domingo, 19 de agosto de 2007

Violência familiar na República (1894- 1926)

Este Texto foi originalmente apresentado como comunicação livre no XIX Encontro Nacional da ANPUH, Belo Horizonte, 1997. Foi meu primeiro trabalho sobre família. Em 1996, durante o encontro Regional da ANPUH, em Mariana eu assisti entusiasmada a uma apresentação da saudosa professora Eni Mesquida Sâmara sobre família e fiquei apaixonada pelo tema. Ele passou a ser um dos meus objetos de pesquisa e acabou me rendendo ótimas experiências nesta área e até uma publicação no exterior. Rever estes textos, dos mais antigos aos mais novos, é um exercício de auto-crítica, onde eu posso analisar o grau de amadurecimento que eu conquistei nesta última década. Não sei se este texto chegou a ser publicado nos anais, porque eu não os recebi. Coisas da ANPUH. Eu fiz algumas pequenas modificações, mas o conteúdo em si permaneceu o mesmo. Se alguém quiser comentar, eu agradeço muito.

Introdução

Do século XII ao século XVIII o sentido de família foi sendo construído. O casal na Idade Média não era exatamente aquele imaginado pelo amor cortês[1] e os membros de uma família eram agrupados a partir da necessidade de proteção, pela solidariedade entre membros de uma mesma linhagem. O sentimento de família como o conhecemos nasceu de fato entre os séculos XV e XVIII. A família passou a incorporar os ideais de uma sociedade e nela são depositados sonhos de uma ordem em ascensão. A família é o ideal a que todos deveriam aspirar. Tinha valor quase sagrado e era responsável pela harmonia social.

A história do cotidiano tem revelado a cada dia um novo detalhe sobre as relações familiares. Essas novas descobertas nos levam a indagar a respeito do sentido da família no Brasil. Com certeza, não mais é aquele que lhe deu Nestor Duarte ou Gilberto Freyre. Como gosta de ressaltar Foucault, ela pertence a um complexo sistema, onde as relações de poder são quase infinitas e se encontram em todas as instâncias. De fato, o que se sabe sobre a família hoje foge àquilo que foi por muito tempo divulgado e defendido a seu respeito.
Questionamos, até que ponto esse centro de virtudes, ao qual oradores, políticos, ergueram um símbolo de perfeição pode ter sua idoneidade reafirmada? Não foi a família, também, palco de conflitos de intrigas, onde pai, mãe e filhos se tornavam réus e vítimas de uma sociedade repressora?

Consideramos as duas últimas década do século XIX e as três primeiras décadas do século XX, período fértil para se analisar a família no Brasil. Nesse recorte colocamo-nos diante de uma sociedade que pressente essa onda de transformações e encontra-se em constante conflito, colocando-se cada vez mais frente à frente o lícito e o ilícito.

A família e a violência
Relatos encontrados em periódicos, processos criminais e de separação, que tivemos a oportunidade de estudar nos últimos meses, revelam um ambiente familiar diferente daquele que nossos avós descreviam e que consta do universo fictício de muitos livros e romances publicados até meados do século XX. A violência residia dentro das famílias, afetando principalmente a mulher e os filhos, não escolhendo classes social ou nível de instrução. Essa violência, reporta-se a gestos, palavras e ações violentas que nos mostram um quadro obscuro de uma instituição social considerada básica. Casos como o ocorrido em Leopoldina, município da Zona da Mata, próximo de Juiz de Fora, onde Maria Amancia da Cunha foi assassinada pelo marido brutalmente, tendo sido estrangulada e seu corpo em seguida incendiado[2] ou mesmo o caso da inocente Sebastiana, de apenas 8 meses de idade, violada pelo vizinho na ausência da mãe,[3] são exemplos de desvios sociais resultantes talvez de uma formação familiar deficiente, melhor explicados pela psicologia ou pela psiquiatria.

