terça-feira, 2 de março de 2021

A IMPRENSA DAS MULHERES NO SÉCULO XIX NA FRANÇA

Página do Journal des dames et des modes, 1830

Pinterest. Imagem disponível em: https://br.pinterest.com/pin/208432288981056862/. Acesso em: 18 set. 2018.


Desde que os primeiros jornais começaram a circular na França, as mulheres letradas passaram a ter acesso ao seu conteúdo. Eram, no entanto, jornais voltados para o interesse dos homens e que não consideravam as mulheres como um público leitor em potencial.  Mas no século XVIII surgiram os primeiros periódicos destinados ao público feminino, apesar de obedecerem a uma pauta editorial específica e restrita, ditada pelos homens.

Um dos primeiros periódicos voltado para as mulheres foi o Journal des Dames[1], fundado por Thorel Campigneulles, o periódico que circulou em Paris entre os anos de 1759 e 1778.  O Journal des Dames era um jornal literário criado para incentivar as mulheres a escreverem[2]. Era uma publicação que abria espaço não apenas para a expressão feminina, através de suas editoras, como, também, externava a preocupação com a educação das mulheres. Outros periódicos seriam publicados na França, mas com uma linha editorial diferente. 

O periódico teve três editoras, dentre elas Madame Beaumer, ferrenha defensora dos direitos das mulheres.  Em um editorial publicado em março de 1762, defendia  o Journal des Dames de seus críticos e também as mulheres enquanto protagonistas sociais. Segundo Madame Beaumer, o sucesso do jornal incomodava os homens que insistiam em não reconhecer a capacidade das mulheres de escrever e ter opinião. 

Com um tom duro contra os detratores do periódico, Madame Beamer defendia o direito das mulheres de se expressarem em público e de participarem da cultura letrada. Ela foi a “primeira jornalista das damas”. A partir dela o Journal des Dames assumiu um discurso não conformista e até mesmo radical. Sobre a vida de Madame Beamer sabe-se muito pouco. Ela se destacou pela sua militância política a favor dos pobres e oprimidos, por justiça social, pela maçonaria, tolerância religiosa, por uma república livre e pela paz mundial[3]. 

Segundo Michele Perrot, a primeira imprensa das mulheres a formar-se no país foi voltada para a moda e outras atividades consideradas de interesse feminino. Elas ficam confinadas a publicações direcionadas a jovens e mulheres e a temáticas superficiais, que não demandavam grande esforço. A profissão de jornalista permanecia restrita para grande parte das mulheres que, mesmo colaborando com periódicos já desde o século XVIII, na França, ainda não tinham o direito de se profissionalizar como jornalista . A primeira mulher a reivindicar para si o jornalismo como profissão, foi Jeanne Deroin, em 1850, durante o julgamento da l’Union des Associations (União das Associações), quando vinte pessoas foram acusadas de atividades socialistas ilegais. Quando indagada de sua profissão ela responde: professora e jornalista[4]

Em 1797, surgiu aquela que é considerada a primeira revista de moda ilustrada francesa, o Journal des Dames et des modes, que circulou até 1839.  Este tipo de impressa cresceu e se desenvolveu ao longo do século XIX, sob a égide da II Revolução Industrial, que favoreceu o surgimento de uma pequena e média burguesia que queria se distinguir por meio da elegância de seus trajes e que impulsionou a indústria da moda. 

Durante a Revolução Francesa, os elementos que dentavam distinção social com vestuário, linguagem, comportamentos, deferência e títulos foram sendo abandonados, uma vez que eram mal vistos pelos revolucionários. Era difícil definir a origem social dos indivíduos, por exemplo, pela sua vestimenta[5]. Segundo Denise Davidson, periódicos como o Journal des Dames et modes tinham a função social de ensinar esta nova burguesia a se comportar, se vestir e criar uma nova identidade social[6]. Publicações como o Journal des dames et des modes cumprem parcialmente essa função para aquelas mulheres que não o sabem fazer sozinhas. 

Era a burguesia francesa construindo a sua identidade após a tomada do poder e a consolidação de suas conquistas com a revolução. O crescimento desta indústria levou à formação de um mercado de consumo direcionado especificamente às mulheres, com produtos que passaram a ocupar espaço nas vitrines das lojas e dos boticários. 

