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Divulgação do filme - "A Mulher Rei". |
Fazia um bom tempo que eu ia ao cinema assistir
um filme que me marcasse, mas A "Mulher Rei" simplesmente puxou o meu
tapete, e isso num bom sentido. Eu fiquei sem chão e mergulhei de cabeça em uma
história que me fez pensar em muitas coisas. Até então, eu dizia que poucos
filmes sobre a África haviam realmente me marcado. Vou citar dois, "O
menino que descobriu o vento" e " Pantera Negra". Ambos, de
formas diferentes, descontroem muitos estereótipos que temos da África. Mas a "Mulher Rei" vai além disso.
Ele descontrói a própria história da África e das mulheres africanas, sempre
representadas como fracas, submissas, vítimas constantes de violência e
mutilação.
Um filme que traz um reino africano, em
sua plenitude, enfrentando seus inimigos, não se curvando aos homens brancos
europeus. Um filme de mulheres fortes e com um elenco composto por atrizes
experientes, muitas delas de ascendência africana, valorizando não apenas as
atrizes negras, mas atrizes negras africanas. Além disso, salvo a licença
poética característica de obra de ficção, é um filme com fortes bases
históricas e com uma pesquisa realmente bem feita. Podemos perceber isso pela
preocupação com o figurino, com a contextualização história e com a escolha e
elaboração de cenários.
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Amazonas de Daomé |
O
filme é ambientado na África, no Reino de Daomé, atual Benin, um dos reinos
mais poderosos daquele continente entre os séculos XVI e XIX. Daomé permaneceu um
reino autônomo até 1904, quando o último rei foi destronado e os franceses o anexaram
ao seu império colonial, depois de muitos anos de guerra. A história gira em
torno das "Agodjié", também chamadas de Ahosi ou Mino,
uma tropa de elite formada por mulheres guerreiras a serviço do rei. O grupo é comandado por Nanisca, personagem
de Viola Davis, que além de defender o reino de tribos inimigas e de
colonizadores franceses ainda entoa um poderoso discurso contra a escravidão de
africanos e sua venda para traficantes europeus. As "Agodjié",
inclusive, inspiram as “Dora
Milaje”, mulheres da guarda real de Wakanda no filme “Pantera Negra”.
Essas
mulheres guerreiras realmente existiram e foram temidas tanto por africanos
quanto por europeus, estes últimos as chamavam de Amazonas, uma referência ao
mito grego. Segundo registros, o primeiro regimento de "Agodjié" foi formado durante o reinado de Tassi Hangbe, a primeira e única mulher que reinou em Daomé,
no século XVIII e, também, a primeira "Agodjié". Há também relatos
que afirmam que elas eram, originalmente, mulheres caçadoras. Essas guerreiras
bem treinadas atuavam na segurança da família real, como espiãs e em batalhas.
Elas eram moças recrutadas
entre o povo de Daomé ou oferecidas, quando meninas, pelas suas famílias ao
rei. Elas podiam ser também mulheres capturadas de outras tribos e
transformadas em cativas. A essas últimas era feita a oferta de servir ao rei como
mulheres livres. Isso aparece em uma passagem do filme. Quando uma mulher de
uma tribo inimiga é questionada sobre a razão que a leva a aceitar a oferta ela
responde algo como “Aqui vou ser o caçador e não a presa”. E não deviam ser
poucas que aceitavam pois dos escravos traficados do reino, a minoria era de
mulheres.
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Grupo de durante uma visita a Paris, 1891 - Fonte: https://www.historyvshollywood.com/reelfaces/woman-king/ |
Tornar-se uma "Agodjié"
dava às mulheres um novo papel dentro de uma sociedade dominada por homens.
Elas abriam mão do casamento e dos filhos e recebendo em troca o reconhecimento
e um status social que as colocava entre as pessoas mais respeitadas e admiradas
de Daomé. Os homens comuns não podiam encará-las, inclusive as temiam, e tinham
que abrir caminho quando elas passavam. Apesar de todos os riscos e do
treinamento intenso muitas mulheres escolhiam se tornar "Agodjié",
tanto que elas representavam cerca de um terço das topas de Daomé. Além disso,
as "Agodjié" tinha influência política e participação de decisões
importantes. Em muitos reinos africanos mulheres chegaram a assumir posições de
liderança ou mesmo certo status social, mas em Daomé as mulheres encontraram-se
em uma posição de empoderamento única, o que torna ainda mais interessante sua
história, contada no filme.