Dentro do que nos interessa _ desavenças conjugais mais simples e comuns que não chegam ao extremo de um homicídio , selecionamos cinco processos de divórcio e desquite[4], dentro de 22 que foram estudados, para tentar traçar um perfil dos conflitos familiares em Juiz de Fora, no período que vai de 1894-1926.

O primeiro, é a respeito de um pedido de divórcio litigioso, cujo processo teve início no ano de 1895. A requerente foi Maria José Barbosa e o réu o Major Ludovino Martins Barbosa[5] (fazendeiro, dono de grandes extensões de terra e de muitos imóveis). A apelante alegava maus tratos e adultério do marido. Com relação aos maus tratos, acusava o marido de lhe fazer ofensas físicas e morais, sendo que a última, que teria ocasionado sua fuga de casa, foi feita na base do chicote. Acusava também o marido de possuir duas amantes. Tudo foi confirmado pelas testemunhas arroladas. A apelante ganhou o processo e a posse dos filhos menores, assim como a pensão alimentícia. Recebeu como sua parte na separação dos bens a quantia de 14:612$000. Em 30 de dezembro de 1900 foi concluído o processo e efetuado o divórcio.

O segundo, também envolveu uma família rica. Mariana Cândida de Almeida pediu divórcio de Benjamim José do Nascimento Pereira,[6] no ano de 1894. O marido recusou-se a cooperar com o processo, negando-se a fazer o inventário de seus bens. Conforme regia a lei, seus bens poderiam ser confiscados. A autuação começou em 1894. Os conjures casaram-se em 24 de dezembro de 1885. A requerente reclamava dos maus tratos que sofria nas mãos do marido. Ele chegava ao ponto de machucá-la. Além disso, havia também o agravante dele ser adúltero e forçá-la a manter relações sexuais contra sua vontade. Freqüentava, aos domingos, os pagodes e casas de jogos, de onde retornava só na segunda-feira. As testemunhas arroladas pelo advogado da suplicante confirmam as acusações de maus tratos, que ela teria recebido por parte do marido, e também, confirmam seus maus hábitos. A carta precatória saiu em 1896 e o processo foi encerrado.

O terceiro processo envolve não apenas maus tratos entre os conjures, mas também se estende para os filhos. A requerente é Maria Brigida Balbina Palmeirão e o réu é Manuel dos Santos Palmeirão.[7] O processo teve início em 1923. O casamento ocorreu em 06 de fevereiro de 1904, ele comerciante com 26 anos de idade, ela com 17 anos de idade. A requerente pediu separação do marido tendo como razões, dentre outras coisas o fato do marido viver maritalmente com outra mulher em Juiz de Fora e de ser vítima de injúrias e a espancamento quando ele aparecia em casa. Consta dos autos que o oficial de justiça teve dificuldades em autuar o réu, que estava se escondendo da justiça. O casal possuía 4 filhos: Maria Augusta (18 anos); Cacilda (17 anos); Augusto Cesar (15 anos, estudante da Academia de Comércio); e Adélia (15 anos, estudante na escola Stella Matutina). Avaliava os bens imóveis do marido em cerca de l00 contos de réis.

Nota-se nesse processo um grande número de testemunhas arroladas, a maioria tendo depoimentos extensos a cerca da vida do casal. Destacamos a 9a. testemunha da requerente: Aldhemar Ferreira Leite, 18 anos, analfabeto. Confirmou que o réu tinha uma amante e que ela era teúda e manteúda e que sabia disso porque a dita senhora era sua irmã. Contou que ela vivia honestamente com seu marido até que, a cerca de um ano atrás teria sido seduzida pelo réu, abandonando seu lar legítimo e forçando seu marido, por desgosto de saber da traição, a mudar-se para Petrópolis. Acrescentou que, a 3 meses aproximadamente, havia convencido a irmã a voltar atrás e se reconciliar com o marido, Oscar Ferreira Mattos, indo morar com ele em Petrópolis. No dia do embarque para a dita cidade. O réu teria aparecido na estação ferroviária e, com posse de um revolver, ameaçado de morte a amante, caso ela resolvesse abandoná-lo e ao irmão, caso insistisse em reconciliar o casal. Ele e a irmã foram socorridos por um grupo de senhores presentes naquele momento na estação. Para se defender, o depoente sacou um canivete. O episódio foi terminar na delegacia, onde o réu ameaçou o depoente com um processo criminal e convenceu a amante, dessa forma, a retornar com ele para sua companhia.

