quinta-feira, 30 de abril de 2020

DIA NACIONAL DA MULHER: VAMOS LEMBRAR DE MULHERES IMPORTANTES NA NOSSA VIDA

Minha ex-professora, arrasando de shortinho em um desfile cívico lá pelos anos de 1950 ou 1960 (acho). Foto cedida por Katsumi Dan (s/d)

Hoje é dia  Nacional da Mulher,  uma data comemorativa pouco lembrada, mas que tem um significado muito grande principalmente para Leopoldina, MG. O Dia Nacional da Mulher foi instituído em 1980, através da lei nº 6.791, de 9 de junho de 1980, em homenagem a Jerônima Mesquita, ativista pelo direito ao voto feminino, na primeira metade do século XX. Jerônima nasceu no município de Leopoldina e foi uma das figuras mais importantes do movimento sufragista brasileiro. 

Infelizmente, mesmo em Leopoldina, a sua história ainda é pouco conhecida. Recentemente Jerônima Mesquita ganhou espaço na exposição permanente sobre a história de Leopoldina, que pode ser visitada Espaço Cultural Mauro de Almeida, no centro da cidade. Uma homenagem justa, mas ainda insuficiente. A Academia Leopoldinense de Letras também lhe homenageou com a cadeira n.25, ocupada pela professora e historiadora, Amanda Almeida.

Mas neste DIA NACIONAL DA MULHER, eu não pretendo falar dela. Neste dia nacional da mulher, eu quero exaltar importância das mulheres comuns. Daquelas cujos nomes dificilmente vamos encontrar em um livro de história, mas que, certamente, tiveram um papel importante na vida de muitas pessoas. Eu escolhi falar sobre minha ex-professora, Heloísa Nogueira, que faleceu ano passado.

Por que ela?

Heloísa (s/d)
Foto cedida por Ana Cristina Fajardo
Porque ela foi a mulher que mais me inspirou, desde bem jovem. Ela era minha professora de geografia. Heloísa me abriu os olhos para o mundo. Ela levava para suas aulas muito mais do que conhecimento técnico mas, principalmente,  experiência de vida. Heloísa viajava muito, numa época em que eu e a maioria dos meus colegas da escola pública nem sonhava ir para além do Rio de Janeiro, onde eu passava minhas férias.

Quando ela falava de um lugar, ela tinha sempre uma foto para mostrar ou uma experiência para contar. Foi ela que me inspirou a fazer minha primeira viagem para o exterior, quando eu ainda tinha 12 anos de idade. Explicarei melhor: ela, em uma de suas aulas, nos falou sobre a cordilheira dos Andes e contou de sua viagem a Machu Picchu, no Peru. Com 12 anos eu havia me decidido: eu iria lá. Aos 29 anos eu realizei meu sonho e fui.

Uma das paixões dela eram
os animais. Foto cedida
por Katsumi Dan (s/d).
Heloísa era uma professora diferenciada em muitos aspectos. Suas aulas eram divertidas e dinâmicas. Ela era a professora que eu gostaria de um dia ser. Uma mulher que adorava cultura popular e queria nos aproximar dela. Os alunos adoram participar de sua atividades criativas e seu jeito despojado destoava da seriedade e sobriedade de outros professores, lá no início dos anos de 1980. 

Heloísa foi a primeira feminista que eu conheci, embora ela nunca tenha se referido a si mesma como uma, pelo menos na minha frente. Ela era famosa por subverter tabus, por ser "avançada" para a época e por não se importar com aquilo que os outros diziam. Prezava sua liberdade e repudiava preconceitos. Ela foi, também, meu modelo de mulher, por sua foram atrevida de encarar o mundo, sempre de cabeça erguida.
Heloísa comigo, no lançamento do meu primeiro livro, em 2010,

Eu gostaria de, no futuro, poder fazer uma breve biografia desta  mulher forte e independente, que influenciou várias gerações de estudantes, tanto como professora quanto como pessoa. No Dia Nacional da Mulher nada mais correto do que se lembrar de uma mulher que não pode ser esquecida por milhares de estudantes quer tiveram o privilégio de tê-la como professora.


terça-feira, 21 de abril de 2020

RECOMENDANDO DORAMAS NO NETFLIX


Hoje vou fazer uma postagem bem pessoal. Quero compartilhar com quem interessas algumas dicas sobre doramas no Netflix. Pois é, virei dorameira. Aconteceu há quase um ano. Assisti um dorama chinês no Netflix, buscando algo diferente e daí vieram outros.  No final, não apenas fiquei fã como até aprendi muito sobre a cultura oriental, assim como acabei estendendo minhas pesquisas sobre quadrinhos para os webtoons coreanos.

Já fiz algumas postagens sobre doramas, chineses e coreanos, até já ensaiei meus primeiros textos científicos sobre eles. É um vício: eu sempre transformo lazer em trabalho. Mas é divertido. Aliás, estudar, pesquisar e escrever tem que ser divertido, senão eu não faço.

Mas, hoje o objetivo da postagem é indicar alguns doramas no Netflix para assistir durante a quarentena, levando em conta quem nunca assistiu séries orientais. Vou indicar apenas três, para introduzir quem nunca assistiu. No final da postagem, deixou algumas dicas para quem gostar e quiser mais. Optei pelo Netflix porque é o provedor via streaming  com maior acesso para a maioria das pessoas. Mas, para quem ficar curioso e não tiver Netflix, basta postar um comentário que eu posso indicar outros canais, alguns completamente gratuitos.