Mas as mulheres acabaram se apropriando destas revistas para tratarem de temas de seu interesse como foi o caso do Journal des demoiselles, fundado em 1833 por Jeanne-Justine Fouqueau de Pussy, destinado a meninas com idade entre 14 e 18 anos. Michele Perrot cita a publicação em seu livro Minha História das Mulheres (2007), onde destaca a tese de doutorado de Christine Léger, defendida em 1988, que analisa a publicação e seu papel na educação de meninas no século XIX. O Journal des Demoiselles destacou-se por ser uma publicação mensal composta, escrita e mesmo parcialmente financiada por mulheres. Na revista podia-se observar, segundo Michele Perrot, um desejo de emancipação das mulheres pela educação e pelo trabalho. A revista aconselhava jovens a estudarem, por exemplo, outros idiomas, pois a tradução era uma profissão conveniente para a mulher[7]

Ao resenhar a tese de Léger, para a revista Romanisme (1992), Perrot chama a atenção para as formas de valorização da mulher, enquanto sujeito social, que eram apresentadas no periódico por meio de biografias de mulheres notáveis e novas representações, por exemplo, do casamento, que aparece como sendo uma escolha da mulher, a quem se aconselha que seja por amor, mais igualitário e com esposas mais ativas e independentes, Há ainda a preocupação em preparar as meninas para a inserção no mercado de trabalho, através de profissões como a de ilustradora, que aparece como outro meio de subsistência e de independência financeira[8]

Atividades como a tradução e a ilustração poupavam as jovens mulheres do convívio com homens em um espaço de trabalho fechado, pois poderiam ser desenvolvidas no espaço privado. Ao longo do século XIX em países como França, Estados Unidos e Suécia, a ilustração como atividade remunerada foi desejada e abraçada por muitas jovens, sendo que algumas delas se destacaram na nascente indústria cultural do século XIX. 

Esta nascente imprensa das mulheres gira em torno de dois eixos: educar a juventude e formar um novo mercado consumidor para os produtos destinados ao consumo feminino. Em sua maioria são periódicos de tom moralista e conservador, embora exista um discurso latente de valorização da mulher e uma demanda por direitos civis e políticos. Mesmo nas publicações mais inocentes, ao mesmo tempo em que se exige o recato também há a preocupação de se elevar a autoestima feminina, em maior ou menor proporção, de acordo com a orientação editorial do periódico.



[1] PERROT, Michele. Minha História das Mulheres.- São Paulo: Contexto, 2007, p. 33

[2] BEAUMER. Editorial, Journal des Dames (march 1762). Disponível em: <http://chnm.gmu.edu/revolution/d/471/>. Acesso em: 20 set. 2018.

[3] DAVIS, Zemon Natalie, FARGE, Arlette (editors). A History of Women in the West – II Renaissence and Enlightenment Paradoxes. 2º ed.- London: Havard Univesity Press, 1993, p. 428.

[4] PRIMI, Alice. La “porte entrebâillée du journalisme”, une brèche vers la Cité ?  Femmes, presse et citoyenneté en France, 1830-1870 », Le Temps des médias 2009/1 (n° 12), p. 28-40. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-le-temps-des-medias-2009-1-page-28.htm>. Acesso em 23 de setembro de 2018, p. 28.

[5] DAVIDSON, Denise, « L’identité politique et sociale au quotidien, 1795-1815 », Annales historiques de la Révolution française [En ligne], 359 | janvier-mars 2010, mis en ligne le 01 mars 2013. Disponível em: https://journals.openedition.org/ahrf/11497>. Acesso em: 20 set. 2018, p. 162.

[6] DAVIDSON. Op. Cit, 2013,  p. 171.

[7] PERROT, OP. Cit., 2007, p. 33

[8] PERROT, Michelle. Christine Léger, Le Journal des Demoiselles. In: Romantisme, 1992, n°77. Les femmes et le bonheur d'écrire. pp. 101-102. Disponível em: <www.persee.fr/doc/roman_0048-8593_1992_num_22_77_6060>, acesso em: 20 set. 2018, p. 102.

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