino que alimentava pesadelos" são contos narrados ao longo da série e que, na verdade, refletem a carga emocional e psicológica que envolve os protagonistas. Na verdade, refletem o estado psicológico da própria escritora, incapaz de criar contos de fada que tenha um final feliz. Na verdade, ela retorna em seus escritos à origem desse tipo de literatura em sua fase mais sombria.

As metáforas contidas nesses contos fazem transbordar a dor reprimida pelos personagens. Assim, é tocante e ao mesmo tempo muito delicada a forma como a literatura interage com a realidade e vice-versa. No episódio no qual é narrado o conto da "Criança Zumbi", Moon Gang-tae, que tem por hábito reprimir suas emoções começa a chorar ao ler a história da mãe que ofereceu seu próprio corpo para alimentar o filho. Ele associa a história à sua infância e ao seu relacionamento com a mãe e o irmão.

A cura dos traumas é o que move a história. A descoberta e reconhecimento de sentimentos reprimidos, o desejo de romper com o passado, a conquista da autonomia e da coragem para encarar os desafios da vida. Um conto de fadas que mostra que os adultos também precisam de cuidados e que o abandono é, provavelmente, a pior doença que a sociedade impõem a aqueles que não se encaixam dentro daquilo que se considera “normal”. Mas o que é normal afinal? 

Tudo bem não se normal é um exemplo de apropriação da literatura pela televisão mas, também, de hibridismo cultural, uma vez que os contos de fada passam a ser parte essencial do da narrativa, criando algo novo, uma mistura de duas formas de arte. Cada conto de fadas que é um presente para o expectador que pode desfrutar de um pouco de literatura, além de uma bela arte ilustrativa, tanto pelas páginas dos livros, que de fato acabaram sendo publicados a partir do k-drama, e dos efeitos de animação usados eventualmente. E isso é o que torna a história sensível e diferente.

Referências:

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos: e outros episódios da história cultural francesa. – São Paulo: Graal, 2011.


sábado, 5 de setembro de 2020

O SETEMBRO AMARELO NA HALLYU: AS REPRESENTAÇÕES DO SUICÍDIO NA CULTURA POP

Cena de suicído no K-drama "W: two worlds"

No último ano eu me aproximei da Hallyu (Onda Coreana)[1] por meio dos k-dramas e, depois pelos quadrinhos. O que é algo natural para mim, e quem acompanha o blog já percebeu. Gosto de conhecer outras culturas, especialmente pelas suas expressões artístico-narrativas, pois elas sempre me conduzem a questionamentos e indagações.

Foi assim quando comecei a estudar quadrinhos estadunidenses da primeira metade do século XX, para o mestrado, e está sendo assim com quadrinhos franceses no doutorado. Paralelamente, sou fascinada pelos estilo sueco de fazer quadrinhos, por exemplo e quero me aprofundar mais mais além dois artigos que já escrevi e penso neles potencialmente como um tema para pós-doutorado. Mas eu ainda não tinha tido interesse pela produção do leste asiático, mesmo tendo muitos amigos leitores e pesquisadores, que produzem um ótimos material sobre o assunto. Assumo que nunca fui leitora de mangá, por exemplo, apesar de apreciar o traço de muitos artistas, mas só na última semana eu comprei dois, por conta de temas que emergiram em k-dramas que assisti recentemente.

O contato com a produção sul-coreana mudou minha perspectiva e me fez querer saber mais sobre o oriente. Achei a história da Coreia muito interessante, e a forma como o país se construiu, sua cultura e as relações de gênero desafiaram minha curisosidade. E isso se deve essecialmente ao contato com a cultura de massa sul coreana. Primeiro, eu me surpreendi com a qualidade da produção para a televisão e, posteriormente, para o cinema. Em seguida eu percebi que a produção para a televisão, os chamados k-dramas, não apenas dialogava muito com a linguagem dos quadrinhos como, também, se apropriava deles de uma forma que não vejo acontecer no contexto ocidental.

Foi assim que cheguei aos manhwas (quadrinhos coreanos) e sua forma mais popular, os webtoons. Dando uma explicação rápida, os webtoons são um formato de quadrinhos digitais muito populares na Coreia do Sul, consumidos em grande quantidade por pessoas de todas as idades. Lá se desenvolveu o que se chama de snack culture, uma forma de cultura que pode ser consumida em poucos minutos, por meio dos smartphones. Há de tudo, k-dramas com episódios de 5 a 10 minutos, webtoons em capítulos, romances em fascículos. Todos são postados periodicamente e, aos poucos, o leitor vai conseguindo acompanhar sua série preferida enquanto toma um café, está no metrô ou no ônibus. Ideal para uma sociedade na qual quase não há tempo para o lazer.

