domingo, 15 de março de 2020

A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO E A LEI DO VENTRE LIVRE A PARTIR DE TEXTOS PUBLICADOS PELO JORNAL O LEOPOLDINENSE (1881)


O Leopoldinense está disponível para consultas na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
O jornal "O Leopoldinense" é uma ótima fonte para se estudar Leopoldina e a Zona da Mata de Minas. Leopoldina, que foi um dos municípios cafeeiros mais importantes de Minas Gerais, com participação política ativa durante o Império e da I República, presente nos principais debates que nortearam a sociedade brasileira nestes períodos.

Um deles foi a questão da abolição da escravidão. Leopoldina foi um dos maiores produtores da café da Zona da Mata de Minas e, na década de 1881, possuía o segundo plantel de escravos da província, e um dos maiores do país. A partir de 1870, com a organização do Movimento Abolicionista, a defesa pela abolição ganhou um grande impulso e passou a fazer cada vez mais parte dos debates públicos. 

Numa matéria de quase uma página, publicada em 19 de maio de 1881, intitulada “A emancipação”, o jornal  "O Leopoldinense" assume uma postura que podemos classificar pseudoabolicionista. Ao mesmo tempo em que o periódico defende a emancipação dos escravos que, segundo o editor, traria a felicidade para o país, o artigo condena o movimento abolicionista, afirmando que não há razão para ele existir visto que era consenso geral a necessidade da abolição. Leia um trecho.

“O sentimento que rebenta em borbotões no seio de todos os brasileiros é, sem dúvida alguma, o da emancipação dos escravos. Pergunte-se a cada um de nossos patrícios o que pensa a este respeito, que a resposta será invariavelmente a mesma: - que desejam a realização da liberdade geral.

Não resta dúvida sobre este ponto: todos querem a felicidade da nossa Pátria, baseada na felicidade de nossos semelhantes, livres de todas as cadeias de cativeiro.

Sendo assim, se todos de coração, desejam a realização do bem, para que propaganda abolicionista?

As propagandas só são razoáveis quando o povo está indiferente, ou refratário a alguma ideia. No caso vertente não se dá isso. Não há necessidade de convencer a nossa população, visto já estar dela há muito consciente do que é mister fazer, e para o que deve trabalhar.”[1]

Trata-se de um texto favorável a abolição mas faz oposição à campanha abolicionista. Ele se alinha ao discurso da abolição gradual defendida pelas elites, que deseja acabar com a escravidão no Brasil, sem prejuízo para os senhores de escravos e qualquer plano concreto de inserir o ex-escravo na sociedade. Um texto que falsamente apresenta a totalidade da população brasileira como abolicionista e tolerante, num discurso que mascara uma realidade marcada pela intolerância e pelo preconceito.

A certa altura, o autor do texto convoca os brasileiros a apoiarem, sempre de forma moderada a abolição, citando como exemplo a Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871. Esta lei é também conhecida como Lei Rio Branco. No seu Art. 1º ela dispõe que “Os filhos da mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre”. O parágrafo 1º estabelecia as condições em que isso deverá acontecer.

§1. Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso o governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de trinta anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de trinta dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.[2]

Imagem capturada em: <http://ainfanciadobrasil.com.br/seculo-xix-infancia-e-escravidao/>. Acesso em 15 mar. 2020.

Levando em conta o valor médio de um escravo, que girava em torno de 1:000$00, é de se supor que a maior parte dos beneficiados pela lei permanecia sob a tutela do senhor, a quem era mais vantajoso utilizar dos seus serviços do que receber a indenização oferecida pelo Estado.  De fato, muitos opositores ao projeto chamaram a atenção para o baixo valor da indenização oferecida aos proprietários[3].  Mas, mesmo que as crianças fossem entregues ao Estado este poderia encaminhá-las a associações que poderiam explorar seu trabalho gratuitamente, até os 21 anos. Ou seja, o benefício da lei era limitado.