As testemunhas arroladas pela defesa procuraram confirmar as boas qualidades do réu e diziam ser a requerente geniosa. Negavam o fato do réu ter uma amante. Algumas delas até confirmaram depoimento do réu de que a esposa era alcoólatra, chegada a feitiçaria e freqüentadora de casas espíritas. A. Ayres, 24 anos, casado, comerciante, oriundo de Recife, alfabetizado, contou que ouviu dizer em seu estabelecimento comercial, onde a requerente freqüentava quase que diariamente, que ela fazia feitiços contra o marido.


Em seu depoimento final, a requerente chega a declarar que o réu não tinha idoneidade para ficar com a guarda dos filhos, pois que ele foi autor do defloramento das duas menores. Uma foi internada no Asilo João Emílio (segundo a requerente, como forma do pai se vingar pela filha não ter cedido aos caprichos dele), que a outra filha era casada com um indivíduo arranjado pelo réu. A requerente teve ganho de causa.

O quarto processo foi o que Maria Luiza de Fátima moveu contra seu marido Antônio Delgado Pinto,[8] em 1921. Motivo: agressão do marido, que interferiu quando a esposa repreendia as filhas, dando-lhe um soco nas costas e partindo, em seguida, para cima dela com um faca em punho, ficando ela ferida. Deu parte na polícia. Segundo a queixosa, não seria esta a primeira vez que isso acontecia. Após o exame de corpo delito, os quesitos legais foram preenchidos e constatada a agressão. Uma testemunha arrolada deu o seguinte depoimento: Pedro Ferreira de Carvalho, 45 anos, solteiro, lavrador, disse que o casal é irreconciliável, não podendo mais viverem juntos. A causa do desentendimento seria o fato da requerente freqüentar culto metodista. A cerca de um ano ela se queixava do fato de receber ofensas físicas por parte do marido. A requerente ganhou a ação.

O último processo que temos a analisar não trata realmente de um caso apenas de violência física, mas de uma ação que uma menina moveu de nulidade de seu casamento, indo de encontro com a vontade de seus pais. Zulmira Berberick pediu em 1898 a nulidade de seu casamento com Henrique de La Pena Gusmão[9] (26 anos - professor). Segundo a requerente, ela foi forçada a uma casamento que não queria, e que hoje vive infeliz ao lado de um homem com o qual não tem bom relacionamento, por incompatibilidade absoluta de gênios. Ela diz ter abandonado o lar conjugal após ser agredida pelo marido. O casamento teria ocorrido em 15 de julho de 1897. Casamento feito sob contrato e em comum acordo entre o noivo e os pais da noiva. No entanto, ela nasceu em 27 de dezembro de 1883, não tendo, portanto a idade exigida por lei para que se casasse com o rapaz, que seria de 14 anos. Os pais, querendo o casamento dela, pediram uma certidão de nascimento onde ela aparecia 1 ano mais velha (fato favorecido por não haver mais Livro de Batismo na Matriz), ficando ela com idade para entrar com o pedido de casamento. Seus pais enganaram o padre, que agiu de boa fé. Tendo ela se casado quando era de menor, foi amparada pela lei, que concede a anulação do casamento de memores até seis meses após completar 14 anos.

