Eventualmente
eu percorro as páginas dos jornais antigos de Leopoldina em busca de uma ou
outra informação que me inspire um texto ou mesmo uma breve reflexão. Na minha
última busca, eu me deparei uma matéria chamada Coisas do dia assinada por Júlio Caledônio[1]. Numa
narrativa em forma de crônica, ele fala sobre um homem que
conheceu “há alguns anos, infelizmente”. Deu-lhe o nome de João. Segundo ele,
um homem bem apessoado, “agrada-se desde logo, ao seu primeiro olhar, que todo
travesso, talvez que só para os homens...”
Trata-se
de um texto, em resumo, homofóbico, que faz duras críticas ao dito “João” por ter
“virado suas opiniões crenças e sentimentos, tudo... do direito para o avesso”.
Ou seja, João estava tendo um comportamento fora dos padrões considerados
masculinos. O texto foi publicado na primeira página, da Gazeta de Leopoldina
do dia 27 de fevereiro de 1898[2].
O
comportamento de João, ao que tudo indica, revoltou Caledônio. Ele narra o
episódio em que João recebe em seu estabelecimento[3] um
senhor que vendia abacaxis e dele se despede fazendo o seguinte gracejo: - “meu
benzinho do açúcar, volta amanhã, sim?” Sobre tal comportamento, Caledônio
comenta:
"Eu, pelo
menos, seria incapaz de chamar - meu amorzinho – a um velho assim, ou a
qualquer homem que vista calças; sou capaz, em dados momentos, de dizer coisas
mais bonitas ainda, porém não para marmanjos".
O
autor deixa bem claro o que ele pensa sobre o assunto, opinião possivelmente
compartilhada pelos leitores e a direção do jornal. É interessante perceber como o discurso que
condena a homoafetividade não mudou em quase cento e vinte anos. Da mesma forma foi fascinante ler o trecho
onde o autor coloca sua opinião sobre as relações entre pessoas do mesmo sexo
de forma bem clara e direta, citando homens e mulheres.
"Tudo na
natureza foi sabiamente criado.
Assim como é
antinatural uma mulher beijar uma outra mulher, ou o homem um outro homem o é
dedicar o homem a outro homem uma expressão que só deveria ser ofertada a uma
mulher, e a uma mulher que se ama!”
Um homem, por
mais delicado, por mais efeminado que seja, não merece uma linguagem tão terna,
tão expressiva, tão sentimental: “meu
amorzinho; um benzinho de açúcar; minha florzinha; meu coraçãozinho, etc".
Sabemos que as relações homoafetivas sempre existiram, não há o que se
discutir, mas ler tal relato em um jornal do interior de Minas Gerais, do final
do século XIX, nos leva a refletir sobre como eram essas relações no dia a dia
da comunidade. Nos leva a pensar que havia aqueles que desafiavam os tabus e
que não tinham medo de se expor aos olhares e às criticas de conhecidos e
vizinhos.
Se
havia aqueles que escondiam sua orientação sexual, como ainda hoje existe, o
contrário também ocorria e era de conhecimento público. Ou seja, aquela velha
frase que ouvimos desde que éramos crianças “antigamente não tinha nada disso”,
é pura balela. Não obstante, encontramos relatos sobre relações homoafetivas em
vários documentos ao longo da história. A sodomia ao longo da história (práticas
sexuais consideradas não naturais) foi vigiada, denunciada e punida.
