Os
quadrinhos – a arte sequencial – são a minha mídia. Eu os vejo como a minha
mídia tanto quanto um escritor que escreve apenas com palavras ou um cineasta
que só escreve em filmes. Os quadrinhos são uma mídia palpável, singular: têm
perímetros e parâmetros; têm sua própria gramática; têm suas regras
específicas; têm seus limites, e têm potencialidades ainda pouco exploradas.
(Will
Eisner)
O livro sobre a vida de Will
Eisner, lançado no Brasil pela Editora Globo, na coleção Biblioteca Azul, em
2013, é uma das mais recentes obras que trata da vida do renomado autor de
quadrinhos, falecido em 2005.
O autor Michael Schumacher
teve uma habilidade incrível de criar pontes entre a vida de Eisner, a história
dos quadrinhos e contextualizar tudo isso de uma forma clara e até didática ao
longo da narrativa. A vida de Eisner nos ajuda a entender as mudanças, a
evolução, os problemas, altos e baixos do mercado dos quadrinhos nos Estados
Unidos.
Ao mesmo tempo em que é o protagonista,
Eisner atrai outros personagens à sua órbita, muitos deles autores de renome,
que dão depoimentos, que são citados e apresentados ao público de forma a se
ter um panorama muito mais extenso do que foi e é a indústria dos quadrinhos.
Também a contextualização
histórica é incrivelmente bem feita. A crise de 1929 praticamente abre o livro,
aborda-se o antissemitismo, a II Guerra Mundial, a Guerra da Coréia e do
Vietnã. Marcos na história dos Estados Unidos que influenciaram aquela
sociedade e ainda deixam suas marcas.
A obra de Eisner, suas
criações, sucessos e fracassos são abordados de forma minuciosa. Suas obras são
comentadas não apelas pelo biógrafo, mas ele insere resenhas, partes de
entrevistas de Eisner, expondo vários pontos de vista. Percebe-se que foi
realizado um extenso trabalho de pesquisa que faz com que o leitor entenda
melhor as motivações de Will Eisner ao criar personagens, ao iniciar novos
projetos, ao iniciar e tocar seus empreendimentos empresariais.
Aborda-se, por exemplo, as
opiniões de Eisner com relação ao racismo, sua capacidade de lidar com o mundo
empresarial sem deixar de lado seus ideais como artista; sua preocupação em dar
aos quadrinhos reconhecimento tanto como arte como quanto leitura “séria”; sua crença inabalável nos quadrinhos como
instrumento para educação, dentre tantos outros assuntos que faziam parte do
seu universo de interesses.
Eisner
foi talvez o primeiro artista dos quadrinhos a declarar publicamente (embora
não tenha sido citado de forma direta) que achava que os quadrinhos poderiam
ser mais do que simples entretenimento (SCHUMACHER, 2013:96).
Eisner pode ser visto, por
meio do livro, através de diversos ângulos: o empresário, o visionário, o pai
carinho, o filho responsável, o irmão protetor, o marido amoroso e o artista
que ainda não havia encontrado seu limite. Aliás, umas das coisas mais
encantadoras em Eisner: aos 87 anos de idade ele ainda produzia com qualidade e
ainda não havia encerrado sua carreira ois acreditava que precisa ainda
produzir uma obra definitiva.
Muitas passagens são
interessantes. Eu particularmente me senti mergulhando em um mundo novo. Nunca
tinha parado para ver os quadrinhos do ponto de vista empresarial. Normalmente
analiso o conteúdo dos quadrinhos, as representações neles contidas, mas nunca
parei para pensar que isso poderia ter alguma ligação com a indústria em si,
com a empresa.
O livro apresenta a dinâmica
dos estúdios, a questão da criação e da apropriação da arte criada. Mostra os
bastidores daquela fábrica de sonhos. Essa visão dos bastidores, proporcionada
pelo fato de que Will Eisner ter sido empresário, abriu meus olhos para certos
nuances que me fizeram compreender melhor os quadrinhos. Ponto extra para uma
leitura que por si só já foi extremamente prazerosa.