Da analise desses cinco casos pudemos chegar a algumas conclusões. A primeira é em relação à condição social e financeira: a maioria dos casais possuíam uma boa ou até excelente situação financeira, sendo figuras conhecidas na sociedade local. Em outros caso, verificamos que nos processos que envolviam pessoas de camadas baixas a separação ocorria em acordo mútuo, sendo o número de litígios, nesse caso, menor. A segunda diz respeito à atitude das mulheres agredidas com relação a seus maridos. Peguemos como exemplo o último caso: a princípio pareceria improcedente que uma adolescente de 14 anos, na virada do século XIX, orientada por um adulto dê início a uma processo de anulação denunciando seus próprios pais por terem fraudado a documentação para o casamento. A mulher que se separa no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX é uma mulher que embora não seja emancipada não está em acordo com o tratamento que recebe do marido. Ela exige respeito e rompe com uma relação conjugal que em muitos casos estudados já possuí mais de 10 anos. Ela prefere o estigma de ser divorciada ou separado do que permanecer ao lado de um homem que maltrata a ela e a seus filhos

Em terceiro, pudemos constatar que muitos maridos colocavam a culpa do fracasso de seu casamento na esposa. Ela apanha por que é geniosa, gastadeira, porque não é boa dona de casa ou porque o marido desaprova sua religião. O homem não assumia seus erros, pois o chefe da casa nunca podia estar errado. Não que que a maioria das esposas fossem santas: também elas se mostravam em muitos casos intolerantes e agressivas. Os filhos sofriam com a agressividade dos pais, que pregavam uma moral que não tinham e chegavam a abusar deles. Se o homem está insatisfeito a culpa é da mulher que não soube satisfazê-lo.

Haja visto a carga de responsabilidades que o novo modelo de família e de homem colocou sob suas costas. Ele havia sido criado em um sistema diferente e teve de seu pai um exemplo diferente. A urbanização era um processo novo e a maioria das pessoas haviam vivido na zona rural e pertencido a uma família que, se não era patriarcal, possuía ainda resíduos daquele modelo. Colocaríamos, portanto, o homem da virada do século como um homem em transição. Sua esposa já não é tão dócil quanto sua mãe o era: ela cobra seus deveres como homem e como marido. Sua própria inserção na sociedade estava mudando. Ela não aceita tão pacatamente o adultério do marido e nisso é apoiado pela ideologia sanitarista que os médicos brasileiros colocavam em prática no início do século, a exemplo do que vinha sendo feito na França.[10]

Conclusão
Em um estudo recente, Roger Langley e Richard C. Levy[11]analisaram nos EUA vários casos de espancamento de mulheres e levantaram vários motivos para a permanência desse problema dentro do núcleo conjugal. Muitos deles podem ser aplicados à mulher que viveu o clima de repressão masculina durante todo o século XX pois apesar das mudanças de mentalidade, muitos preconceitos encontram-se enraizados dentro da sociedade, no que tange as relações entre parceiros. A mulher que é espancada hoje, não difere muito da mulher maltratada da virada do século XIX para o XX, pois a culpa pelo fracasso da relação sempre há de recair sobre ela. O imaginário criado durante os últimos séculos leva a mulher a culpar-se por sua própria insatisfação, reforçando o mito da superioridade masculina.

A violência é uma das formas de imposição de poder mais comum e própria da natureza do homem. Ela é usada geralmente contra o mais fraco, ou seja, contra mulheres, crianças e velhos. Para muitos a violência é um fenômeno que se localiza nas ruas, fora do ambiente familiar. Na verdade, é nele onde ela começa a ser cultivada. Pessoas violentas provêm de famílias violentas, onde a criança é oprimia pelos pais e onde o marido bate ou ofende com gestos ou palavras a esposa.