"As Ordenações Afonsinas consideravam a sodomia “ o mais torpe, sujo e desonesto de
todos os crimes”, condenando à fogueira seus autores, independentemente de sua
posição social; as Ordenações Manuelinas
ratificavam a pena de morte, acrescentando o confisco dos bens dos réus em
favor da coroa, cabendo um terço para os delatores, tornando os filhos e netos dos fanchonos, infames e inábeis para
exercer cargos públicos; as Ordenações
Filipinas confirmam integralmente as anteriores, aumenta o prêmio ais
delatores na metade dos bens dos sodomitas, ou em 100 cruzados no casso do réu
ser despossuído, condenando ainda os sonegadores de sodomitas, aqueles que os
encobriam, à confiscação de seu patrimônio e degredo perpétuo para Dora do
país. As suas últimas ordenações criminalizavam não apenas o pecado nefando
entre homens, mas igualmente o lesbianismo, chamado na época sodomia foeminarum".[4]
Mas
estávamos no século XIX, os sodomitas ainda eram tratados como criminosos?
A
resposta é sim. O dramaturgo e escritor Oscar Wilde, famoso pelo "O
Retrato de Dorian Gray", por exemplo, foi preso no dia 6 de
abril de 1895 após perder um processo por difamação contra o Marquês de
Queensberry. Wilde tinha um caso com o filho do marquês, que o acusou de ser
homossexual. Wilde foi preso, considerado culpado e
sentenciado a dois anos de trabalhos forçados.[5]
A sodomia foi descriminalizada em vários países europeus no
decorrer do século XIX, mas isso não significou uma maior tolerância. A
preocupação com os desvios sexuais encontrou outros campos se tornado um tema
recorrente na medicina e na psiquiatria.
E mesmo não sendo considerada crime a sodomia ainda era punida pelas
autoridades policiais, por ir contra a moral e os bons costumes[6].
Vai ser no século XIX que vai surgir a palavra homossexual,
em 1969, cunhada pelo autro-húngaro Karl-Maria Kertbeny, que era substituir o
termo sodomia ao se referir à homoafetividade, Em 1870 surge o primeiro estudo
científico sobre o assunto[7].
O comportamento homoafetivo passa a ser considerado pela medicina como uma
doença, um desvio.
Não era crime João ter um comportamento efeminado, mas não
era natural e, portanto, deveria ser denunciado. Se João é um personagem real
ou fictício, é difícil saber. Mas ele certamente representa um grupo que
existia e, certamente, não era ignorado. João mostra que a homoafetividade está
presente em Leopoldina no final do século XIX e que não é tolerada, tendo que sido
vigiada e, talvez, punida. Mostra que as relações sociais eram complexas e que
estavam sob a zelosa fiscalização do Estado burguês. Os meios de comunicação
eram usados para alertar, denunciar e prevenir tais comportamento.
[1] CALEDÔNIO, Júlio. COISAS do
dia. Gazeta de Leopoldina, n. 46. Ano 5, Leopoldina, 27 de fevereiro de 1898,
p. 01
[2] Jornal disponível para leitura
na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (www.memoria.bn.br).
[3] No texto Caledônio diz que
João tem um bazar, depois corrige dizendo que é um cartório. Parece se
confundir propositadamente.
[4] MOTT, Luiz. Justitia et
misericórdia: a inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de
sodomia. In: NOVINSKY, Anita. CARNEIRO, Maria Luisa Tucci (org). Inquisição:
ensaios sobre mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura: São Paulo: EDUSP, 1987, p.
705-6.
[5] Escritor Oscar Wilde é preso por relacionamento com filho de marquês.
Disponível em: https://mobile.seuhistory.com/hoje-na-historia/escritor-oscar-wilde-e-preso-por-relacionamento-com-filho-de-marques, acesso em 24 jun. 2017.
[6] PRETES Érika Aparecida, VIANNA
Túlio. História da criminalização da homossexualidade no Brasil: da sodomia ao
homossexualismo Iniciação científica – Destaques 2007, p. 317. Disponível em: https://vetustup.files.wordpress.com/2013/05/historia-da-criminalizacao-da-homossexualidade-no-brasil-da-sodomia-ao-homossexualismo-tc3balio-l-vianna.pdf, acesso em 24 jun. 2017.
Um comentário:
Realmente foi um belo achado e uma análise de primeira. Parabéns!
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