Desde que comecei a me interessar por produções do leste asiático eu tenho tido surpresas principalmente acerca de temas que são tratados nestas produções. Quando assisti W: Entre dois mundos, por exemplo, o tema do suicídio chamou minha atenção. Um tema, que por sinal, é recorrente nas produções sul-coreanas, dos dramas escolares aos históricos. Assim como livros e quadrinhos, estas produções trazem representações da sociedade que compõem o cenário e os roteiros. Humberto Eco já havia afirmado que a ficção se alimenta da realidade e isso é muito perceptível nos k-dramas.
As
questões sociais, tais como violência doméstica, o alcoolismo e o bullying são
frequentes, assim como a assédio moral no ambiente de trabalho. Quem nunca
assistiu em um k-drama o chefe ofendendo seus subordinados, obrigando-os a irem
em jantares e se embebedarem ou mesmo fazendo-os se ajoelhar e mesmo
agredindo-os fisicamente? Tais comportamento são adicionados aos enredos por
representarem situações cotidianas. As cenas podem ser ficcionais, mas a ações
são bem reais.
Mas
a questão da exploração do trabalho e de como a legislação trata os direitos
trabalhista é algo que nunca havia visto em um k-drama, pelo menos não como um
tema central. Lembro-me de alguns episódios em dramas de advogados, mas
nada muito aprofundados. Houve ainda o k-drama "Médicos em colapso"
(2024), cuja protagonista desenvolveu depressão por conta de abusos que sofreu
no ambiente de trabalho, mas sem enfoque na questão dos direitos do
trabalhador.
E
foi isso que me chamou atenção em "Meus clientes Fantasmas" (2025).
Um drama no qual um advogado trabalhista resolve casos se clientes que já
morreram e cujas mortes estavam ligadas a desrespeitos à lei e abusos de
empregadores. Não é um romance, não espere por cenas clichês ou triângulos
amorosos.
O
protagonista é Noh Mu-jin (Jung Kyung-ho), advogado que passa por
dificuldades financeiras e é obrigado a se reinventar como advogado
trabalhista. Fracassado de muitas formas ele acaba sendo contratado por uma
divindade para ajudar fantasmas ressentidos, que morreram de forma injusto por
conta do seu trabalho. É um drama trabalhista, que embora tenha uma certa
pitada de humor, trata de forma séria casos de desrespeito aos trabalhadores,
critica o neoliberalismo e a exploração das grandes empresas.
O
drama possuí 10 episódios e trata de diferentes casos envolvendo violação de
direitos trabalhistas. Nele temos exploração de jovens, que são obrigados a
trabalhar em ambientes insalubres e perigosas, sem a devida proteção, o que os
leva a morte; fundiários de uma empresa que morrem durante um incêndio, por falta
de segurança e negligência dos empregadores; um enfermeira vitima de assédio moral
no trabalho, que desenvolve depressão e tira a própria vida; trabalhadores idosos
submetidos a assédio moral para desistiram do trabalho e pedirem demissão. Os
casos são variados e, muitas vezes, chocantes.
E
nem é preciso pesquisar muito para encontrar dados assustadores sobre o
trabalho na Coreia do Sul. Uma das maiores potências do leste asiático, a
Coreia do Sul deve muito do seu sucesso econômico ao sangue e suor de seus
trabalhadores, literalmente. Pesquisas realizadas na Coreia do Sul indicam que
o ambiente de trabalho pode ter influência na saúde metal[1],
levando a desenvolvimento de casos graves de depressão e de Síndrome de Burnout[2].
Na
Coreia do Sul é comum a jornada de trabalho alcançar 12, 14 horas por dia e os
funcionários ainda trabalharem nos finais de semana, sem receber o devido
pagamento aditivo por horas extras. Há casos de jovens trabalhadores que morrem
por excesso de trabalho.[3]
Há até um nome para isso "gwarosa"
(過勞死), um termo coreano que se refere à
morte causada por excesso de trabalho, incluindo condições como ataques
cardíacos, derrames e problemas de saúde mental.