Will Eisner tinha tino para
os negócios. Com 19 anos já comandava um estúdio, aos 25 anos já conseguia
sustentar toda a família e havia construído um nome na indústria dos
quadrinhos. Como empresário procurava ser justo com seus funcionários. Como
artista tentou garantir ao máximo seus direitos sobre aquilo que criava. Passou
isso tanto para seus colaboradores mais diretos quanto para seus alunos. John
Walker, em um depoimento, exemplifica bem esse lado do Eisner, que gostava de
um contrato, mas um contrato que fosse bom para o empresário e para o artista.
Ele achava que o artista tinha que ter consciência do seu valor e do valor
daquilo que criava.
Ele
dizia “Sua arte tem valor. Sua arte vai ter valor daqui a décadas, mesmo depois
que você morrer. Você ainda não sabe, mas um cartum Walker pode vir a ser
famoso” (SCHUMACHER, 2013: 256).
Chamou minha atenção a
presença ou participação de Eisner em projetos de amigos e colegas que nem
sempre lhe foram creditados (não por má fé, claro) ou criações suas assinadas
com pseudônimos aos quais eu nunca iria relacioná-lo. Percebi que eu conhecia
um pouco mais da obra dele do que imaginava.
Uma passagem curiosa foi a
colaboração de Eisner no desenvolvimento de um personagem criado por um
ex-aluno, John Walker: o urso Snuggle (no Brasil chamado Fofo), que foi símbolo
da campanha de um amaciante de roupas. Walker mostrou a Eisner seus rascunhos e
este disse que ele deveria optar pelo urso, sendo que Eisner ajudou a dar
retoques no original, sendo o desenho definitivo entregue à empresa e aprovado.
Assim
que viu o primeiro comercial com Snuggle, Eisner ligou para Walker. “Eles
aceitaram o maldito ursinho”, disse ele, claramente feliz com sua participação
no desenho. “Eu falei que estava certo, Johnny” (SCHUMACHER, 2013: 257).
Confesso que conheço pouco
da obra de Eisner. Já li e utilizei um de seus manuais mais famosos (Quadrinhos
e Arte Sequencial) e li um de seus grandes sucessos (O nome do jogo). Alguns
colegas e amigos, com certeza, vão considerar isso uma obscenidade. Mas ao
final da leitura eu me senti interessada (e mesmo motivada) em conhecer mais,
tanto da obra quanto do autor, começando por Spirit.
O personagem mais famoso de
Eisner é um desconhecido para mim. Eu sei que Spirit é um personagem criado por Will Eisner e posso até fazer uma breve descrição dele, mas
nunca li uma revista, uma só história do personagem, mácula essa a que pretendo
apagar até o mais breve possível. Não apenas Spirit, mas outros personagens
menos conhecidos despertaram meu interesse. Acredito que possam ser acessados até
pela internet uma vez que há museus digitais de quadrinhos que disponibilizam
material mais antigo.
Ao terminar de ler o livro,
não pude deixar de procurar na minha estante o documentário Will Eisner:
profissão cartunista (por sinal citado no livro) o qual me aguarda há mais de
um ano e eu, vergonhosamente, nunca encontrei tempo para ele. Uma resolução
para este ano é preparar uma aula ou um encontro cultural para assistir ao
documentário e, quem sabe, promover uma roda de discussão?
Enfim, eu indico o livro
para quem quiser conhecer um pouco da história dos quadrinhos, para quem quiser
entender como essa mídia se consolidou nos Estados Unidos, para quem quer
tentar novas aventuras literárias, encarando os quadrinhos como uma coisa séria
e de gente grande. Will Eisner tem toda a propriedade de conduzir o leitor por
esse caminho afinal foram praticamente 70 anos dedicados a essa arte. Acho que
só isso vale a leitura do livro, afinal, quem você conhece que atuou 70 anos
numa profissão fazendo exatamente e que gosta?
REFERÊNCIA
SCHUMACHER, Michael. Will Eisner:
um sonhador nos quadrinhos. – São Paulo: Globo, 2013.
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