Antes de tudo acho que é bom esclarecer o porquê de eu indicar doramas, a partir da minha experiência.
  1. Eles trazem perspectivas diferentes e nos apresentam a uma cultura que ao mesmo tempo se assemelha à nossa, mas, também, é completamente diferente.
  2. A variedade de temas. Eu assisti doramas de todos os tipos: ficção científica, romance, comédia, dramas profundos, suspense, terror, aventura, policial, etc. Tem de tudo e para todos os gostos.
  3. Os clichês, nem sempre os doramas os seguem. Alguns vão ter finais surpreendentes que vão te deixar de queixo caído. 
  4. Mulheres fortes. Apesar da cultura oriental ser extremamente machista e patriarcal, há muitos doramas nos quais as mulheres se destacam como protagonistas e não dependem dos homens. Elas tomam as rédeas, assumem os riscos.
  5. A trilha sonora costuma ser muito bonita. Alguns doramas eu assisti seduzida pela trilha sonora, principalmente os k-dramas, os doramas coreanos. Não é a toa que a música coreana tem ganhado o mundo.
  6. A qualidade dos atores. Dos protagonistas aos coadjuvantes, especialmente estes últimos, são geralmente muito bons. A produção de séries move uma indústria competitiva na qual ter o rostinho bonito é importante, mas precisa saber atuar, também. Como resultado, temos algumas séries de excelente qualidade. O roteiro ajuda também, claro.
Dito tudo isso vou começar com as minhas indicações. Escolhi estes doramas levando em conta o gênero (romance, ficção, fantasia, ação), a qualidade dos atores e do texto. Não coloquei aqui doromas que já resenhei no blog, como Cheese in the Trap  (치즈인더트), Nosso LugarSecreto (独家记忆番外) Ashes of Love  ( 沉沉 如霜).

O primeiro que eu super recomento é Memórias de Alhambra (알함브라 궁전의 추억). Trata-se de uma série sul-coreana (k-drama) de fantasia e suspense, lançada em dezembro de 2018 e terminou em janeiro de 2019. Ele é uma produção conjunta da TV sul-coreana com o Netflix, com 16 episódios no total, cada um com a duração de 70 minutos.  

No elenco estão dois atores muito populares na Coreia do Sul. O protafonista Hyun Bin, que atua na TV e no cinema, é umd os meus atores preferidos. Tudo que eu assisti com ele até hoje foi muito bom. No Netflix recomendo Pousando no Amor, série que fez um tremendo sucesso, lançada no final do ano passado e que terminou em fevereiro de 2020, e o filme The Negotiation.  recomendo filmes e séries com este ator) e Park Shin-Hye, que já participou de muitas séries de sucesso na Coréia do Sul e está em algumas séries populares no Netflix como Herdeiros. A série gira em torno de um jogo de realidade ampliada que ameaça a segurança de seus usuários. Acho que falar mais do que isso pode trazer muitos spoilers, então eu prefiro ir direto ao que interessa. Os méritos da série.

O primeiro são efeitos especiais, que não deixam nada a desejar a uma produção estadunidense. O segundo, claro, o elenco, que é de primeira. Além disso, temos a cenografia, fabulosa, com locações a Coréia do Sul e em Granada, Madrid, Girona e Barcelona Espanha, além de Budapeste, Hungria e Eslovênia. E, é claro, o roteiro, que é assinado por Song Jae-jung, uma roteirista fantástica, que em 2016 ganhou o prêmio de melhor roteiro por W: entre dois mundos, meu k-drama preferido, mas que ainda não tem no Netflix.

Minha segunda indicação é uma série de ação com uma pitada de comédia e romance chamado Man to Man (맨투맨). A trama gira em torno de um agente secreto que vou designado para uma missão na qual ele vai ter que se disfarçar como guarda-costas de um astro de cinema muito excêntrico. Além de tiroteios e cenas envolvendo carros explodindo, há muitas gargalhadas. A série também tem 16 episódios, com cerca de 60 a 70 minutos de duração cada.

O elenco é muito bom, com Park Hae-Jin (protagonista de Cheese in the trap), um ator que eu particularmente gosto muito, Kim Min-jung, uma atriz que eu não conhecia, mas que tem uma carreia enorme tanto na TV quanto no cinema, e Park Sung-woong, que dos três é o melhor, em minha opinião. Este último ator está arrasando como um vilão psicopata em Rugal, K-drama de ação que está no ar no Netflix.

A série sabe equilibrar muito bem ação, comédia e romance, sem exageros. As cenas de ação são bem feitas, os diálogos inteligentes e o entrosamento entre os atores, também.

Por fim, um drama histórico/comédia romântica, que tem lá seus momentos tensos, chamado My Sassy Girl (엽기적인 그녀).  Conta a história de amo entre um estudioso (erudito) e interpretado por  Joo Won, e a princesa Hye-myung, interpretada pela atriz Oh Yeon-seo, que não é nada convencional (ela xinga, ela foge do palácio pulando o muro, fica bêbada, etc). A séria é ambientada durante a era da dinastia Joseon, mas usa linguagem coloquial, gírias modernas e faz referência à cultura pop coreana e até à literatura universal, o que torna a história mais divertida para quem consegue ler nas entrelinhas. A dinâmica entre os atores é muito boa, com destaque para os coadjuvantes. A cenografia e o figurino são lindos e o enredo também é bem fechadinho. Ainda entre as séries históricas eu recomendaria A historiadora.