As pressões diárias o stress da vida urbana e de se viver em um país periférico como o Brasil já são por si só fatores que contribuem para o desequilíbrio de muitos lares. No entanto, no início do século os indivíduos entraram em choque com algo ainda mais desarticulador: o decadência da família patriarcal e a ascensão do modelo burguês da família nuclear. A revisão dos papéis do homem e da mulher, embora tivesse sido um processo inevitável, rompeu com uma antiga relação de poder que teve que ser estabelecida em outros níveis. O controle que o homem tinha sobre sua esposa e suas filhas já não mais o mesmo. O século XX cria o marginal, o homem pobre que trabalha na manufaturas, e estende a promiscuidade para a mulher que trabalha fora, comparada e classificada juntamente com as prostitutas.[12] O Estado passa a intervir na família através da medicina e da psiquiatria. Os sanitaristas encabeçaram esse movimento.

Seguindo este raciocínio talvez devêssemos analisar a violência familiar naquele período como um processo de reorganização dos papéis sociais, da redefinição das fronteiras familiares onde a participação de todos os membros é revista e reorganizada de acordo com os interesses da sociedade burguesa e republicana em formação.

É um momento de transformação das estruturas e relações de poder a nível individual e coletivo. A família não poderia ser colocada fora do processo. Sua intocabilidade é um mito que se opõe a todo um processo de revisão de valores que se inicia na célula familiar. É um paradoxo: a família que era símbolo de permanência (tradicional) dá espaço para a família dinâmica (moderna), simples em sua composição, sucessora de um modelo incompatível com a nova face do país, mas presa a costumes e hábitos que se chocam com as novas visões do mundo.

Notas[1] Amor cortês foi a primeira manifestação de amor delicado. Era dirigido à mulher casada, considerada inconquistável. Ele era um jugo educativo pois ensinava a servir, e servir era o dever de todo bom vassalo. “Assim como sustentava a moral do casamento, as regras do amor delicado vinham reforçar as regras da moral vassálica. Elas sustentariam, assim, na França, na segunda metade do século XII, o renascimento do Estado.” (DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos homens: do amor e outros ensaios. /trad. Jonatas Batista Neto/São Paulo, Cia das Letras, 1989. p. 65)
[2] “Confessa-o o criminoso, que diz haver tido na noite de 17 do corrente forte discussão com a victima, acabando por garganteal-a covardemente, só deixando a indefesa e infeliz, depois d’ella haver exhalado o último suspiro nas mãos férreas do seu algoz” (Gazeta de Leopoldina. Barbaro crime. Leopoldina, 21 de ago. 1913, n. 105, anno XIX, p. 01.
[3] Arquivo Histórico da UFJF. Processo criminal - 1897, sem numeração.
[4] O divórcio, cuja significação difere da que possuí hoje, foi instituído no Brasil pelo Decreto 181 de 24 de janeiro de 1891 e reconhecido pela constituição em 1891, secularizando o casamento. Designava tão somente a separação de corpos e bens, concedida nos casos de: 1) adultério; 2) sevícia ou injúria grava; 3) abandono voluntário do domicílio conjugal por mais de 2 anos contínuos; 4) mútuo consentimento dos conjures, casados a mais de 2 anos. Não era permitido um segundo casamento. O desquite foi introduzido pelo Código Civil de 1916 e veio a substituir o divórcio, sem alterá-lo de forma significativa. (DICIONÁRIO de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas/MEC, 1988. pp. 366-7)
[5] Arquivo Histórico UFJF. Doc.: 326A01, 66C50, 369A15, 19A17 e 33A12. Assunto: Ação de divórcio
[6] Idem. Doc.: 13B13. Assunto: Ação de divórcio.
[7] Idem. Doc.: 82B38. Assunto: Ação de desquite
[8] Idem. Doc.: 71D60. Assunto: Ação de desquite.
[9] Idem. Doc.: 88A04 01. Assunto: Anulação de casamento.
[10] ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa de. Op. cit. 1993.
[11] LANGLEY, Roger, LEVY, Richard C. Mulheres espancadas: fenômeno invisível. / trad. Cláudio Gomes Carina./ 2. ed. São Paulo; Ed. Hucitec: 1980
[12] Ver: RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1889-1930. Op. cit. 1985.

