segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

COELHO NETTO NA GAZETA DE LEOPOLDINA -

Os cronistas estivem presentes nos jornais que circularam no Brasil desde o império. Alguns escritores imortalizados na língua portuguesa publicaram em jornais do século XIX e XX, como Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Cecília Meireles, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Paulo Mendes de Campos e Clarice Lispector, entre outros. Suas crônicas são verdadeiros testemunhos de seu tempo e seus relatos nos tornaram-se fontes importantes para a história.

A Gazeta de Leopoldina, assim como outros jornais, publicou diversas crônicas, tanto de autores locais quando de autores populares, principalmente aqueles publicados nos jornais do Rio de Janeiro (RJ). Um desses cronistas foi Coelho Netto.

Selo comemorativo dos 100 anos
de nascimento de Coelho Netto

Coelho Neto (Henrique Maximiano Coelho Neto), foi romancista, crítico e teatrólogo, nascido em Caxias ( MA), em 21 de fevereiro de 1864, e falecido no Rio de Janeiro (RJ), em 28 de novembro de 1934. Mudando-se para o Rio de Janeiro em 1885, fez parte do grupo de Olavo Bilac, Luís Murat, Guimarães Passos e Paula Ney, além de tornar-se companheiro José do Patrocínio, na campanha abolicionista. Ingressou na Gazeta da Tarde, passando depois para a Cidade do Rio, onde chegou a exercer o cargo de secretário. Foi quando publicou suas primeira obras, com destaque para seu romance A conquista (1899). 

Envolveu-se com a política durante a Primeira República, tendo sido eleito  deputado federal pelo Maranhão, em 1909, foi reeleito em 1917. Foi também secretário-geral da Liga de Defesa Nacional e membro do Conselho Consultivo do Teatro Municipal. Continuou publicando em jornais usando inúmeros pseudônimos, entre outros: Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo, Blanco Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manés.

Na Gazeta de Leopoldina, temos uma crônica de Coelho Netto, publicada em 06 de maio de 1909. A crônica “Para sempre” fala de um amor pedido prematuramente. Leve e sensível, a crônica tem um tom poético e uma linguagem acessível. Confira 

PARA SEMPRE – COELHO NETTO

“Empresta-me o teu coração, disse-me ela, já débil, em vésperas de morrer. Eu sei que vou partir e não quero levar comigo o que não me pertence. Guarda em teu coração o que te confiar e nunca o abras, vê bem! Nem confies a outrem para que se não venha a conhecer o segredo de uma pobrezinha e eu, lá mesmo na Altura, choraria de vergonha se viesse, saber que haviam descoberto. Empresta-me o teu coração... disse-me ela”

Como havia eu de negar cousa tão simples a uma infeliz que morria? Dizem que os que vão morrer nada se nega e eu, não querendo que me ficasse eterno remorso, cedi ao pedido da moribunda, deixando com ela o meu coração para que nele guardasse o que , já com voz surda, afirmou que não lhe pertencia.

Quando me o devolveu não senti mudança alguma. Que teria a moribunda pálida guardado em seu coração? Não sei. No dia seguinte, com o frio do inverso, esfriou para sempre e, de olhos fechados no peito magro, fui encontrá-la no seu leito virginal cercada de flores. Pobrezinha! Tinha apenas 18 anos...

E levamo-la ao cemitério. Os coveiros tomaram-na e o caixão baixou a sepultura, cobrindo-se de terra. Tomei a casa e a tarde, logo depois que ela despareceu, desanuviou-se; cigarras cantavam e o azul desapareceu com estrelas.

Seria tão grande a tristeza da infeliz que desse para entristecer a natureza inteira? Não sei, mas tanto que os seus olhos fecharam-se voltou ao mundo a alegria e os pássaros, que não cantavam, entraram a cantar jocundos[1], como na primavera.

E os dias correram, correram os duas e eu comecei a sentir que meu coração pesava no meu peito.

Durante duas eu o sentia ao cair das noites, até que impressionado e lembrando-me da morta, resolvi recorrer aos homens de ciências para que tentassem descobrir que havia no meu coração. Debalde[2] os homens de ciências auscultaram[3], debalde! Nenhum soube dar a razão do meu sofrimento. Foi um velho poeta quem me disse a triste verdade:  - Ah! Meu amigo, tendes o vosso coração cheio de amor da morta, foi isso que ela vos deixou e, tão grande é, tão grande! Que ela não o quis levar para que não passasse quando houvesse de subir ao céu.

E agora, bardo? Que ei de fazer desse amor de uma finada! Que hei de fazer para aliviar um coração que tanto sofre! O poeta acolheu os ombros com tristeza e disse:

- Não sei...

E quando com o coração cheio desse amor sombrio que me pesa tanto que não deixa entrar pelo outro amor, porque o tomou por inteiro. Pobre de mim! Pobre de mim!

Fontes consultadas:

GAZETA de Leopoldina. Leopoldina, 06 de maio de 1909, nº 6, p. 02

COELHO Netto – Biografia. Academia Brasileira de Letras. Disponível em: < https://www.academia.org.br/academicos/coelho-neto/biografia


[1] Adjetivo que expressa alegria, satisfação; alegre. Que aparece agradável e amenamente; aprazível, ameno.

[2] Inutilmente.

[3] Auscultaram vem do verbo auscultar. O mesmo que: escutaram, ouviram, sondaram, inquiriram, investigaram, averiguaram, perquiriram, perscrutaram, pesquisaram.