A lei estava dentro do projeto de emancipação escrava gradual, que resguardava os interesses dos grandes proprietários e prometia uma transição lenta para o trabalho livre, sem o abalo da produção agrícola e, claro, sem penalizar ou trazer ônus aos donos de escravos. Ela ainda libertava os escravos de propriedade do Estado, os envolvidos em herança não reclamas e os abandonados pelos donos.[4]

Mas a mesma lei possuía, também, um dispositivo que criava o Fundo de Emancipação, cujo objetivo era prover a alforria gradual dos escravos existentes no Império. O fundo era regulamentado a partir do Art. 3

Art. 3º. Serão anualmente libertados em cada província do Império tantos escravos quantos corresponderem à quota anualmente disponível do fundo destinado para a emancipação.
§1. O fundo da emancipação compõe-se:
1: Da taxa de escravos.
2: Dos impostos gerais sobre transmissão de propriedade dos escravos.
3: Do produto de seis loterias anuais, isentas de impostos, e da décima parte das que forem concedidas d’ora em diante para correrem na capital do Império.
4: Das multas impostas em virtude desta lei.
5: Das quotas que sejam marcadas no orçamento geral e nos provinciais e municipais.
6: De subscrições, doações e legados com esse destino.[5]

Para tanto, a lei previa no seu Art. 8º que o Estado deveria promover a matrícula de “todos os escravos existentes no Império.”[6] Dava-se prioridade à libertação de famílias de escravos. Segundo Isabel Cristina Ferreira Reis, no Brasil havia-se desenvolvido um modelo de família escrava, unida de forma consensual onde conviviam, muitas vezes, filhos alforriados com pais escravos e que “tiveram que dividir as agruras impostas pelo regime de cativeiro com os seus familiares e parentes não escravos”[7]. A legislação estava, assim, adequada à realidade do escravo naquele final do século XIX e reconhecia a família como um valor a ser preservado.
Imagem capturada em: <http://ainfanciadobrasil.com.br/seculo-xix-infancia-e-escravidao/>. Acesso em 15 mar. 2020.

Cabia a cada município criar uma junta de classificação responsável pela administração desses recursos e pela seleção dos beneficiados a partir dos dados fornecidos pela matrícula. Segundo a pesquisadora Catia Louzada:

“Os recursos do Fundo seriam distribuídos, considerando-se a proporção de escravos existentes, para o Município Neutro e províncias, cabendo aos respectivos presidentes destas a divisão entre seus municípios e freguesias”.[8]

A lei determinava, ainda, que escravos poderiam utilizar seus pecúlios para a compra da alforria, a partir de um valor previamente estabelecido. Este dinheiro viria de economias feitas pelo escravo, sob autorização do seu dono, como forme o Art. 4º:

Art. 4º. É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O governo providenciará nos regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo pecúlio[9].

Segundo Bartira Ferraz Barbosa,  pela primeira vez na História do Brasil foi permitido ao escravo reunir dinheiro para comprar sua liberdade. Tal prática já existia no Brasil, mas ela nunca foi um direito legalmente garantido.

Este mecanismo pouco conhecido da Lei do Ventre Livre foi muito criticado pela historiografia, considerado pouco eficaz e de pequena abrangência. No entanto, a Lei do Ventre Livre inova ao tirar das mais do senhor o direito de conceder ou não a alforria a seu escravo, que agora conquistava um pequeno amparo legal, o que abalava de certa maneira o poder do senhor sobre seu escravo[10].  
 
Angelo Agostini. Imagem capturada em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa203/angelo-agostini>. Acesso em 15 mar. 2020.

O periódico O Leopoldinense publicava editais relacionados ao fundo de emancipação. Leia um trecho:

“Dr Fernando Pinheiro de Souza Tavares, juiz de órfãos da cidade do termo de Leopoldina, na forma da lei et.