sábado, 11 de agosto de 2007

A História no 1o ciclo:Instrumentalizando professores nos primeiros anos do Ensino Fundamental


O texto abaixo foi apressentado como comunicação na ANPUH de Belo Horizonte, em 2002. Foi uma das minhas primeiras tentativas de criar um projeto de integração na escola, através da parceria com professores dos primeiros anos do fundamental, ainda em regime de ciclo. Eu fiz nele algumas revisões mas não mudei muito o corpo do trabalho e espero que os colegas, amigos e leitores possam me ajudar apontado as virtudes e falhas do trabalho (ao lado, foto de alunos da escola e da professora Elizan, durante uma comemoração realizada em agosto de 2005_dia dos Pais).


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O profissional que trabalha com a história, seja ele professor, seja ele pesquisador, tem um compromisso com a construção da identidade da nação. Na prática, percebemos uma grande disparidade entre o que se produz e o que é ensinado nas nossas escolas. Apesar da introdução de um conteúdo mais atualizado, que incentive o debate e que apresente aos estudantes História como uma disciplina dinâmica e prazerosa, é preocupante a dificuldade cada vez maior dos jovens em assimilar conceitos básicos e de associar estes conceitos a fatos decorridos em tempo e espaço diferentes.

Caímos, então, em uma questão que se refere à aprendizagem desse aluno, que não desenvolveu satisfatoriamente habilidades para poder lidar com o conjunto de informações que recebe durante sua vida escolar. Partindo desta hipótese, e tendo como ponto de apoio a teoria da aprendizagem de Ausubel e de Vygotsky, resolvemos buscar a raiz desse problema na história ensinada nos primeiros anos de escolarização, no nosso caso no 1o Ciclo, onde a criança recebe e trabalha os primeiros conceitos. Buscando a melhor forma de desenvolver esses primeiros conceitos, estamos elaborando, em conjunto com professores do 1o Ciclo da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado, em Leopoldina (MG), um projeto que tem por objetivo identificar e diagnosticar dificuldades na aprendizagem dos alunos.

Esse trabalho, ainda em fase inicial de desenvolvimento, terá como ponto de partida o município, como vetor fundamental para a introdução dos primeiros conceitos históricos para os jovens estudantes. Através da história regional busca-se introduzir busca-se introduzir conceitos históricos básicos e amenizar, algumas das dificuldades apresentadas pelos alunos que são promovidos para o segundo ciclo do Ensino Fundamental e mesmo para o Ensino Médio. Ao mesmo tempo, estamos abrindo o diálogo entre professores de níveis diferentes que atuam no mesmo espaço escolar, ampliando desta forma a ação educadora dentro da própria escola.

Acredito na necessidade de se elaborar um conhecimento voltado para o ensino local, que pudesse ser adaptado ao currículo escolar, levando-se em conta dois fatores: a) as deficiências na formação do profissional, tendo em vista o fato de que o currículo do magistério prioriza a teoria em detrimento da prática; b) a ausência de uma metodologia (ou metodologias) específica para o ensino de História nas series iniciais do 1o ciclo, assim como a falta de conhecimentos específicos em relação à história local e mesmo, nacional. Além disto há também a questão do afastamento das escolas de Ensino Fundamental e Médio das universidades, não ocorrendo uma troca de conhecimentos teóricos e práticos dentro de uma proporção relativamente satisfatória.

Sabemos, no entanto, o quanto difícil é criar uma estrutura desenvolver na escola pública, projetos que envolvam professores de níveis diferentes, mas sabemos também que é necessário chamar para o diálogo todos os profissionais de ensino, sejam eles graduados ou não. Assim, em um segundo momento, buscamos estabelecer parceria com as professoras das séries iniciais do 1o ciclo essa troca mais direta de experiências.

