Um artigo
publicado por Quentin Girard, em 02 de fevereiro de 2017, para o site Liberation, apresenta uma realidade
perversa da indústria de quadrinhos franco-belga: 36% dos quadrinistas vive
abaixo da linha da pobreza. A grande concorrência e a superprodução são
apontados como fatores que estão levando os artistas a terem seu trabalho
desvalorizado e sendo obrigados a recorrer a um segundo trabalho, para garantir
seu sustento. Segundo o artigo, para as mulheres ainda é muito pior: 50% das autoras estão abaixo
da linha de pobreza, 67% abaixo do salário mínimo anual."
Tais dados justificam a preocupação dos organizadores do Festival
Comic Strip (Fête de la Bande Dessinée) de Bruxelas, que criaram
este ano o Prêmio Atomium, com o
objetivo de incentivar os jovens a investirem e permanecerem na carreira de
quadrinista. A pesquisa foi feita pelos Les Etats généraux de la bande dessinée, associação fundada em 2014, e que
realizou o levantamento em 2016.
A pesquisa envolveu 1500 pessoas e
entre os seus resultados estão os seguintes dados (aplicados à realidade franco-belga):
atualmente 27% dos autores são mulheres (o que aponta um significativo
crescimento, uma vez que dados em anteriores este número estava por volta de
13%), apontando para a crescente feminização da
profissão, 56% dos autores
pesquisados têm menos de 40 anos. A
idade média das mulheres é de 34 anos, a dos homens 41 anos.
A partir
destes dados e do próprio objetivo da criação do Prêmio Atomium, resolvi fazer
um levantamento, envolvendo artistas de vários países, alguns deles envolvidos
com o mercado franco-belga, outros veteranos aqui no Brasil e no exterior. Todos
têm muito do que falar sobre as dificuldades da profissão e, ao decorrer do
texto o leitor vai perceber que a vida de quadrinista não é fácil não, m lugar
algum do mundo.

O quadrinista brasileiro Rafael Cordeiro ressalta, entre outras coisas, a falta de
reconhecimento da profissão no Brasil e a existência das chamadas “panelinhas”
(grupos fechados) que limitam as possibilidades de se conseguir contratos com
editoras. Além disso, Cordeiro acredita que para os roteiristas é ainda mais
difícil conseguir a atenção das editoras, porque “Um bom
desenhista, mesmo desconhecido, não leva mais de 1 minuto pra ter o talento
reconhecido. Pra avaliar um roteirista, o empregador - o editor - precisa de
tempo. E no tempo corrido de todos, é mais fácil dizer não”.
A veterana Maria Cláudia França Nogueira, a “Crau da Ilha”, conhecida pela sua participação na
revista O Bicho, publicada durante os
anos da Ditadura Militar no Brasil, conviveu com vários cartunistas que
conquistaram fama nacional e se consolidaram na carreira, como Laerte, Nani,
Paulo Caruso e Chico Caruso, assim como outros que acabaram tomando outros
caminhos, migrando para outras profissões. Ela acredita, pela sua experiência,
que “o sucesso é para poucos, que aliam grande talento, vocação para se manter
focado, persistência e saber aproveitar oportunidades”.
Por mais que se afirme, por exemplo, que no Brasil
as coisas são difíceis, em outros países, economicamente mais desenvolvidos, os
desafios são quase os mesmos.
A italiana, Cecília
Capuana, que atuou no mercado francês nas décadas de 1970 e 1980, também
encontrou muitas dificuldades. Como não possuía um agente era difícil oferecer
seu trabalho em grandes editoras. No início da carreira ela fez ilustrações
para jornais e até para uma empresa de transportes. Segundo Capuana, “é difícil
de ser livre”.
Mas ser livre foi a forma pela qual Trina Robbins conseguiu ter seu
material publicado nos anos de 1970, quando participava do movimento underground, nos Estados Unidos. Segundo
Trina Robbins, enquanto as grandes editoras rejeitavam seu trabalho, como quadrinista
underground
ela nunca teve problemas em publicar seus próprios quadrinhos, pois as editoras
underground estavam contentes em publicar o que vendessem “e eles sabiam que
meus quadrinhos venderiam”.
Os
quadrinistas suecos compartilham com seus colegas de outras nacionalidades as
dificuldades de se manter apenas com seu trabalho com Histórias em Quadrinhos.
Knut Larsson relata que a vida de um
artista dos quadrinhos não é fácil e que é preciso saber gerenciar a carreira.
Quando os livros têm uma boa vendagem consegue-se ter uma boa renda, caso
contrário é preciso buscar por outras formas de sustento, com trabalhos
alternativos. Uma opção é recorrer às subvenções. “Na Suécia pode-se candidatar
a bolsas da Sveriges Författarfond e Konstnärsnämnden. Eles variam de um ano a
vários anos de um salário mínimo. Não é suficiente viver inteiramente, mas é
uma base econômica.” Mas a competição é muito grande. Muitos artista optam pelo
ensino em escolas de arte ou uma escola de quadrinhos.