Uma sociedade movida pela necessidade de trabalhar cada vez mais. O sucesso na carreira não e possível a todos e existe uma discriminação muito grande para com aqueles que não são bem sucedidos. Vem daí a cobrança enorme sobre os jovens, que quase não possuem tempo para se divertir, debruçados em cima dos bancos escolares, estudando nos fins de semana.  Até porque não basta apenas entrar em uma universidade, mas sim numa das três mais prestigiadas, Seoul, Korea e Yonsei, apelidadas de “Sky”.

Para o psicólogo Kim Tae-hyung, que trabalha em Seul, as crianças coreanas estão "crescendo sozinhas, estudando sozinhas". "Elas são forçadas a estudarem muito e competirem com seus amigos. Esse tipo de isolamento pode causar depressão e pode ser um grande fator para suicídio."

No mundo todo, suicídio é a segunda causa de morte entre pessoas jovens, mas na Coreia do Sul é a causa número um e morte de jovens entre 10 e 30 anos.

O país também tem os maiores níveis de estresse entre jovens entre 11 e 15, em comparação com qualquer outro país industrializado do mundo, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).[2]

Os adultos, por sua vez, são forçados a se dedicar quase que inteiramente ao trabalho, até idade avançada, uma vez que o sistema previdenciário do país é insuficiente para garantir seu sustendo durante a terceira idade. Por conta de tanta pressão social, o consumo de álcool na Coreia do Sul duas vezes maior do que o da Rússia e o índice de suicídios naquele país e um dos mais elevados do mundo, o maior entre os países em desenvolvimento. E isso aparece constantemente representado seja nos k-dramas, seja nos manhwa.  

Coreia do Sul, com 29,1 casos a cada 100 mil habitantes em 2012, é a nação desenvolvida com mais suicídios, segundo dados publicados este mês pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O país ocupa o 1º lugar pelo nono ano consecutivo, muito acima do segundo, a Hungria, com 19,4 casos a cada 100 mil habitantes. À margem do "clube oficial dos países ricos" só a Lituânia supera a Coreia do Sul. O país europeu tem 31 casos a cada 100 mil, conforme dados de 2012. Mais de 14 mil pessoas se suicidam anualmente na Coreia do Sul e a incidência dobra na terceira idade, revelando o lado mais cruel de um país entregue ao desenvolvimento, ao dinheiro e à honra.[3]

Nos k-dramas e nos manhwas há referências constantes ao suicídio. Personagens que tiram sua vida por não aguentarem a pressão social, personagens que pensam em se matar pelo menos uma vez durante a trama. O rapaz que não aguenta a pressão da família que cobra dele o ingresso em uma boa universidade ou que passe em um concurso público; a moça que sofre com excesso de trabalho e assédio no emprego; o rapaz que perdeu os movimento das pernas em um acidente e se sente um pária numa sociedade que exige que todos sejam produtivos; o idoso abandonado pelos filhos e que não possuí meios de se sustentar. A pobreza de uma parcela significativa da sociedade, que vive de subempregos.

"Chesse in the trap", k-drama adaptado de um webtoon.

Efeitos nocivos em uma sociedade que abraçou o neoliberalismo e é uma das mais globalizadas do mundo, e que podem ser percebidos nos produções midiáticas que, apesar dos clichês básicos e necessários para prender a audiência, trazem representações sociais que podem ajudar a refletir acerca de temas que nos são comuns.

Por ser a quarta maior causa de mortes nos país, a prática do suicídio encontrou o caminho da naturalização. O que se procura atualmente é buscar suas causas e tentar combate-las, o que não necessariamente é fácil, num país no qual ele se tornou uma questão de saúde pública, levando o Estado a tomar medidas preventivas e até restringir a venda de pesticidas, por exemplo, usados principalmente pelas mulheres que querem se suicidar. 

O debate sobre o tema ganhou ainda mais destaque quando ídolos da Hallyu começaram a morrer quase que seguidamente. Jovens atores e cantores que tiraram suas vidas em meio ao sucesso por não suportarem as pressões do trabalho e da sociedade. Pressões estas, aliás, que são constantemente abordadas em webtoons e k-dramas nos quais os protagonistas são ídolos da música ou da televisão.