Com a ajuda de professores e especialistas procuramos por idéias práticas e simples de se ensinar história adequando metodologias e buscando através do uso da história local injetar os conceitos de tempo, espaço e de organização social e entre as crianças. Através de um trabalho interdisciplinar. Os resultados iniciais deste esforço serão aqui expostos e avaliados, buscando-se entre os próprios professores aqueles instrumentos que tanto necessitam para efetuar sua tarefa como educadores.

Como trata-se de um trabalho voltado para o ensino de crianças ainda nos primeiros anos de escolaridade, optamos por estabelecer nossa base teórica em Vygotsky e Ausubel. Ambos estudaram o processo de formação de conceitos e de desenvolvimento da aprendizagem e, em alguns pontos sua teoria é muito parecida. Vygotsky, cuja teoria foi fortemente influenciada pelo marxismo, segue a linha sócio-interativa, onde o desenvolvimento do indivíduo é resultado de todo um processo sócio-histórico onde ele se relaciona com a coletividade interagindo com ela, e desta forma construindo seu conhecimento através de sua interação mediada por relações intra e interpessoais.[1]

Ausubel é cognitivista e interacionista. Para ele, a aprendizagem de certos conteúdos depende do desenvolvimento de estruturas mentais específicas. A aprendizagem pode ser mecânica, quando o conteúdo apreendido não é arquivado e organizado na memória e, portanto, é logo esquecido; ela pode ser significativa, quando esse conteúdo é assimilado e passa a fazer parte da estrutura cognitiva. O conhecimento significativo distingui-se do mecânico pelo fato de que ele possui um “significado” para o receptor, que o associa a conceitos pré-estabelecidos.[2]

Vygotsky vê o individuo como ser histórico e social. O meio em que vive influencia o processo de aprendizagem e determina os signos que irão se fazer presentes na vida deste indivíduo. Com que tipo de realidade estamos trabalhando, dentro deste projeto?
A Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado, onde este trabalho foi realizado, atende a uma numerosa clientela, envolvendo crianças residentes na zona urbana, assim como crianças da zona rural. Possui desde o pré-escolar até o Ensino Fundamental (ciclo avançado). Essas crianças em sua maioria pertencem a famílias carentes, onde não há muitas vezes condições mínimas de sobrevivência e para quem a escola é um recurso para tal, um lugar onde a criança encontra comida, roupas e mesmo carinho. A carência é maior entre as crianças do pré-escolar e do primeiro ciclo.

Não poucas são ou foram vítimas de abusos por parte da família e possuem uma grande dificuldade de se relacionar com o grupo. As professoras são, na maioria dos casos, obrigadas a trabalhar o lado afetivo e psicológico em primeiro lugar, antes de dar início ao processo de alfabetização. Para atender às necessidades dessa clientela, há na escola uma supervisora, que assume também o trabalho de orientadora e uma enfermeira, que executa na verdade o trabalho de assistente social, procurando a família, encaminhando as crianças a médicos e aconselhando os pais, muitas vezes ultrapassando o que se exige de sua função.

Uma professora, ao debatermos sobre a possibilidade de executar esse projeto, chamou atenção para esse fator, indicando o livro didático de história e geografia[3], adotado pela escola e apontando para seus alunos, que no momento estavam concentrados executando uma atividade. “ Esta é a minha realidade, não é a realidade de quem escreveu esse livro!”. [4] A professora acrescentou, também o fato de que as crianças encontram-se em diferentes níveis de aprendizagem, e que para ela ainda não fui possível dar início ao estudo do conteúdo programático de história e geografia que está da seguinte forma delineado:

Unidade 1 – Você
Unidade 2 – As Famílias
Unidade 3 – Onde Moramos
Unidade 4 – A escola
Unidade 5 - As ruas
Unidade 6 – Os meios de transporte
Unidade 7 – Os meios de comunicação

A primeira dificuldade está no fato de que as crianças ainda não estão alfabetizadas. Elas têm dificuldades com leitura e o livro exige delas um conhecimento que elas não dominam. Entra também aqui o aspecto social, pois a história nessa etapa trata da integração da criança ao meio e à sociedade onde vive. Esse meio, no entanto é extremamente excludente. As mesmas dificuldades apresentadas por essa professora se reproduzem nas outras etapas do ciclo.