Vou ficar apenas com estas três séries, mas há muitas outras, inclusive algumas que estrearam recentemente e estão nos primeiros episódios, como Eternal King. A partir do momento que o usuário opta pelas séries orientais o Netflix passa a oferecer outras opções. A dica que eu deixo para quem viu, gostou e quer mais é pesquisar por outros títulos a partir do nome dos atores.

domingo, 19 de abril de 2020

UMA BREVE HISTÓRIA DO FEMINISMO

Capa da publicação
brasileira (2019)
Leitura da semana, "Uma breve história do feminismo no contexto euro-americano", foi uma grata surpresa. Obra em quadrinhos, sob o traço da quadrinista Patu e roteiro da cientista política Antje Schrupp, lançada originalmente na Alemanha, em 2015, narra a história do feminismo de forma sintética, mas sem abrir mão da qualidade acadêmica. Ou seja, apresente o feminismo para leigos, mas não deixa a desejar a livros teóricos sobre o tema. 

Capa da publicação
 alemã (2015)
Não é uma HQ para crianças, mas indicada para alunos do ensino médio. Não é um quadrinho apenas para mulheres, mas para todos, uma vez que entendermos que o feminismo representa um posicionamento social que independe da origem biológica. Aliás, um dos pontos fortes da obra é esclarecer muito bem o que são relações de gênero e como elas são construídas. Em tempos em que os estudo de gênero esbarram em muito preconceito e em ideias deturbadas do que são papeis de gênero, é uma obra necessária. 

Na breve introdução da HQ, chamou-me a atenção um trecho escrito pela autora, quando ela fala do conceito de humanidade e busca sua raiz no livro do Gênese, no Antigo Testamento:


(...) a palavra hebraica “Adam”, não é um nome masculino, mas significa simplesmente “ser humano”. Adão não tinha um sexo. Com a criação de Eva, portanto, não foi só a mulher que veio ao mundo, mas muito mais do que isso, a distinção entre os sexos: o ser humano de sexo neutro “Adam” tornou-se mulher e homem.

A equiparação de Adão com o homem já mostra, no entanto, onde está o problema: em muitas culturas os homens são confundidos com o ser humano em si.


A introdução nos prepara para uma obra que pretende desmistificar o feminismo e as relações de gênero, dentro do contexto histórico/cultural/intelectual do ocidente, conforme remete o próprio título. 

A introdução nos prepara para uma obra que pretende desmistificar o feminismo e as relações de gênero, dentro do contexto histórico/cultural/intelectual do ocidente, conforme remete o próprio título.

A HQ se divide em pequenos capítulos que pontuam aspectos históricos e teóricos do feminismo de forma didática. Por exemplo, no que diz respeito à história, apresenta o feminismo na Antiguidade, na Idade Média, em momentos importantes da história do pensamento  como o iluminismo. Sempre partindo de uma ou mais figuras femininas, como a filósofa Ptolemaida, a matemática Hipátia, de Alexandria, a abadessa alemã Hidelgarda de Bingen e a escritora Mary Wollstonecraft.

Ao abordar o movimento feminista, apresenta ao grande público nomes como Simome de Beauvoir Luisa Muraro, e Judith Butler, assim como temas como transversalização de gênero e feminismo Queer. Um livro tão completo que fica difícil apontar algo que, por acaso, esteja faltando.

A obra é feliz em trazer para o palco principal mulheres que se destacaram ao longo da história, rompendo barreira impostas pelas relações de gênero e em defesa da participação das mulheres em campos da sociedade nos quais elas estavam alienadas. 

Destaque para a habilidade da autora de realizar um história das mulheres e do feminismo e que dialoga com o caso específico alemão, oferecendo outras perspectivas dentro do contexto europeu. O único ponto negativo foi a opção do formato da obra, pela editora Blucher (14x21), que dificultou sua leitura, pois a fonte do texto ficou muito pequena, assim como desvalorizou a arte de Patu.

sábado, 11 de abril de 2020

AS POSTURAS MUNICIPAIS DA VILA DE LEOPOLDINA - SÉCULO XIX



O município de Leopoldina emancipou-se em 27 de abril de 1854 e o Arraial do Feijão Cru tornou-se a Vila de Leopoldina. Era preciso organizar a administração local que agora deveria possuir regras próprias, regulamentos de boa convivência, que ordenassem o uso do espaço urbano. Foram, então, criadas as Posturas da Câmara Municipal da Villa de Leopoldina, uma série de leis e decretos que regulavam a vida da população. As Posturas foram regulamentadas pela Resolução nº 788, de 31 de maio de 1856 e publicadas no Livro da Lei Mineira (1857).

Em 43 páginas estavam dispostas as regras básicas que deveriam ser seguidas pela população, além de orientações e detalhamento de punições (multas, açoites, prisões). Tais regras eram uma forma de domesticar os hábitos e os costumes da vila (posteriormente cidade) e atingiam também as áreas rurais. Essas regras nos auxiliam, também, a entender a lógica que regia o funcionamento do espaço urbano e sua relação com as áreas rurais, que no caso de Leopoldina era essencial.

