Auto retrato de Pagu - 1929 |
Das muitas personagens femininas
ligadas às artes e à literatura brasileiras o nome de Patrícia Galvão, a “Pagu”,
talvez seja o que mais se sustentou dentro da história do Brasil. Nascida em 08
de junho de 1910, Patrícia Galvão foi uma mulher além de seu tempo,
destacando-se como romancista, poetisa, jornalista, ativista política e como
pioneira nas histórias em quadrinhos.
Usou muitos pseudônimos (Solange Sohl, Zanza, Pat, Patsy, Pt., Ariel, P.G., Mara
Lobo, K.B.Luda, Irmã Paula, G. Lea, Leonnie, Gim, Brequinha, Peste, Cobra, King
Shelter), mas aquele que a imortalizou foi o de
Pagu, apelido
que recebeu do poeta Raul Bopp, que a ela dedicou uma de suas poesias. A jovem que
aos 18 anos de idade que se envolveu em um dos movimentos culturais mais
significativos do século XX no Brasil.
O
Movimento Modernista teve início nos anos de 1920 e prolongou-se até a década
de 1940. Teve como marco a Semana da Arte Moderna, em 1922, realizada em São
Paulo. O movimento propunha uma mudança estética nas artes e na literatura,
como uma forma de romper com a tradição colonialista e oligárquica do país.
Buscava-se na cultura popular a identidade nacional. Para os modernistas, era
necessário valorizar a multiplicidade étnico-cultural do país. O ano de 1922 foi marcado, também, pelo surgimento do Partido
Comunista.
Pagu participou justamente da segunda
fase do movimento modernista, quando ela já tinha seus contornos bem definidos.
Ela foi colaboradora da Revista de Antropofagia fundada por um grupo de
modernistas dissidentes, formado por Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral, Raul Bopp, Oswaldo Costa, Geraldo Ferraz e Fernando
Mendes de Almeida.
Este
grupo havia aderido a uma linguagem experimental, marcada pela contestação,
inspirada no surrealismo. Pagu colaborava
com a ilustração da revista, ao lado renomados artistas como Di Cavalcante. Encontrou no desenho e
na escrita formas de expressar suas ideias e suas emoções. Ela se tornou
aprendiz de dois nomes importantes do modernismo brasileiro, nas artes e na
literatura, Tarsília do Amaral e Oswaldo de Andrade.
Oswald
de Andrade foi um dos escritores mais importantes do modernismo brasileiro e um
dos fundadores do movimento modernista. Sua crença na liberdade na construção
do texto, a ruptura com a formalidade, influenciaram Pagu em seus escritos. Na
época em que conheceu Pagu, mantinha um relacionamento amoroso com a celebrada
pintora modernista Tarsila do Amaral.
Tarsília
foi outra referência para Pagu, que aos 18 anos encontrou no desenho uma das
suas primeiras formas de expressão artística. Seus desenhos, livres dos padrões
estéticos da época, lembram o traço de Tarsília. Mas Pagu tinha características
próprias que tornam sua produção única. Mas a parceria com a pintora duraria
pouco tempo. Tarsília encerra seu namoro com Oswald ao descobrir que ele estava
tendo um caso com a jovem Pagu.
Seus desenhos, assim como todo o
montante da sua abra, se caracterizavam pela liberdade estética. Entre 1929 e
1931 ela utilizou do desenho como uma das suas primeiras formas de expressão.
Seus poemas eram acompanhados de ilustrações, traços simples, quase infantis. As
ilustrações revelavam a Pagu que amava seus gatos, a mulher apaixonada e
sonhadora, a jovem modernista rebelde. Seus quadrinhos suas charges mostram a
jovem militante que procura no movimento comunista um ideal de justiça que
atendesse a todos, homens e mulheres.
Pagu não era uma mulher comum. Não obedecia aos estereótipos
femininos da sua época. Ela fumava, bebia e frequentava ambientes considerados
masculinos. Seu comportamento era tido como imoral,
ela falava palavrões e não temia as autoridades, muito menos os homens. A pesquisadora Maryllu de Oliveira Caixeta descreveu
Pagu como “mulher de beleza provocante, sensualmente incomum no modo como se
enfeitava, seu comportamento era um choque para a São Paulo provinciana.”
Da
união com Oswald de Andrade nasceu o jornal semanário “O Homem do Povo”, em
1931, onde Pagu publicou o que podem ser considerados uns dos primeiros
quadrinhos feitos por uma mulher no Brasil. A tira “Malakabeça, Fanika e Kabelluda”.
São conhecidas apenas oito
tiras produzidas por Pagu, mas acredita-se que ela criou muitas outras. Em seus
quadrinhos ela trouxe dois tipos de representações: a da esposa cordada e obediente,
que recebe em sua casa a sobrinha pobre, uma jovem contestadora e fora dos
padrões convencionais, como era a própria Pagu. Logo na primeira tira, Kabelluda
é apresentada para o público como um “pomo de discórdia” para o casamento dos
tios. A tia, Fanika, tinha ciúmes da moça enquanto o tio Malakabeça lhe fazia
todas as vontades.