Faço saber aos que o presente edital virem, que no dia 18 do mês de junho próximo futuro, a uma hora da tarde na casa da câmara municipal d’esta cidade, terá lugar a audiência para a entrega da carta de liberdade do escravo Claudino, pertencente ao Capitão Manoel José Gonçalves o qual fora alforriado pelo fundo de emancipação na forma do artigo 3º da lei n. 2010 de 28 de setembro de 1871 e 42 do Reg. N. 5135 de 31 de novembro de 1872; devendo o senhor do mesmo, na formalidade do aviso do ministério da Agricultura de 10 de abril do corrente ano apresentar na audiência referida o dito escravo para ser entregue a sua carta,”[11]

Algo que chama atenção é o espaço que foi reservado para a publicação do edital de libertação do escravo Claudino: ao lado de dois anúncios de recompensa por escravos fugitivos. A sociedade brasileira e suas contradições. Ao mesmo tempo em que se festeja a libertação de um escravo, é oferecida recompensa para a prisão de outros dois.

A defesa da lei pelo artigo publicado pelo Leopoldinense e a forma como ela é apresentada, como sendo um grande passo para a abolição, permite analisar o discurso entoado pelas elites num momento marcado pela transição do trabalho escravo para o livre. Se em um primeiro momento, colocando a ideia de que o fim da escravidão significaria a felicidade da nação, o artigo cria a ilusão de que o Brasil é um país onde predomina a tolerância.

Em um segundo momento, ao tentar desqualificar o movimento abolicionista como sendo desnecessário, o autor do texto tenta mascarar a realidade.  O texto, longe de ser um texto abolicionista é, na verdade, um exemplo da resistência das elites em aceitar o estigma da escravidão. Ele não liberta, em suas palavras, os negros dos seus grilhões, mas os senhores de escravos da responsabilidade pelos  mais de 300 anos de escravidão. Este povo brasileiro, bom e tolerante, que deseja o melhor para aqueles que o autor do texto chama de “desgraçados sem autonomia amparados pela lei”.[12]




[1] A emancipação. O Leopoldinense. Leopoldina, 19 de maio de 1881, n. 36, p. 01.
[2] Lei do Ventre Livre. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. USP. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-Hist%C3%B3ricos-Brasileiros/lei-do-ventre-livre.html, acesso em 29 out. 2016.
[3] BARBOSA, Bartira Ferraz. O fundo de emancipação dos Escravos em Pernambuco. Revista de Pesquisa Histórica, n. 12, 1989, p. 106, Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaclio/index.php/revista/article/view/476, acesso em 29 out. 2016.
[4] BARBOSA, Bartira Ferraz. O fundo de emancipação dos Escravos em Pernambuco. Revista de Pesquisa Histórica, n. 12, 1989, p. 104, Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaclio/index.php/revista/article/view/476, acesso em 29 out. 2016.
[5] Lei do Ventre Livre. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. USP. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-Hist%C3%B3ricos-Brasileiros/lei-do-ventre-livre.html, acesso em 29 out. 2016.
[6] Lei do Ventre Livre. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. USP. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-Hist%C3%B3ricos-Brasileiros/lei-do-ventre-livre.html, acesso em 29 out. 2016.
[7] REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Breves reflexões acerca da historiografia sobre a família negra na sociedade escravista brasileira oitocentista. Revista da ABNP, v. 1, n. 2 – jul.-out. de 2010, p. 124.
[8] LOUZADA, Catia.  Fundo de emancipação e famílias escravas: o município Neutro na lei de 1871. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH: São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300849599_ARQUIVO_Catia_Anpuh_2011.pdf. acesso em 29 out. 2016.
[9] Lei do Ventre Livre. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. USP. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-Hist%C3%B3ricos-Brasileiros/lei-do-ventre-livre.html, acesso em 29 out. 2016.
[10] LOUZADA, Catia.  Fundo de emancipação e famílias escravas: o município Neutro na lei de 1871. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH: São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300849599_ARQUIVO_Catia_Anpuh_2011.pdf. acesso em 29 out. 2016.
[11] Editaes. O leopoldinense. Leopoldina, 25 de maio de 1881, n. 39, p. 04.
[12] A emancipação. Gazeta de Leopoldina, Leopoldina, 19 de maio de 1881, n. 36, p. 02.

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