terça-feira, 9 de março de 2021

A NASCIMENTO DA IMPRENSA FEMINISTA NA FRANÇA

Clementine-Hélène Dufau,  La Fronde, 1898, cromolitografia, 99, 80 x 137, 80 cm, colecção privada©Direiros reservados

Estas revistas tiveram um aumento significativo entre as décadas de 1820 e 1850, com 97 títulos publicados. Entre 1870 e 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, mais 30 periódicos já haviam surgido[1]. Alguns com maior ou menor longevidade, a frequência e a quantidade com que estes periódicos – jornais e revistas – foram publicados na França, durante o século XIX e início do século XX, sinaliza para a formação de publico leitor notadamente feminino que vai se identificar com o conteúdo destas publicações que, apesar de trazerem representações idealizadas das mulheres, abrem espaço para que temas de seu interesse político e social possam ser lidos e debatidos a partir da troca de correspondência entre leitoras e editores (as).

A imprensa feminina francesa, desde sua gênese, esteve comprometida com a manutenção da ordem social e entoava, em sua maioria, um discurso alinhado com aquele do patriarcado. No entanto, ao dar voz às mulheres por meio da imprensa, esta mesma ordem social permitiu que as mulheres estabelecessem uma postura crítica com relação a certos comportamentos que limitavam sua inserção no espaço público e lhe impunham normas de decoro que, com o tempo e o surgimento do movimento feminista, passaram a ser questionadas e não toleradas.

Ao lado desta imprensa das mulheres, e alinhada aos grupos dominantes, surgiu no século XIX, uma imprensa feminista, que nasceu e cresceu a partir das revindicações de direitos políticos para as mulheres, que neste período tinham como pauta central o sufrágio. É preciso estabelecer as diferenças entre estas duas mídias, a partir de seus objetivos, para que possamos compreender seus papéis dentro da sociedade francesa.

A imprensa feminista é engajada e suas primeiras jornalistas tinham como princípio a crítica ao poder e eram motivadas pelo idealismo. As feministas têm consciência da importância e do papel da imprensa como instrumento formador de opinião. Segundo Perrot, elas se recusavam, por exemplo, a adotar o sobrenome do marido e assinavam apenas com seu primeiro nome[2].

Em agosto de 1832, começou a ser publicado o primeiro jornal feminista francês, La Femme libre, produzido e publicado por mulheres, sob a direção de  Marie-Reine (Reine Guindorfe) e Jeanne-Désirée (Désirée Véret), ambas pertencentes ao florescente movimento Saint-Simoniano[3]. O Movimento Saint-Simoniano era ligado ao socialismo utópico que surgiu no início do século XIX na Europa. Ele tinha como preocupação os papéis sociais e econômicos das mulheres na sociedade. Acreditava que homens e mulheres estavam envolvidos em uma grande rede social, mas eram inerentemente diferentes.  Em 1832 um grupo de mulheres cria uma dissidência dentro do movimento, Dessa dissidência nasceu o jornal La Femme libre[4].

Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:La-Femme-Libre-1-1832-b.jpg>. Acesso em: Acesso em: 18 set. 2018.

As mulheres Saint-Simonianas formaram uma organização feminista separatista com preocupações e objetivos pragmáticos, que envolvia principalmente o papel social e econômico das mulheres na sociedade.  Suas adeptas questionaram e exigiram mudanças na Lei de Família do Código Napoleônico e queriam a expansão das oportunidades educacionais e econômicas para as mulheres. Elas edificaram um movimento orientado para mulheres e liderado por mulheres.[5] Dentro desse movimento, o La Femme libre, que circulou até 1834, com 34 edições, teve um papel muito importante, criando um novo tipo de imprensa, no qual assuntos como moda e economia doméstica foram substituídos por temas profundamente políticos.

Muito do pioneirismo deste periódico vem da participação de mulheres que falam por si mesmas e não de homens que falam pelas mulheres. E, ao contrário do que aconteceu em outros periódicos voltados para o público feminino, as mulheres que colaboraram e ajudaram a manter financeiramente o La Femme libre eram mulheres do povo. Os custos de publicação foram financiados por costureiras e por assinantes. A independência financeira com relação aos homens possibilitava uma liberdade de expressão para as mulheres que até então não havia sido experimentada[6].

Não era para menos que o periódico tivesse em sua pauta reivindicações pelos direitos civis das mulheres, pela liberdade sentimental, amorosa e sexual[7]. O objetivo do jornal era, acima de tudo, conscientizá-las do seu poder transformador, com base em princípios de liberdade e igualdade[8]. Buscava-se o empoderamento feminino, já em princípios do século XIX, quando o feminismo ganhava seus primeiros contornos. 