Para tentar superar uma parte delas, resolveu-se desenvolver um trabalho de ensino voltado à História Local. A valorização de aspectos relacionados à realidade do aluno e, por sua vez, à uma educação voltada à valorização da memória local e do patrimônio histórico é um recurso do qual desejamos apropriar para tentar alcançar a aprendizagem significativa, tão valorizada por Ausubel, e que se ancora em conceitos relevantes (conceitos que o aluno assimila e que se relacionam a coisas importantes para ele no seu cotidiano).

Na fase em que nos encontramos, estamos debatendo e analisando as melhores alternativas para trabalhar o tema “história local” na sala de aula, em cad etapa do ciclo. As reuniões com as professoras estão correndo mensalmente, devido ao pouco tempo que elas desce e das obrigações que possuem fora da escola – todas são casadas. No segundo semestre de 2002 (agosto) iremos dar início a uma ação mais direta, unindo teoria e prática. O papel do professor de historia, aqui, é o de orientador. Ele fornece ao professor das primeiras séries as informações que ele necessita para elaborar suas aulas. Ao mesmo tempo, ocorre um rico intercâmbio entre ambos, uma vez que professores que trabalham com crianças menores são capazes de desenvolver trabalhos de uma riqueza sem par. São criativos e possuem uma desenvoltura espetacular, que rompe com o academicismo que em muitos casos impede o professor de alcançar o aluno.

A assimilação de conceitos e elaboração de idéias, vinculadas à realidade do estudante, motivam e facilitam o processo de aprendizagem. A escola, ao promover a interação entre história, realidade social e patrimônio cultural colabora para que a comunidade possa a descobrir o significado da memória. O professor e a escola pública, excepcionalmente do Ensino Fundamental são o canais através dos quais esse diálogo e essa descoberta devem se processar.

[1] Para Vygotsky, as relações entre o homem e o mundo são mediadas por signos (elementos que reapresentam ou expressam outros objetos, eventos e situações) e instrumentos (elementos externos ao indivíduo, voltados para fora dele, cuja função é provocar mudanças mos objetos, controlar os processos da natureza). O signo é uma marca externa que auxilia o homem em tarefas que exigem memória ou atenção. A memória mediada por signos é mais poderosa que a memória não mediada – o sistema de signos é uma espécie de código para decifração do mundo. Vygotsky foi influenciado pelas idéias marxistas, especialmente pelo materialismo histórico. OLIVEIRA, Marta Kohl, Vygostsky e o processo de formação de conceitos. In_ Piaget, Vygotsky e Wallon – Teorias Psicogenéticas em discussão. Summus Editorial, 1992
[2] Para que esta aprendizagem ocorra é necessário que os conceitos relevantes e inclusivos estejam adequadamente claros e disponíveis na estrutura cognitiva do indivíduo, funcionando como pontos de ancoragem chamados de subsunçores, para as novas idéias e conceitos, que interagem com conceitos relevantes e inclusivos, sendo eles assimilados. Aquilo que a criança já sabe deve ajuda-la a assimilar novos conceitos, portanto, deve-se explorar a experiência pessoal de cada uma delas, ponto em torno do qual deve orbitar o processo de ensino-aprendizagem. BALDISSERA, José Alberto. O livro didático de história: uma visão crítica. 4a Edição. Ver. _ Porto Alegre. Evangraf, 1994.
[3] o citado livro é: LUCCI, Ellan Atabi. Viver e aprender:história /geografia. 1a série _ 2a ed. – são Paulo: saraiva, 2000.
[4] a professora Sheyla Fontes (31) é formada em pedagogia e trabalha com alfabetização de crianças no turno vespertino da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado.