quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O QUADRINHO NACIONAL E A RESISTÊNCIA

A resistência, seja ela nos quadrinhos ou em qualquer outro tipo de expressão artística e inteleclectual, é como as asas da Graúna: elas podem não ser visíveis, mas não significa que não existam. Resistir não é impedir a mudança, muito pelo contrário. É sonhar. E é o desejo de mudança que faz os sonhos se tornarem realidade. 
Ontem comemorou-se o Dia do Quadrinho Nacional. Uma homenagem a Angelo Agostini, considerado o pai dos quadrinhos brasileiros, que no dia 30 de janeiro de 1869 publicou aquela que é considerada por muitos pesquisadores a primeira História em Quadrinhos do Brasil: As Aventuras de Nhô Quim. Agostini abriu caminho para o surgimento do quadrinho nacional e para a criação de personagens que marcaram a vida de várias gerações, como Pererê, o Amigo da Onça, a Graúna, O Judoca e, claro, os personagens da Turma da Mônica. 

No século XX, as Histórias em Quadrinhos foram responsáveis pelo surgimento de uma indústria de entretenimento que ultrapassou as páginas dos jornais e dos gibis. Personagens dos quadrinhos estão em todos os lugares: nas roupas, mochilas, filmes, brinquedos e até em fraldas de bebês. Não se pode esquecer que a arte dos quadrinhos é uma arte submetida à ordem capitalista. 

Há artistas idealistas que trabalham pelo prazer e artistas pragmáticos que querem conquistar sucesso e notoriedade. Todos eles conhecem muito bem as dificuldades de sobreviver num mercado de trabalho que é tudo menos justo. Longe do glamour dos grandes encontros como a Comic Con, os profissionais dos quadrinhos encaram longas horas de trabalho e sonham com o reconhecimento e enfrentam dificuldades financeiras. São como operários em uma fábrica, onde o patrão enriquece explorando a mais-valia.

Entre os grandes desafios enfrentados pelos profissionais dos quadrinhos estão a valorização da profissão e a luta contra o machismo que impede que muitas mulheres sejam bem sucedidas no meio. Quando falo valor, estou mesmo me referindo ao valor monetário. Ser quadrinista e sobreviver fazendo quadrinhos não é fácil. A arte, de forma geral, não é valorizada, assim como trabalho do artista. Poucos são os quadrinistas que vivem apenas do seu trabalho com quadrinhos e são bem pagos por isso. 

Por outro lado, temos as mulheres quadrinistas que além vitimas do machismo, que as coloca em segundo plano e dificulta sua entrada em grandes editoras, têm seu trabalho desvalorizado em relação aos homens. Elas recebem até metade do valor pago a uma artista ou argumentista homem para fazerem o mesmo trabalho. E essa é uma realidade global, não apenas brasileira. Em menor ou maior medida, as mulheres sofrem com exploração e exclusão em todo o mundo. 

Mas contra este estado de coisas existe a resistência, tanto de homens quanto de mulheres. A resistência se manifesta na forma de quadrinhos independentes, na criação de coletivos de artistas, nos eventos onde se debate a situação do quadrinho nacional e, também, do papel da mulher no quadrinho nacional. E é essa resistência que deve ser festejada.  

É ela que vai proporcionar o surgimento de quadrinhos mais engajados, com conteúdo. É ela que transforma as Histórias em Quadrinhos em espaço de denúncia contra a opressão. A opressão contra a mulher, contra as crianças, os idosos, os gays. A opressão que está presente na nossa sociedade e que se manifesta de diferentes formas.

É a resistência que motiva o questionamento. Questionamento este que nos quadrinhos se faz na forma de imagens e palavras (às vezes apenas imagens). A resistência que rompe com a lógica perversa do capitalismo e transforma a arte num instrumento de luta contra a ignorância e na construção de um futuro mais promissor.

Uma resistência libertadora que vejo no trabalho de quadrinistas jovens e veteranos e que representa o inconformismo com a desigualdade e o desejo de mais oportunidades para todos.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

MINHAS IMPRESSÕES SOBRE O PRÊMIO ARTEMISÍA - 2018

Quadrinistas premiadas em 2018
Ano passado eu tive oportunidades e privilégios. Em janeiro passado eu pude participar pela primeira vez do Festival Internacional de Angoulême, na França. Conheci vários quadrinistas, homens e mulheres, estrangeiros como os quais mantive contato durante todo o ano. Além disso, eu ainda me encontrei pessoalmente com a quadrinista italiana Cecília Capuana, sobre quem já havia publicado um texto. 

