domingo, 5 de fevereiro de 2017

OS DESAFIOS FINANCEIROS DOS PROFISSIONAIS DOS QUADRINHOS

Um artigo publicado por Quentin Girard, em 02 de fevereiro de 2017, para o site Liberation, apresenta uma realidade perversa da indústria de quadrinhos franco-belga: 36% dos quadrinistas vive abaixo da linha da pobreza. A grande concorrência e a superprodução são apontados como fatores que estão levando os artistas a terem seu trabalho desvalorizado e sendo obrigados a recorrer a um segundo trabalho, para garantir seu sustento. Segundo o artigo, para as mulheres ainda é muito pior: 50% das autoras estão abaixo da linha de pobreza, 67% abaixo do salário mínimo anual."[1] 

Tais dados justificam a preocupação dos organizadores do Festival Comic Strip (Fête de la Bande Dessinée) de Bruxelas, que criaram este ano o Prêmio Atomium, com o objetivo de incentivar os jovens a investirem e permanecerem na carreira de quadrinista. A pesquisa foi feita pelos Les Etats généraux de la bande dessinée, associação fundada em 2014, e que realizou o levantamento em 2016.

A pesquisa envolveu 1500 pessoas e entre os seus resultados estão os seguintes dados (aplicados à realidade franco-belga): atualmente 27% dos autores são mulheres (o que aponta um significativo crescimento, uma vez que dados em anteriores este número estava por volta de 13%), apontando para a crescente feminização da profissão, 56% dos autores pesquisados têm menos de 40 anos. A idade média das mulheres é de 34 anos, a dos homens 41 anos.

A partir destes dados e do próprio objetivo da criação do Prêmio Atomium, resolvi fazer um levantamento, envolvendo artistas de vários países, alguns deles envolvidos com o mercado franco-belga, outros veteranos aqui no Brasil e no exterior. Todos têm muito do que falar sobre as dificuldades da profissão e, ao decorrer do texto o leitor vai perceber que a vida de quadrinista não é fácil não, m lugar algum do mundo.


O quadrinista brasileiro Rafael Cordeiro ressalta, entre outras coisas, a falta de reconhecimento da profissão no Brasil e a existência das chamadas “panelinhas” (grupos fechados) que limitam as possibilidades de se conseguir contratos com editoras. Além disso, Cordeiro acredita que para os roteiristas é ainda mais difícil conseguir a atenção das editoras, porque “Um bom desenhista, mesmo desconhecido, não leva mais de 1 minuto pra ter o talento reconhecido. Pra avaliar um roteirista, o empregador - o editor - precisa de tempo. E no tempo corrido de todos, é mais fácil dizer não”.
A veterana Maria Cláudia França Nogueira, a “Crau da Ilha”, conhecida pela sua participação na revista O Bicho, publicada durante os anos da Ditadura Militar no Brasil, conviveu com vários cartunistas que conquistaram fama nacional e se consolidaram na carreira, como Laerte, Nani, Paulo Caruso e Chico Caruso, assim como outros que acabaram tomando outros caminhos, migrando para outras profissões. Ela acredita, pela sua experiência, que “o sucesso é para poucos, que aliam grande talento, vocação para se manter focado, persistência e saber aproveitar oportunidades”.
Por mais que se afirme, por exemplo, que no Brasil as coisas são difíceis, em outros países, economicamente mais desenvolvidos, os desafios são quase os mesmos.
A italiana, Cecília Capuana, que atuou no mercado francês nas décadas de 1970 e 1980, também encontrou muitas dificuldades. Como não possuía um agente era difícil oferecer seu trabalho em grandes editoras. No início da carreira ela fez ilustrações para jornais e até para uma empresa de transportes. Segundo Capuana, “é difícil de ser livre”.
Mas ser livre foi a forma pela qual Trina Robbins conseguiu ter seu material publicado nos anos de 1970, quando participava do movimento underground, nos Estados Unidos. Segundo Trina Robbins, enquanto as grandes editoras rejeitavam seu trabalho, como quadrinista underground ela nunca teve problemas em publicar seus próprios quadrinhos, pois as editoras underground estavam contentes em publicar o que vendessem “e eles sabiam que meus quadrinhos venderiam”.
Os quadrinistas suecos compartilham com seus colegas de outras nacionalidades as dificuldades de se manter apenas com seu trabalho com Histórias em Quadrinhos. 
Knut Larsson relata que a vida de um artista dos quadrinhos não é fácil e que é preciso saber gerenciar a carreira. Quando os livros têm uma boa vendagem consegue-se ter uma boa renda, caso contrário é preciso buscar por outras formas de sustento, com trabalhos alternativos. Uma opção é recorrer às subvenções. “Na Suécia pode-se candidatar a bolsas da Sveriges Författarfond e Konstnärsnämnden. Eles variam de um ano a vários anos de um salário mínimo. Não é suficiente viver inteiramente, mas é uma base econômica.” Mas a competição é muito grande. Muitos artista optam pelo ensino em escolas de arte ou uma escola de quadrinhos.
O quadrinista sueco, Fabian Göranson, que estava presente este ano no Festival do Angoulême, acredita que o mercado de quadrinhos está dividido em duas partes. De um lado estão os quadrinhos comerciais onde se encontram quadrinistas que conseguem viver inteiramente de produzir quadrinhos, mas têm liberdade artística limitada. Muitas vezes eles desenham um personagem que eles não criaram. De outro, há artistas que trabalham com quadrinhos independentes. Eles possuem liberdade artística, mas com poucas exceções eles também têm outros trabalhos, geralmente em campos relacionados. O próprio Göranson trabalha editor, ilustrador e tradutor. Possui colegas que atuam como professores de arte, animadores, etc.
O pesquisador sueco Thomas Karlsson reforça o depoimento dos autores e acrescenta que autores que conseguem publicar tiras em jornais e que, desta forma, criam um público leitor cativo, tem mais chances de atingir boas vendas em seus álbuns, o que é de certa forma um limitador para a maioria dos artistas.
Atualmente, um grande número de quadrinistas atua de forma independente, sendo que alguns poucos conseguem contratos com editoras para publicarem seus quadrinhos. Para muitos é preciso recorrer a financiamentos coletivos ou às suas próprias economias para terem seu material publicado.