“À medida que a imprensa internacional presta mais atenção ao que está por detrás deste género musical, mais se descobre: dietas rigorosas, cirurgias plásticas, contratos severos, subornos, assédio e muitas horas de trabalho são algumas das difíceis condições da indústria K-pop já antes relatadas.”[4]

Os webtoons e os k-dramas acabam e tornando espaços para denuncia e combate, por exemplo, do suicídio, quando questionam o “por que?” ou quando buscam passar uma mensagem de encorajamento.nA denúncia constante de abusos estão presentes nos manhwas e nos k-dramas. No Netflix, por exemplo, o k-drama adaptado de um webtoon, “Cheese in the trap”(2016), mostra as dificuldades de uma jovem de origem pobre em uma universidade, vítima da pressão social e bullying. Mystic Pop Up Bar (2020), também adaptado de um webtoon, tem como protagonista é uma mulher que cometeu suicídio e por determinação divina deveria voltar à terra e ajudar a curar as almas de 100 mil pessoas que acumulavam mágoas. 

Em uma outra produção, que leva os quadrinhos para o k-drama por meio de apropriação de linguabem, “W: Two Worlds”(2016), temos um cartunista mergulhando na depressão e no alcoolismo cujo pensamento está o tempo todo voltado para a morte, como única solução para seus problemas. Um dos grandes sucessos do cinema sul coreano, também adaptado de um webtoon, Along with the gods: two worlds (2017), por exemplo, apresenta um personagem que está sob vigilância por risco de suicídio, durante o período do serviço miltar obrigatório no país.

Mystic Pop Up Bar, webtoon adapta para k-drama que tem como tema a depressão gerada pelos problemas diários da população.

Assim como esses, há tantos outros exemplos que a cultura de massas nos oferece e que ajuda a levantar questões acerca de qual sociedade estamos criando e qual sociedade realmente precisamos ter. Mesmo que o caso sul coreano seja ímpar, e preciso lembrar que os problema é global e que, apensar das diferenças culturais, as causas muitas vezes são as mesmas. Tendo sido criada para ser um produto de consumo a cultura de massas extrapola seus objetivos originais uma vez que acaba assumindo o papel de atender às demandas sociais. Denunciar situações abusivas, corrupção política, misoginia, racismo e tantos outros injustiças passou a der o pano de fundo de muitas tramas, de músicas e da arte que, à sua maneira, se apresentam canais de conscientização e de reflexão.

Embora o modelo coreano não seja global, é a tendência do neoliberalismo priorizar o trabalho e produção. As pessoas passam a ser muito mais valorizadas pelo que são capazes de oferecer e termos produtivos do que necessariamente sociais, assim como cresce a falta de empatia e o distanciamento entre as pessoas. 

É preciso refletir a forma como esse modelo pode ser perverso e de como ele tem ganhado espaço e aumento ainda mais as diferenças entre as pessoas. Em tempos de pandemia, a falta e empatia parece ganhar novos contornos e maior destaque, uma vez que para uma significativa parcela da sociedade global, o dinheiro tem tido prioridade sobre a vida. Estamos encarando a morrte cada vez com mais naturidade. Não que ela não seja natural. Mas não é natural alguém pensar em tirar a vida com apena 11 anos de idade, ou um idoso achar que sua vida vale menos do que a de um jovem, ou um empresário e membros de um governo afirmar que a morte por covid-19 é invitave e, bem, vamos nos confomar. A falta de empatia com o sofrimento alheio não tem nada de normal.



[1] Hallyu é um termo que foi criado na China, no final da década de 1990, e apropriado pela Coreia do Sul que pode ser traduzido como a expansão da cultura sul coreana por meios da exportação de produtos e hábitos culturais.

[2] SHARIF, Hossein. O temido 'Enem' que sela o futuro dos jovens e paralisa a Coreia do Sul por um dia(2018). Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46221616>. Acesso em: 05 set. 2020.

[3] AMERISE, Atahualpa. Coreia do Sul: a república do suicídio (2015). Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2015/09/18/coreia-do-sul-a-republica-do-suicidio.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em: 5 de set. 2020.

[4] MARTINS, Raquel. Sucesso, depressão e suicídios. O encanto e o lado negro da indústria K-Pop (2029). Disponível em: https://observador.pt/2019/11/30/sucesso-depressao-e-suicidios-o-encanto-e-o-lado-negro-da-industria-k-pop/. Acesso em: 05 de set. 2020