Por meio da análise desse documento é possível se empreender um estudo acerca da sociedade local, seus hábitos e suas necessidades. As posturas nos apontam, entre outras coisas, os desafios da administração pública, práticas dos moradores, atividades econômicas que são desenvolvidas pela comunidade, além, claro, da preocupação dos elites em manter controle sobre toda uma população que, no caso de Leopoldina, distribuía-se entre a vila, elevada a cidade no ano de 1861, e seus distritos estes uma extensão da comunidade rural.

As Posturas da Câmara Municipal de Leopoldina: controle social.

Segundo Márcia Pereira Silva (2011: 02) o estudo das posturas nos "oferece significativa visão dos poderes locais sobre o que julgavam ser a cidade e/ou aquilo que gostariam que ela se tornasse." São as elites que arbitram acerca das normas e tentam, por meio delas, educar e civilizar o povo. É o jogo de poder e controle sempre presente na história, seja local ou global.

Independentemente de sua origem ou dos interesses em torno dos quais elas foram criadas, leis como Posturas podem nos dizer muito sobre as relações e práticas sociais de determinada época em determinada sociedade. O que se pode e não se pode fazer. Mesmo a forma como as punições são aplicadas, com maior ou menor rigor, nos ajudam a construir uma imagem do passado a partir desse esforço em se regular os comportamentos individuais e coletivos no espaço urbano e rural.

Para entender melhor a organização social, as demandas e identificas algumas das práticas sócio-culturais locais do município de Leopoldina, optamos usar como fonte as Posturas da Câmara Municipal de Leopoldina, documento rico em informações acerca desses e outros temas. Para tanto, selecionamos alguns artigos, uns curiosos, outros até mesmo engraçados.[1]

Nas posturas há Títulos com Capítulos que versam sobre vários temas, tais como o alinhamento das construções, a limpeza, a salubridade, contravenções, indústrias e abastecimento. Nelas temos tanto referências à coletividade quanto ao indivíduo. Começaremos pelo art. 7º, que se encontra no Título I das Disposições Gerais: "Dia é o espaço de 24 horas".

Se para os dias de hoje um documento legal conter tal informação parece estranho, temos que levar em conta que a realidade no século XIX era bem diferente. O Brasil era um país com poucas escolas, estas frequentadas por uma minoria de privilegiados, onde o número de analfabetos estava na casa dos 80% (ou mais) da população. Não é exagero supor que esclarecer a duração do dia era fundamental para se organizar as tarefas pois é dentro deste espaço de tempo que a vila irá desenvolver suas atividades econômicas, políticas e sociais. É sempre bom lembrar que a ritmo do tempo na cidade e no campo eram, de acordo com o costume, diferentes, fazendo-se necessário estabelecer um padrão de ordenação. Assim, havia muita lógica em utilizar-se de um instrumento legal para informar o morador da cidade e do campo sobre as questões relativas ao tempo e sua duração.  Além disso, muitos prazos eram estabelecidos dentro deste período (24 horas). O Art. 14. impõe "obrigação de fazer e desfazer" a partir da assinatura de um termo de 24 horas.

A escravidão é um tema recorrente, o que não é novidade, uma vez que no Brasil ela foi uma prática comum desde os primórdios da colonização. Artigos que regulamentam as tarefas, os espaços e punições aplicadas a pessoas às quais a escravidão imposta serão encontrados em praticamente todos as Posturas, até a abolição em 1888. Os escravos são frequentemente citados, na maioria dos casos ou sendo proibidos de fazer alguma coisa ou sendo castigados por alguma ação.

Art. 8º - Quando o mulato for escravo, e não tiver meios com que pague a multa, ou se o senhor não a pagar, será comutada em açoites na razão ou proporção seguinte: a multa até 1$000 rs. será comutada em 25 açoites; de 1$000 rs. até 4$000 rs. em 50 açoites; de 4$ rs. a 10$ rs. em 100 açoites; de 10$ rs. até 20$ rs. 150 açoites; de 20$ rs. até 30$ rs. em 200 açoites; de mais de 30$000 rs. até 45$000 rs. em 250 açoites e de mais de 45$ rs até 60$000 rs. em 300 açoites. Não se dará mais de 50 açoites em dias alternados, e em quanto não for finalizado o castigo o escravo será conservado preso (1857: 94).

Observe que há um limite de 50 açoites em dias alternados. O escravo é uma propriedade privada que deve ser resguardada. A morte ou invalidez do escravo acarretaria prejuízo ao seu dono. É possível que alguns desses donos pagassem a multa para não ficarem sem o trabalho diário do seu escravo e aplicassem, eles mesmos, um castigo que não comprometesse o rendimento físico do cativo. Mas a mesma sociedade que usa o açoite como forma de justiça, condena e fiscaliza os maus tratos ao escravo. Contradições da escravidão no Brasil.

Art. 20. Os fiscais dos Distritos de fora participarão ao desta Vila os maus tratos, e atos de crueldade que por ventura os srs. Costumarem a praticar com seus escravos, indicando o meio de preveni-los. O Fiscal da Vila procederá como está determinado no artigo antecedente formando dessa exposição um artigo separado (1857: 96).

Cabia ao Fiscal da Vila apresentar um relatório à Câmara sobre a denúncia de maus tratos a escravos. Nas Posturas não consta o tipo de punição, mas ela poderia ocorrer, principalmente em se tratando de casos de grande crueldade. Existem registros de processos legais movidos contra donos de escravos denunciados durante os vários séculos de escravidão no Brasil que atestam todo o tipo de ofensa física praticada contra os escravos.

Embora não fosse uma regra geral, foram significativos os casos de escravos que denunciaram seus donos por maus tratos, ainda durante o período da colonização. Havia um limite para as formas de punição que os escravos deveriam receber. Alguns castigos beiravam o sadismo e eram condenados pela moral cristã (a mesma que curiosamente justificava a escravidão) e caracterizados como maus tratos. O senhor podia ser condenado por isso a pagar uma multa ou, em alguns casos podia perder seu escravo.
Nas Cartas Régias do final do século XVII, o senhor cruel teria a obrigação de vender seu escravo para outra pessoa (LIMA, 2010: 08), no século XVIII os governadores podiam intervir e determina a concessão da alforria ao cativo, vítima de maus tratos. Recorrer ao governador ou ao rei se tornou uma forma de conquistar a liberdade.

(...) durante a segunda metade do século XVIII e início do XIX, aos escravos que recorriam ao Rei a fim de obterem a liberdade havia a disponibilidade de um campo argumentativo legitimador de suas demandas. Entre as alegações mais recorrentes estava a de maus-tratos, que, apesar de não constar em nenhum código legal, era considerada uma das formas legítimas através da qual os escravos poderiam obter a liberdade (LIMA, 2010: 09).

Mas, excluídos os casos mais escandalosos, os maus tratos dos senhores eram muito mais limitados pelo medo de perder o escravo, que poderia morrer, fugir ou ficar invalidado, do que pela lei e pela opinião pública (PORTO, 2006: 1021).

No decorrer do todo o texto das posturas nos deparamos com vários artigos onde os escravos são citados, mostrando sua presença na sociedade leopoldinense, que era extremamente escravista. Leopoldina teve um dos maiores planteis de escravos de Minas Gerais. Ao que tudo indica na década de 1850 a escravidão já desempenhava um papel importante dentro do contexto econômico e social do recém-formado município.

Espaço urbano e saúde pública
Prosseguindo, temos no Título 2º, que trata do asseio das povoações, estão dispostos os direitos e deveres dos moradores e da Câmara com relação à limpeza urbana. Vamos perceber que algumas das exigências das posturas estão relacionadas aos maus hábitos dos moradores, como jogar lixo nas calçadas, ruas e praças. No Capítulo 2º, o art. 50 dispõe que:

É proibido nas ruas e praças:
§ 1º - lançar imundices de cheiro desagradável, ainda que seja por encanamento que as despejem.
§ 2º - Fazer estrumeiras[2]
§ 3º - Lançar animais mortos ou moribundos – multa de 4 a 12$000 rs. Os animais mortos devem ser enterrados nos quintais, ou fora das povoações (1857: 102).

Os ficais dos distritos tinham que verificar e informar à Câmara da existência águas paradas, evitando que estas provocassem contaminação e ameaçassem a saúde pública (1857: 107). Deveriam ser fiscalizados, também, os matadouros e o comércio de alimentos, principalmente os perecíveis, assim como a venda e produção de remédios.

Era, também, de obrigação dos moradores manterem limpos os quintais e calçadas, podendo ser multado quem não o fizesse. A limpeza e o asseio foram ganhando importância no decorrer do século XIX, o que não significa que as cidades e vilas não sofressem com o odor exalado pelo lixo jogado nas calçadas ou pelo esgoto a céu aberto. A falta de salubridade é apontada como a principal causa de muitas das epidemias que castigaram o Brasil, à medida que o espaço urbano era ampliado.

Na década de 1850 questões ligadas à limpeza urbana estavam em voga. A saúde pública passou a ser diretamente relacionada com a limpeza e aos hábitos de higiene. No Rio de Janeiro, neste período, foi criada a Junta da Central de Higiene, organismo “encarregado de zelar pelas questões da saúde pública” (CHALHOUB, 1996: 32). Nesse momento emergia uma ideologia da saúde pública, que encontrava eco nas Posturas dos pequenos e grandes municípios.

No discurso político da época fazia-se presente a oposição entre “civilização” e “tempos coloniais”. Segundo os defensores desse discurso, para se atingir a civilização era necessário um aperfeiçoamento moral (do indivíduo) e material (da cidade) e que para o país possa atingir o ideal de prosperidade das nações mais desenvolvidas deveria solucionar seus problemas de higiene pública (CHALHOUB, 1996: 32).

Nas memórias de Francisco de Paula Ferreira de Rezende temos uma breve descrição do Arraial, posteriormente elevado à categoria de vila, que contempla tanto o plano moral e o material, e que carrega uma boa dose do discurso civilizador. (REZENDE, 1988: 378). Descreve as construções do povoado como não tendo nenhum luxo ou comodidade. A grande maioria das casas não tinham vidraças, consideradas um luxo. Predominavam construções de pau a pique, que não excluíam pequenas igrejas.