O Brasil tem uma ligação
com o reino de Daomé que começou com Portugal, durante as navegações. Os portugueses
estabeleceram relações econômicas e diplomáticas na região, tendo lá construído
uma feitoria no reino de Daomé, posteriormente transformada na Fortaleza
de São João Batista de Ajudá. De
lá vieram considerável parte dos escravos trazidos para a América. Daomé
enriqueceu com esse comércio, trocando prisioneiros de guerra por mercadorias
europeus. No entanto, como tempo, o próprio povo de Daomé acabou vendido como
escravo. Não atoa a região recebeu o nome de “Costa dos Escravos”. Daomé também
tinha relações diplomáticas com o Brasil, tendo sido o primeiro Estado a
reconhecer a nossa independência, em 1922, antes mesmo dos Estados Unidos, o
que ocorreu apenas em 26 de
maio de 1824.
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Fortaleza de São João Batista de Ajudá - 1886 - Fonte: wikipedia.
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No filme, por
exemplo, o próprio rei afirmou que sua mãe havia sido vendida e que ele
procurava por ela para trazê-la de volta para África. A maior parte dos
escravizados vinha para o Brasil, daí a ligação de Daomé com nosso país. A
presença brasileira naquele reino e sua relação com o Brasil está presente no
filme.
Muitos ex-escravizados, inclusive
chegaram a retornar para Daomé. Seus descentes representam
hoje 5% da população de Benin e são chamados de agudás. Os agudás têm origens diversas e se encontram atualmente em todas as
classes sociais. Fazem parte do grupo, também, descendentes de traficantes, de
comerciantes brasileiros e portugueses estabelecidos na região. Há ainda aqueles sem
ligação ancestral com o Brasil mas que estão de alguma forma ligada aos
brasileiros e se apropriaram de seus costumes.
Eu me emocionei no filme porque senti que pela
primeira vez vou ter um material realmente rico e empoderador para poder
utilizar na escola. Trabalho com muitos alunos afrodescendentes, “A Mulher Rei”
traz não apenas uma boa contextualização da história de um reino africano como,
também, de empoderamento feminino. Essas mulheres guerreiras, na sua
ferocidade, entoam um discurso libertário. Elas agarram a oportunidade e fogem
do papel de submissão representado pelo casamento, geralmente arranjado, no
qual não seria valorizada e estaria à mercê da violência. Assistam à “A Mulher
Rei”, independente do seu gênero e da sua cor, tenho certeza que vai ser uma
ótima experiência.
Fontes
consultadas:
Agudás - de
africanos no Brasil a ‘brasileiros’ na África. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/hcsm/a/vtXQvFkGbHFSHQhs5BQv3rs/?lang=pt>.
Acesso em 02 de out. 2022.
Amazonas de
Daomé: as mulheres mais temidas do mundo. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-amazonas-daome-mulheres-temidas-mundo.phtml>.
Acesso em 02 de out. 2022.
Amazonas: O exército feminino do Reino do Daomé. Disponpível em: https://www.dw.com/pt-002/amazonas-o-ex%C3%A9rcito-feminino-do-reino-do-daom%C3%A9/a-56823669.
Acesso em 02 de out. 2022.
JIF : Je
vous Présente les Agodjié, Braves Amazones du Danhomè. Disponível em: <https://fafadi323701274.wordpress.com/2020/02/29/jif-je-vous-presente-les-agodjie-braves-amazones-du-danhome/>.
Acesso em 02 de out. 2022.
Os
guerreiros deste reino de África Ocidental eram formidáveis – e eram mulheres. Disponível
em: <https://www.natgeo.pt/historia/2022/09/os-guerreiros-deste-reino-de-africa-ocidental-eram-formidaveis-e-eram-mulheres>.
Acesso em 02 de out. 2022.
Reino do Daomé. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Reino_do_Daom%C3%A9>.
Acesso em 02 de out. 2022.
The Woman
King (2022). Disponível em: <https://www.historyvshollywood.com/reelfaces/woman-king/>. Acesso em 02 de out. 2022.