Até o final do século muitos outros periódicos feministas iriam surgir na França, à medida que se fortaleciam as reivindicações das mulheres por participação política, igualdade de direitos e liberdade. Crescia o interesse pelo feminismo, o que seria posteriormente chamado de sua primeira onda, na França. Poder publicar em um jornal e expressar suas ideias políticas era uma forma de libertação para muitas mulheres, de vários segmentos da sociedade. Era poder participar da esfera pública, algo que por muito tempo lhe foi negado.

Marguerite Durand

Neste ínterim, um periódico feminista francês se destacou dos demais, La Fronde. Fundado por Marguerite Durand, ele circulou entre 1897 e 1905. Este foi o primeiro jornal feminista de circulação diária, embora posteriormente tenha se tornado mensal e era totalmente gerido por mulheres: não havia cargos na editoração e na produção, nem mesmo na tipografia, que não fosse ocupado por mulheres.  As mulheres que trabalhavam na sua  tipografia chegaram a fundar o Sindicato das Mulheres tipográficas, em 1899[9].

Foi o primeiro jornal feminista a ser bem sucedido, com uma tiragem significativa e um grande número de leitores. E isso se deveu muito à experiência de Marguerite Durand, uma das mais notáveis jornalistas francesas de seu tempo, que aderiu ao feminismo no final do século XIX. Durand começou sua carreira como atriz e depois de casada passou a se dedicar ao jornalismo. Escreveu para o La Presse, que era dirigido pelo seu marido, o advogado George Laguerre. Após o fim do seu casamento, trabalhou para Le Figaro e a seguir passou a militar em prol do socialismo e do feminismo criando  La Fronde[10].

Com La Fronde surgiu uma mídia impressa dentro dos padrões dos grandes jornais, onde temas feministas passaram a ser divulgados para o grande público, ou seja, saindo de um círculo fechado e limitado de leitores para adentrar em espaços onde os jornais abertamente militantes não penetravam. La Fronde mostrou a vivacidade de um jornalismo feito por mulheres, com compromisso com o profissionalismo e, ao mesmo tempo, com a luta engajada por direitos civis e políticos. O jornal possuía, segundo Sandrine Lévêque, um formato híbrido, no qual se apresentava como um jornal moderno, fiel às regras do mercado, e, ao mesmo tempo, uma empresa particular regida pelas regras e pelo idealismo da sua proprietária[11] Ele era, aparentemente, um jornal como os outros, dentro do modelo padrão do jornalismo francês, mas totalmente feito por mulheres.



[1] ZARMANIAN, Charlotte Foucher. Les femmes artistes sous presse. Les créatrices vues par les femmes critiques d’art dans la presse féminine et féministe en France autour de 1900, Sociétés & Représentations 2015/2 (N° 40), p. 111-127. Disponível em: < https://www.cairn.info/revue-societes-et-representations-2015-2-page-111.htm>. Acesso em: 22 set. 2018, p. 115.

[2] PERROT, Michele. Minha História das Mulheres.- São Paulo: Contexto, 2007,, p. 34.

[3] FERRANDO, Stefania, KOLLY, Bérengère. Le premier journal féministe. L’écriture comme pratique politique. La Femme libre de Jeanne-Désirée et Marie-Reine. in Thomas Bouchet et al., Quand les socialistes inventaient l’avenir, La Découverte.  Hors collection Sciences Humaines, 2015, p. 104.

[4] FORGET Evelyn L. . Saint-Simonian Feminism. Feminist Economics 7(1), 2001, 79–96. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1080/135457001316854737>. Acesso em 21 set. 2018, p. 89

[5] FORGET. Op. Cit., 2001, p.90.

[6] FERRANDO. Op. Cit., 2015, p. 105.

[7] PERROT. Op. Cit., 2007, p. 34.

[8] FERRANDO. Op. Cit.,  2015, p. 109.

[9] CHAIGNAUD, François. L’affaire Berger-Levrault : le féminisme à l’épreuve (1897-1905), Rennes, Presses universitaire de Rennes, 2009,p. 165.

[10] CHALIER,Isabelle.La création du journal La Fronde en 1897 par Marguerite Durand (2018). Retronews – Le site de presse de la BNF. Disponível em: <https://www.retronews.fr/journaux/long-format/2018/04/23/la-creation-du-journal-la-fronde-en-1897-par-marguerite-durand>. Acesso em 22 set. 2018.

[11] LÉVÊQUE, Sandrine. Femmes, féministes et journalistes : les rédactrices de La Fronde à l'épreuve de la professionnalisation journalistique. Le Temps des médias 2009/1 (n° 12), p. 41-53. Disponível em: < https://www.cairn.info/revue-le-temps-des-medias-2009-1-page-41.htm>. Acesso em: 23 set. 2018, p. 48.

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