Ainda segundo ele, a “parte meridional” do município de Leopoldina era ocupada por “gente mais ou menos abastarda” e “mais ou menos civilizada”, a sua “parte setentrional” que incluía o povoamento que mais tarde se tornaria a cidade de Leopoldina foi, inicialmente, ocupada por pessoas ignorantes, pobres e pouco civilizadas. Segundo os memorialista, mal podia-se, por vezes, distinguir um homem abastardo de um agricultor rude, pois ambos vestiam-se quase que de forma semelhante e tinham pouco asseio. A criação da vila teria rompido com esse estado de coisas e aberto caminho para a civilização.

Felizmente, depois da criação da vila quando foram entrando outras famílias e sobretudo depois da estrada de ferro que produziu no lugar uma verdadeira revolução, as cousas tem mudado muito; e não só mesmo nas casas mais pobres já se vê muito mais comodidade, mas sobretudo em público, as decência é mais ou menos geral, e os filhos daqueles jarretas, em parte ao menos, já quase que apresentam ares de Corte (REZENDE, 1988: 376).

O Título 3 que rege sobre a saúde pública rege sobre a salubridade do ar, água e alimentos e sobre a prevenção das doenças. Esses temas são interligados e envolvem tanto o uso e conservação do espaço público, quanto pune aqueles que não cumprem com tais normas. Vários artigos referem-se aos cemitérios, oito no total, e estabelecem normas para o enterro de corpos humanos.

Art. 66 É proibido enterrar-se os corpos humanos na Villa, ou nos arraiais, em outro lugar que não seja o cemitério público, havendo-o – multa de 20 a 30$000 rs.  e o duplo das reincidências. Serão igualmente punidos com a mesma multa, e 8 dias de prisão os que praticarem ou mandarem praticar exumações de cadáveres sem estarem para isso autorizados (1857: 105).

Nessa época uma das teorias defendidas por médicos higienistas e usada para explicar os surtos das doenças era a teoria das miasmas, pela qual doenças infecciosas eram causadas pelo estado das atmosfera. Os vapores, por exemplo, produzidos pela decomposição de cadáveres ou da mistura de lama e fezes, aquecidas pelo sol poderiam provocar malefícios para a saúde.

Foi por época da difusão dessas ideias que os corpos começaram a ser enterrados nos cemitérios. Antes, eles ficavam no assoalho das igrejas, no caso de famílias mais abastardas, por exemplo. Concluiu-se que a decomposição dos corpos poderiam produzir miasmas, que eram agentes contagiantes. Partindo dessa teoria, começaram a ser realizadas várias reformas urbanas e foram criados os cemitérios públicos.

Foram os filósofos infeccionistas, que entendiam que as doenças eram transmitidas pela ação das miasmas, que acabaram por produzir o arcabouço ideológico básicos das reforma urbanas realizadas em várias cidades, principalmente a partir da segunda metade do século XIX (JORGE, 2006: 16).

Em 1892, os cemitérios serão regulamentados em Leopoldina, pela Resolução de n. 07, publicada no Estatuto Municipal, o primeiro da República, e que estabelece as principais diretrizes da organização municipal, assim como as atribuições da Câmara e dos Vereadores (1892, 92-96). Ela proíbe os cemitérios particulares e estabelece, entre outras coisas, que os cemitérios distritais fiquem sob a responsabilidade dos Conselhos Distritais. O controle sobre os cemitérios é, também, o controle sobre as doenças.

A segurança pública e as manifestações da cultura popular

O Título 4, fala da segurança pública e é um dos mais interessantes, pois envolve práticas e comportamentos dos. Por exemplo, proíbe-se a jogatina para menores de 20 anos e escravos, assim como apostas envolvendo dinheiro ou escravos. O art. 104 proíbe o maior de 15 anos de viver sem ocupação “útil e honesta”, quanto este não tiver quem o sustente (1857: 111). 

Nessas condições, o jovem pode ser entregue a um estabelecimento ou fazenda onde terá que trabalhar por meio salário, cujo valor não é estabelecido, mas deve ser baixo ou irrisório. Essa determinação muito favorece aos fazendeiros, que podem contar com força de trabalho jovem e barata, sob trabalho compulsório que se assemelha à servidão uma vez que é tirado do jovem, a ela submetida, o direito de escolha.

Ainda no que diz respeito à segurança pública, temos o art. 130, que proíbe o batuque com algazarra, mas o art. 131 permite aos escravos tocar, cantar e dançar nas ruas, mas de acordo com a conveniência dos moradores da localidade. Os subdelegados ficaram responsáveis por organizar essas manifestações. E, por fim, temos o art. 132 que fala de festejos religiosos dos escravos.

Art. 132. São permitidos os quimbêtes[3] ou reinados que costumam fazer os escravos acompanhando os juízes-mores das irmandades do Rosário, contando que não sejam de noite (1857: 116).

O reinado é uma tradição folclórica típicas de Minas e que tem sua origem na história de Chico Rei, que convertido ao catolicismo, depois que chega ao Brasil como escravo, invocou como padroeira Nossa Senhora do Rosário (PEIXOTO, 1978: 65). Irmandades do Rosário são tradicionalmente formadas por escravos e libertos. Os reinados ocorriam especialmente nos distritos de Leopoldina e até hoje fazem parte do folclore regional em vários outros municípios mineiros.
 