Alguns meses depois, em maio, eu tive o privilégio de poder conhecer pessoalmente uma das minhas ídolas, Chantal Montellier, que veio ao Brasil para participar da Semana Internacional de Quadrinhos, realizada pela ECO/UFRJ, que tem à frente da organização Amaury Fernandes e Octavio Aragão. Eu, particularmente, devo a ela minha inserção no mundo dos quadrinhos franceses, inclusive como autora. Chantal sugeriu meu nome para uma revista especializada em quadrinhos, a Papiers Nickelés e eu passei a ser correspondente da revista.
Eu, Chantal Montellier e Cecília Capuana.
Agora, dia 11 de janeiro de 2018 não apenas reencontrei com Chantal e Cecília, como tive a oportunidade de participar da entrega do Prêmio Artemísa, de 2018. O PRIX ARTEMISIA foi criado em 2007 para premiar os melhores quadrinhos produzidos por mulheres e publicados em francês. Uma forma de reconhecer o talento feminino nos quadrinhos franceses e de dar visibilidade às mulheres que trabalham nesta área. 

Para quem não sabe, o mercado editorial francês é extremamente sexista e a participação feminina ainda é pequena, embora esteja aumentando gradativammente a cada ano. De fato, se as mulheres não são a maioria das produtoras de quadrinhos atualmente figuram como as maiores leitoras sendo, portanto, não apenas justo como necessário o reconhecimento do talento destas artistas. Daí a importância de iniciativas como o Artemísia.


História em Quadrinhos que recebeu o grande prêmio.
O grande prêmio deste ano foi para a italiana  Lorena Canottiere  por seu álbum Verdad. Uma tocante história que envolve família, sentimentos e guerra. A ilustração do álbum é toda a lápis, singela e muito bonita. A autora é  espanhola e teve seu quadrinho publicado em francês pela editora Ici Même. Acredito que, em meio a tantos quadrinhos feitos por francesas, ter sido a grande vencedora tem um sabor especial e ratifica o fato de que Artemísia é um prêmio que deseja contemplar a todas as artistas, independentemente da nacionalidade. Quem sabe, um dia, não estaremos festejando a premiação de uma brasileira?

Minha edição autografada.
Ainda foram entregues os prêmios de ficção histórica para Julia Billet e Claire Fauvel pelo álbum La Guerre de Catherine; o prêmio humor para Aude Picault para o seu álbum Ideal Standard;  e Menção especial da luta feminista de 2018 para Leïla Slimani e Laetitia Coryn pelo seu álbum Paroles de honra e o prêmio de novo talento foi para Cécile Bidault pelo álbum L’Écorce des choses (Ed. Warum), um álbum quase sem diálogos que mostra a vida de uma mulher surda.

Outros álbuns também receberam menções, uma forma de incentivar jovens artistas, que estão ainda dando os primeiros passos na carreira. E jovens mesmo, na faixa dos vinte e poucos anos, com aquela carinha de quem acabou de concluir a faculdade. Foram elas: Leïla Slimani e Laetitia Coryn pelo álbum Paroles d’honneur (Les Arènes BD), menção honrosa "pela luta feminista"; Daria Schmitt pelo desenho do álbum Ornithomaniacs (Casterman); Gwenola Morizur e Fanny Montgermont, pela "qualidade documental" do seu álbum Bleu pétrole (Ed. Bamboo); 


Annie Goetzinger
Além da premiação, houve ainda dois momentos importantes. Um deles foi uma homenagem a Chantal Montellier, uma das idealizadoras do prêmio, que recebeu uma monção honrosa pelo álbum Shelter Market (Les Impressions Nouvelles). O outro foi uma emocionante homenagem a quadrinista quadrinista Annie Goetzinger, que faleceu no dia 20 de dezembro de 2017.

Minhas impressões sobre a premiação foram muitas, ainda mais depois de folhear e adquirir dois dos álbuns vencedores (infelizmente não tive como comprar todos). As temáticas foram as mais diversas assim como variou a arte de cada álbum, mas todos possuem uma coisa em comum: uma narrativa de qualidade. 

Mas como eu posso saber disso se acabei de mencionar que apenas folheei os álbuns? Acontece que, durante a entrega dos prêmios, um membro do juri faz um comentário sobre a obra premiada. Mesmo com meu francês limitado deu para perceber a preocupação em buscar temáticas mais densas, que passaram por memórias de guerra à questões ambientais. Também se valorizou a narrativa fluida, elegante, outra marca registrada das obras premiadas.

Enfim, ir à entrega do Prêmio Artemísia foi importante em vários sentidos mas, especialmente, pelo estímulo a mais em querer conhecer essas artistas extraordinárias, suas obras e sua história de vida. Afinal, todas travaram batalhas para poder chegar onde estão.