Umas
categorias mais atingidas pela gwarosa e por acidentes e doenças relativas ao
trabalho é a dos entregadores. Durante a pandemia Covid-19, eles foram os mais
afetados. Além disso, eles não possuem não são cobertos por leis trabalhistas
que garantem benefícios como o pagamento de horas extras, férias e seguro
contra acidentes de trabalho, por serem classificados como trabalhadores
autônomos.[4]
“De
acordo com o Centro para Segurança e Saúde dos trabalhadores, grupo que defende
os direitos trabalhistas, o entregador médio na Coreia do Sul trabalha 12 horas
por dia, seis dias por semana. E de acordo com dados do governo, o número de
ferimentos e acidentes de trabalho subiu 43% no primeiro semestre deste ano.”[5]
A
jornada de trabalho extensa tem como uma das consequências o alcoolismo, que
acaba engrossando dados relativos à violência doméstica e ao suicídio.
As
mulheres estão entre as maiores vitimas de assédio moral e sexual no trabalho.
São obrigadas a fazer tarefas que não dizem respeito à seu cargo (muitas vezes
tarefas domésticas) por imposição de seus chefes. Por serem mulheres são muitas
vezes ignoradas quando participam de reuniões e poucas delas conseguem conquistar
cargos de direção. “As mulheres ocupam apenas 5,8% dos cargos executivos nas
empresas de capital aberto da Coreia do Sul”. [6]
Um
relatório do Human Rights Watch referente a 2023 denuncia o fato do governo da
Coreia do Sul não ter retificado a Convenção nº 190, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que exige que os Estados ratificantes
implementem medidas para pôr fim ao assédio e à violência no local de trabalho.[7]
Ou seja, apenas se haver recursos para denúncias não há de fato ações eficazes
para acabar com o assédio no local de trabalho e a violência, seja ela moral ou
física, ainda se reproduz.
Outra questão importante é a exploração do trabalho análogo à escravidão na Coreia do Sul. Entre os trabalhadores mais explorados estão imigrantes, das Filipinas, do Nepal, Vietnã, Mongólia, Laos, Camboja, Uzbequistão e Tailândia.[8] Os trabalhadores são atraídos por ofertas de empregos e acabam sendo submetidos a todo tipo de exploração. Eles são o recuso que empresas encontram pra suprir a falta de mão de obra num país que envelhece rapidamente e cuja taxa de natalidade é superada pela de mortalidade.
[1] SILVA, Alanessa Nikole Carvalho
da . Os abusos no ambiente de trabalho e suas representações em obras
sul-coreanas (2024). Disponível em: https://sites.ufpe.br/cea/2024/06/27/artigo-de-opiniao-os-abusos-no-ambiente-de-trabalho-e-suas-representacoes-em-obras-sul-coreanas/.
Acesso em 19 jul. 2025.
[2] Um distúrbio
emocional caracterizado por exaustão extrema, estresse e esgotamento físico,
resultante de situações de trabalho desgastantes e de alta pressão
[3] GOMES, Amanda. Violação de leis
trabalhistas na Coreia do Sul (2017). Disponível em: https://www.brasileiraspelomundo.com/leis-trabalhistas-na-coreia-do-sul-361460307. Acesso
em 19 jul. 2025.
[4] Entregadores na Coreia do Sul morrem
por excesso de trabalho (2020). Disponível em: https://olhardigital.com.br/2020/12/15/noticias/entregadores-na-coreia-do-sul-estao-morrendo-por-excesso-de-trabalho/.
Acesso em 19 jul. 2025.
[5] Entregadores na Coreia do Sul morrem
por excesso de trabalho (2020). Disponível em: https://olhardigital.com.br/2020/12/15/noticias/entregadores-na-coreia-do-sul-estao-morrendo-por-excesso-de-trabalho/.
Acesso em 19 jul. 2025.
[6] MACKENZIE, Jean. “MEU chefe me mandou
lavar toalhas dos meus colegas homens”: o machismo na Coreia do Sul (2022).
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63994873. Acesso em
19 jul. 2025.
[7] HUMAN Rights Watch World Report 2023. Disponível em: hrw.org/world-report/2023/country-chapters/south-korea.
Acesso em 19 jul.
2025.
[8] RAMOS, Mariejo. Coreia do Sul é
acusada de escravidão moderna com esquema de trabalhadores sazonais (2024). Disponível
em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/coreia-do-sul-e-acusada-de-escravidao-moderna-com-esquema-de-trabalhadores-sazonais,4d0484e1240837351d7ab258f7a61f60ht9cluvi.html?utm_source=clipboard.
Acesso em 19 jul. 2025.
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