São proibidos, também, na parte da segurança pública, pelos art. 143 e 144, gritos sem utilidade ou necessidade nas ruas e praças, podendo o autor ser punido com multa que pode vaiar de 10$000 rs a 20$000 rs. O controle sobre a vida urbana passa pela necessidade do silêncio. Gritar nas ruas, falar alto ou usar de palavras ofensivas são sinônimos de desordem.  Também não podem ser disparados tiros à noite (1857: 118).

Os vários temas que aparecem nas páginas das posturas mostram o desejo da Câmara de organizar a vila e seus distritos de acordo com os interesses das elites. As regras servem não apenas para tornar o ambiente da cidade mais civilizado, mas, sobretudo, estabelecer limites para a população marginal. Proíbe-se o comércio com ciganos, combatem-se as práticas de adivinhação e pajelança, retiram das ruas os rapazes desocupados, mantém controle sobre as práticas culturais dos escravos, combate-se o endividamento pela jogatina, etc. As Posturas buscam civilizar os hábitos e os costumes, civilizando assim o próprio espaço público.


REFERÊNCIAS

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. – São Paulo: Cia das Letras, 1996.

COLLEÇÃO DE LEIS DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DA PROVÍCINCIA DE MINAS GERAES DE 1856. Ouro Preto: Typographia Provincial, 1857. Disponível em http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/livro-da-lei-mineira/, acesso em 01/03/2014.

ESTATUTO MUNICIPAL DE LEOPODINA. Ouro Preto: Typographia da Ordem, 1892.

JORGE, Karina Camarneiro. Urbanismo no Brasil Império: a saúde pública na cidade de São Paulo no século XIX (hospitais, lazarentos e cemitérios). Campinas: PUC-Campinas, 2006.

LIMA, Priscila de. Direitos de escravos: maus-tratos e jusnaturalismo em petições de liberdade (América portuguesa, segunda metade do século XVIII e início do XIX). Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 42, jun. 2010. Disponível em http://goo.gl/lO736l, acesso em 01/03/2014.

MORRÁ, Eunice Martins. O léxico do XVI: um estudo do idioma brasileiros. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Estudos de Pós-Graduação em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

PEIXOTO, Yone Maria Fonseca das Neves, HIPPET, Evelyn Steinherz, CUNHA, Alayde  Margarida Barnabé da. Folclore da Zona da Mata de Minas Gerais. Juiz de Fora: Centro de Estudos Sociológicos de Juiz de Fora, 1978.

PORTO, Ângela. O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro v. 13, n. 4, p. 1019-27, out.-dez. 2006. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v13n4/12.pdf, acesso em 01/03/2014.

REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Minhas Recordações. Belo Horizonte: ed. Da Universidade de São Paulo, 1988.

SILVA, Márcia Pereira. Cidades, culturas políticas e comportamento: o papel das Posturas municipais (1889-1930). Anais do XXVI Simpósio nacional de História, São Paulo, 2011. Disponível em http://goo.gl/NBpIhw, acesso em 01/03/2014.





[1] O texto integral pode ser encontrado no Livro da Lei Mineira, cuja cópia encontra-se disponível para pesquisa e download, a quem possa interessar uma leitura completa e pode ser acessado pelo link http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/livro-da-lei-mineira/.
[2] Local onde se acumula, prepara ou fermenta o esterco.
[3] Espécie de batuque de escravos ao qual chamam também Caxambu, quando é exercido nas fazendas. É provavelmente de origem africana. A dança é acompanhada de instrumento de percussão, batuque (MORRÁ, 2006: 197).

sexta-feira, 10 de abril de 2020

HOMENS NA EDUCAÇÃO INFANTIL



Participei na quarta-feira, dia 08 de abril, pela manhã (5 AM) de uma videoconferência do grupo de estudos Critical studies on men and masculinities, da Universidade de Örebro, na Suécia. Minha primeira experiência deste tipo, diga-se de passagem. Meu amigo Ricardo Gonçalves que no mestrado pesquisou sobre Men in preschool (Homens na educação infantil) na Suécia e que agora está aprofundando seus estudos no doutorado. Eu achei superinteressante. 

A educação infantil, desde sua adoção, sempre foi um campo ocupado pelas mulheres, que nas escolas assumiam o papel de "mãe". Eu mesma já ouvi de alunos a expressão “a professora é a segunda mãe”. No caso da educação infantil, que atende crianças a partir de um ano de idade, essa ideia de maternidade é latente.

Segundo o modelo tradicional de família, é a mãe em casa que cuida e educa a criança enquanto o homem, provedor, trabalha para sustentar a família. Ela dá o que comer, cuida da criança quando adoece, troca fraldas, dá o banho e coloca para dormir. Quando ela é impossibilitada disso, uma babá assume o seu lugar. No entanto, este cenário tem mudado aos poucos. Muitos homens vêm assumindo este papel ou dividindo esta responsabilidade com as mulheres.

Em meio a uma discussão sobre igualdade de gênero podemos perceber que ainda muito disparidade num dos setores mais importantes, o da Educação. No Brasil, por exemplo, o número de homens que atuam na educação básica é muito pequeno. Em dados gerais, 80% dos docentes da educação básica são mulheres[1]. No que diz respeito especificamente à educação infantil, o número é ainda menor. Em 2017, dos 443.405 profissionais da Educação Infantil, apenas 13.516 (3%) são homens. No Ensino Fundamental, os homens representavam 270.446 (19%) de 1,1 milhão de docentes[2].