O quadrinista sueco, Fabian Göranson, que estava presente este ano no
Festival do Angoulême, acredita que o mercado de quadrinhos está dividido
em duas partes. De um lado estão os quadrinhos comerciais onde se encontram
quadrinistas que conseguem viver inteiramente de produzir quadrinhos, mas têm
liberdade artística limitada. Muitas vezes eles desenham um personagem que eles
não criaram. De outro, há artistas que trabalham com quadrinhos independentes.
Eles possuem liberdade artística, mas com poucas exceções eles também têm
outros trabalhos, geralmente em campos relacionados. O próprio Göranson trabalha editor, ilustrador e tradutor. Possui
colegas que atuam como professores de arte, animadores, etc.
O
pesquisador sueco Thomas Karlsson
reforça o depoimento dos autores e acrescenta que autores que conseguem
publicar tiras em jornais e que, desta forma, criam um público leitor cativo,
tem mais chances de atingir boas vendas em seus álbuns, o que é de certa forma
um limitador para a maioria dos artistas.
Atualmente,
um grande número de quadrinistas atua de forma independente, sendo que alguns
poucos conseguem contratos com editoras para publicarem seus quadrinhos. Para
muitos é preciso recorrer a financiamentos coletivos ou às suas próprias
economias para terem seu material publicado.
Esta
é uma das dificuldades destacadas por Cristina
Eiko, quadrinista brasileira, que publicou muitos dos seus quadrinhos
usando seus próprios recursos. Segundo ela, o caminho para quem que ter seu
material publicado é penoso, seja por financiamento coletivo ou por edital do
governo. E as coisas são simples, de acordo com Eiko, ela
teve que aprender a fazer tudo na “marra”. “A gente tenta manter uma vida
simples, para podermos ter uma reserva para imprimir a próxima HQ caso não
tenha outro recurso.” Não há exatamente uma cartilha que ajude o quadrinista a
encontrar o caminho mais fácil e rápido para ter seu material publicado.
Uma
visão mais positiva vem de Germana Viana.
Para ela “quadrinhos é missão de vida, eu nunca me senti tão completa e
realizada trabalhando em algo que não fosse fazer quadrinhos”. Mas os
quadrinhos ainda não são sua principal fonte de renda. Esta vem dos trabalhos
que ela desenvolve com letreiramento e design para empresas, em sua maioria
relacionados à área dos quadrinhos.
O
mercado dos quadrinhos, apesar de especificidades, acaba tendo o mesmo
comportamento de país para país, podemos citar o caso do premiado quadrinista
brasileiro, André Diniz, que atualmente
vive em Portugal. Para Diniz, o mercado dos quadrinhos é difícil e incerto. Há
períodos de muito trabalho e outros em que “pode ficar um bom tempo sem entrar
nada”. Além disso, falta seriedade e profissionalismo de algumas editoras, que
nem sempre levam os projetos até o final.
A mudança para Portugal não alterou muito esse estado de coisas. Segundo
André Diniz, “meu trabalho continua seguindo o mesmo caminho de quando eu
estava no Brasil”.
Os exemplos de sucesso estão em todos os lados.
Eles são as bandeiras tremulando ao vento e atraem a atenção dos jovens
talentos. Quadrinistas iniciantes acabam percebendo mais tarde que não há glamour
no mundo dos quadrinhos, mas, como em qualquer outra profissão, muito trabalho,
dedicação e sacrifício.
Ter sucesso no mercado dos quadrinhos não é fácil,
como também não é fácil se manter como artista plástico ou poeta, por exemplo.
Onde a arte está envolvida é difícil monetarizar a obra de um artista. E é
muito fácil esquecer que o mercado dos quadrinhos é um essencialmente capitalista
e que as grandes editoras têm o lucro por objetivo, o que significa exploração
do trabalho e o estímulo a uma competição nem sempre justa entre quadrinistas.
Entrevistas
Entrevista
concedida por André Diniz, em 02 fev, 2017.
Entrevista
concedida por Cecília Capuana, em 02 fev, 2017.
Entrevista
concedida por Maria Cláudia França Nogueira “Crau da
Ilha”, em 02 fev, 2017.
Entrevista
concedida por Cristina Eiko, em 02 fev, 2017.
Entrevista
concedida por Fabian Göranson, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Knut Larsson em 03 fev,
2017.
Entrevista
concedida por Germana Viana em 02 fev, 2017.
Entrevista
concedida por Rafael Cordeiro, em 02 fev, 2017.
Entrevista
concedida por Thomas Karlsson, em 02 fev, 2017.
Entrevista
concedida por Trina Robbins, em 02 fev, 2017.
Fontes
na internet
GIRARD, Quentin. “36% des auteurs de bd sont sous
le seuil de pauvreté". Disponível em: http://www.liberation.fr/auteur/12249-quentin-girard, acesso em 03 fev.
2017.
GIRARD, Quentin. “36% des auteurs
de bd sont sous le seuil de pauvreté". Disponível em: http://www.liberation.fr/auteur/12249-quentin-girard, acesso em 03 fev. 2017.