Esta é uma das dificuldades destacadas por Cristina Eiko, quadrinista brasileira, que publicou muitos dos seus quadrinhos usando seus próprios recursos. Segundo ela, o caminho para quem que ter seu material publicado é penoso, seja por financiamento coletivo ou por edital do governo. E as coisas são simples, de acordo com Eiko, ela teve que aprender a fazer tudo na “marra”. “A gente tenta manter uma vida simples, para podermos ter uma reserva para imprimir a próxima HQ caso não tenha outro recurso.” Não há exatamente uma cartilha que ajude o quadrinista a encontrar o caminho mais fácil e rápido para ter seu material publicado.
Uma visão mais positiva vem de Germana Viana. Para ela “quadrinhos é missão de vida, eu nunca me senti tão completa e realizada trabalhando em algo que não fosse fazer quadrinhos”. Mas os quadrinhos ainda não são sua principal fonte de renda. Esta vem dos trabalhos que ela desenvolve com letreiramento e design para empresas, em sua maioria relacionados à área dos quadrinhos.
O mercado dos quadrinhos, apesar de especificidades, acaba tendo o mesmo comportamento de país para país, podemos citar o caso do premiado quadrinista brasileiro, André Diniz, que atualmente vive em Portugal. Para Diniz, o mercado dos quadrinhos é difícil e incerto. Há períodos de muito trabalho e outros em que “pode ficar um bom tempo sem entrar nada”. Além disso, falta seriedade e profissionalismo de algumas editoras, que nem sempre levam os projetos até o final.  A mudança para Portugal não alterou muito esse estado de coisas. Segundo André Diniz, “meu trabalho continua seguindo o mesmo caminho de quando eu estava no Brasil”.
Os exemplos de sucesso estão em todos os lados. Eles são as bandeiras tremulando ao vento e atraem a atenção dos jovens talentos. Quadrinistas iniciantes acabam percebendo mais tarde que não há glamour no mundo dos quadrinhos, mas, como em qualquer outra profissão, muito trabalho, dedicação e sacrifício.
Ter sucesso no mercado dos quadrinhos não é fácil, como também não é fácil se manter como artista plástico ou poeta, por exemplo. Onde a arte está envolvida é difícil monetarizar a obra de um artista. E é muito fácil esquecer que o mercado dos quadrinhos é um essencialmente capitalista e que as grandes editoras têm o lucro por objetivo, o que significa exploração do trabalho e o estímulo a uma competição nem sempre justa entre quadrinistas.

Entrevistas
Entrevista concedida por André Diniz, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Cecília Capuana, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Maria Cláudia França Nogueira “Crau da Ilha”, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Cristina Eiko, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Fabian Göranson, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Knut Larsson em 03 fev, 2017.
Entrevista concedida por Germana Viana em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Rafael Cordeiro, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Thomas Karlsson, em 02 fev, 2017.
Entrevista concedida por Trina Robbins, em 02 fev, 2017.
Fontes na internet
GIRARD, Quentin. “36% des auteurs de bd sont sous le seuil de pauvreté". Disponível em: http://www.liberation.fr/auteur/12249-quentin-girard, acesso em 03 fev. 2017.



[1] GIRARD, Quentin. “36% des auteurs de bd sont sous le seuil de pauvreté". Disponível em: http://www.liberation.fr/auteur/12249-quentin-girard, acesso em 03 fev. 2017.

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