Um dos participantes da videoconferência me perguntou qual era a porcentagem no Brasil, e eu disse que não deveria ser nem 1%. Mas resolvi conferi e me surpreendi com os 3%. Sabe por quê? Porque não está muito distante da realidade de outros países, muito mais avançados tanto em termos educacionais quanto a introdução de políticas de igualdade de gênero. Na Suécia são 109 800 profissionais trabalhando na educação infantil e apenas 4%; no Canadá 3,4%; nos Estados Unidos, 3,2%; na Nova Zelândia 2%; na Dinamarca e na Noruega 9%, aproximadamente[3]

Por que temos um número tão pequeno de homens atuando como professores na educação básica e na educação infantil, de uma forma geral? 

Durante a apresentação que eu assisti, alguns fatores podem explicar essa diferença, baseados em dados internacionais. Há a questão da desvalorização da profissão docente e ainda fatores culturais e o próprio machismo. Há o problema do status e dos baixos salários e alegação de que os homens não teriam habilidades necessárias para cuidar das crianças como, por exemplo, saber trocar fraldas. Além disso, não há políticas públicas de incentivo para o ingresso na carreira do magistério.

Um dos argumentos que se destaca é parte da ideia de que os homens são potencialmente perigosos em contato com crianças e adolescentes. Este fenômeno é chamado de Androfobia que, segundo a psicologia, é um “distúrbio psicológico que gera um medo irracional, constante e intenso em relação aos homens” [4]A ideia de que homens são perigos, podem ser predadores sexuais e que não devem ser inseridos em meio nos quais há indivíduos incapazes de se defender. Esta fobia social passou a ser senso comum entre homens e mulheres. Um homem, portanto, não pode ter acesso a corpos infantis ou femininos como se isso acionasse um gatilho para a violência. Tal lógica é, no mínimo, doentia.

Com um pequena diferença, eu pude identificar estes mesmo fatores em artigos jornalísticos e científico que li sobre o assunto, no Brasil. O que demonstra uma certa regularidade no que diz respeito a práticas culturais e sociais em diferentes regiões do planeta. Aparentemente, a ausência de homens e mesmo as justificativas ela seguem uma tendência global.

Quando visitei uma escola de educação infantil, lembro-me de ter visto quatro homens: dois professores, um cuidador e o diretor. E eu achei aquilo fantástico. Na minha experiência de quase 30 anos de magistério eu conheci, no Brasil, apenas um homem que trabalhava com educação infantil, entre mais de 350 professores da rede municipal de ensino da minha cidade. Há professores de educação física, homens, que desenvolvem atividades com as crianças, mas professores responsáveis por uma turma eu realmente desconheço.

Mas por que ter professores homens na educação infantil? Dos argumentos apresentados destaco os seguintes:
- promover a igualdade de gênero entre os profissionais de ensino, rompendo com preconceitos a acerca dos papeis de homens e mulheres na educação formal;
- a necessidade de haver um modelo masculino para as crianças, visto que, em muitos casos, há família nas quais os homens estão ausentes;
- homens possuem algumas habilidades que podem complementar as habilidades das mulheres;
- os pais (homens) sentem-se mais a vontade em conversar com outros homens;
- a maior presença dos homens pode vir a elevar o status e o salário na educação infantil;
- mostrar que homens e mulheres podem desempenhar o mesmo papel no cuidado e educação das crianças.

Não vou dizer que concordo completamente com todos estes argumentos, mas entendo que eles trazem um ponto de vista diferente daquele que eu tinha até então. Uma coisa me chamou a atenção foi a questão da elevação do status. A presença de homens em uma profissão como fator de elevação do salário demonstra que mesmo numa sociedade na qual se prega a igualdade de gênero ainda prevalece uma mentalidade patriarcal. Isso me faz refletir sobre a questão do ensino superior no Brasil, no qual prevalecem os professores homens e o salário e status é muito maior. Há uma lógica, apesar de perversa, mas realista: profissões nas quais a presença masculina é maior possuem, também, reconhecimento e status mais elado, o que reflete em maior ganho salarial.

De uma forma geral, eu concordo que deve haver mais homens trabalhando tanto na educação infantil quanto no Ensino Fundamental. Os argumentos apresentados contra são falaciosos e cercados de preconceitos. A educação das crianças deve ser compartilhada entre homens e mulheres sem qualquer discriminação de gênero.




[1] 80% dos docentes da educação básica brasileira são mulheres (2018). Disponível em: < http://fundacaotelefonica.org.br/noticias/80-dos-docentes-da-educacao-basica-brasileira-sao-mulheres/>. Acesso em 09 de abril de 2020.
[2] PENSANI, Renata.Por que há tão poucos professores homens na Educação Infantil?Disponível em: <https://lunetas.com.br/homens-na-educacao-infantil/>. Acesso em: 09 abr. 2020.
[3] GONÇALVES, Ricardo. Men in preschool. Örebro Universitet, 2020.
[4] THOMÁS, Augusto. Androfobia: conheça mais sobre a fobia de homens. Disponível em <https://www.telavita.com.br/blog/androfobia/>. Acesso em: 09 abr. 2020.