Suas histórias em quadrinhos, assim
como seus romances e outros escritos trazem uma parte da própria vivência de Pagu,
podendo ser considerados autobiográficos. Seus quadrinhos deixavam claros os seus posicionamentos ideológicos. Pagu não se furtava de tocar em temas delicados, como o aborto, por exemplo, nem de denunciar a censura e a violência contra aqueles que defendiam ideais de esquerda.
Em uma
das tiras que Pagu publicou em 1931. Em uma delas a aventureira Kabelluda foge
de casa para ir conhecer Portugal. Meses depois ela retorna com uma filha, “Kabeludinha”.
Sua tia, Fanika, mata a criança: “Fanika moralista estragou porque Kabelluda
era solteira.”
Em uma tira, ela convence o tio a abrir um jornal
voltado para os interesses do povo. Uma referência direta a um jornal
comunista. O jornal faz sucesso, mas é fechado, assim como aconteceria com o
“Homem do Povo”, que teve apenas oito edições, de março a abril de 1931, antes
de empastelado por estudantes da Faculdade de Direito do Largo do Machado.
Em
“O Homem do Povo”, além de fazer charges e quadrinhos, Pagu também possuía uma
assinava uma coluna feminista, “A Mulher do Povo”, cujo desenho do título é de
sua autoria. Nela publicava textos onde, muitas vezes, ironizava os valores
tradicionais e a hipocrisia das mulheres e da sociedade paulistana. Por
exemplo, em sua coluna e em suas tiras Pagu
satirizou a visita de Edward, príncipe de Gales,
herdeiro do trono britânico, ao Brasil, em fins de março de 1931.
Pagu demonstrou
todo seu desgosto pela atenção que o herdeiro britânico recebeu do governo de
Getúlio Vargas e pelo deslumbramento que o príncipe despertou nas jovens
brasileiras. Numa de suas tiras ela mostra Kabelluda ansiosa pela chegada do
príncipe e no final desiludida aos conhecer os posicionamentos políticos dele.
Em algumas de suas tiras Kabelluda foi
brutalizada e presa, antecipando aquele que seria o futuro de Patrícia Galvão. Pagu foi presa 23
vezes, principalmente por sua militância no Partido Comunista. Sua primeira
prisão ocorreu em 23 de agosto de 1931, na cidade de Santos (SP), ao
participar de um comício. Durante
o protesto Pagu tentou socorrer um estivador negro, fuzilado pela polícia,
diante dos filhos. Era a primeira vez que uma mulher havia sido presa no
Brasil, por motivos políticos. Ela foi levada para o cárcere na Praça
dos Andradas, cadeia que atualmente abria um centro cultural que leva o seu
nome.
Das mulheres lembradas pela História
do Brasil, Pagu talvez tenha sido a que mais teve visibilidade. Ela já foi tema
de música, sua vida tornou-se documentário, filme e peça de teatro. Sobre ela
já foram feitos colóquios e exposições. No
meio acadêmico podemos encontrar teses, dissertações e artigos que fala da sua
vida e da sua obra. Há uma revista acadêmica que leva seu nome, os “Cadernos Pagu”.
Mas a Pagu quadrinista, esta ainda
está se revelando. De toda a sua produção, seu pioneirismo nos quadrinhos está
sendo discutido recentemente. Isto se deve, a princípio, ao maior interesse que
as histórias em quadrinhos têm despertado no meio acadêmico nos últimos anos e
pelo crescente aumento da participação feminina na produção de quadrinhos no
Brasil. Pagu tem se tornado uma referência para jovens quadrinistas e tem sido
revisitada pelas feministas.
Em
2016, 106 anos após seu nascimento, a memória de Pagu a relevância do seu
trabalho e sua militância fez com que ela fosse homenageada no dia
Internacional da Mulher, quando a Social Comics, maior site de streaming de HQs da América Latina, anunciou a criação do o selo Pagu Comics, com o objetivo de
destacar o trabalho das mulheres no mercado de quadrinhos
brasileiro. As publicações que serão lançadas pelo selo contarão exclusivamente
com histórias em quadrinhos nacionais feitas por mulheres. A iniciativa tem
como objetivo fomentar a produção delas no mercado de HQs.
Fontes consultadas
ANDRADE, Oswald; GALVÃO, Patrícia;
LIMA, Queiroz. O Homem do Povo. Março/abril, 1931. Facsimilar com introdução de
Augusto de Campos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado,
1984.
CAMPOS, Augusto. Pagu. Vida e Obra. São Paulo: Brasiliense,
1982.
CAIXETA, Maryllu de Oliveira. Pagu: “gata safada e
corriqueira”.
Letras & Letras, Uberlândia, n.20, p
59-67, 2004.
FLORES, Maria Bernadete Ramos. Dizer a infelicidade. Gênero: Niterói, v. 10, n. 2, p. 125-150, 0m. 2010 125- 150.
FURLANI, Lúcia Maria Teixeira. Croquis
de Pagu - e outros momentos felizes que foram devorados reunidos. – Santos
(SP): UNISANTA; São Paulo: Cortez, 2004.
------Pagu - Patrícia Galvão: livre na
imaginação, no espaço e no tempo. - Santos (SP): UNISANTA, 1999.
Um comentário:
Obrigado pelo texto Natânia!
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