domingo, 20 de dezembro de 2009

O Gato de Botas vai à aula


Fábulas infantis desvendam o funcionamento de sociedades medievais e permitem refletir sobre o mundo de hoje.

Fernando Seffner e Ramiro Bicca Jr.

O que a história do gato de botas, famoso personagem dos contos infantis, revela sobre a Europa de fins da Idade Média? A narrativa gira em torno das aventuras do gato que um pobre moleiro deixa de herança para seu filho caçula. Seguindo suas pegadas, acompanhamos as artimanhas para ajudar seu novo dono, descobrimos ofícios realizados por camponeses e espiamos um pouco da vida dos nobres, “ocupados” com banquetes, cavalgadas e caçadas.

Como se vê, não faltam nesse conto infantil referências a elementos das sociedades medievais. Nos últimos anos, as relações entre História e Literatura, exploradas em inúmeros estudos e seminários acadêmicos, vêm oferecendo novas possibilidades de trabalho nas salas de aula. Mais do que pura diversão, fábulas, histórias em quadrinhos e outros textos feitos especialmente para as crianças levam os alunos a conhecer épocas e lugares bem diferentes.

Ao trabalhar com a literatura infantil, os professores se vinculam ao movimento de renovação historiográfica iniciado pela escola francesa dos Anais a partir de 1930. Desde então, as fontes históricas não ficaram mais restritas aos documentos escritos tradicionais, como leis, decretos e relatórios. Pouco a pouco, os pesquisadores foram incorporando registros diversos a seus trabalhos, como pinturas, músicas, diários pessoais, fotografias e romances. Essas fontes deixaram de ser vistas como meras “testemunhas do passado” ou provas do que realmente aconteceu. A preocupação maior passa a ser a de discutir o contexto em que elas foram produzidas.

Tanto a História como a Literatura são formas narrativas de se conhecer o mundo. Por isso, quanto mais cedo essas disciplinas forem apresentadas às crianças, maior será sua intimidade com elementos como enredo, contexto, personagens, ação e trama, facilitando assim a compreensão dos dramas sociais vividos e da nossa capacidade de interferir neles. Esses recursos também desenvolvem habilidades para a leitura, a escrita e a visão histórica das sociedades.

Claro que há uma diferença fundamental entre essas duas áreas: enquanto historiadores se baseiam na noção de veracidade, escritores e literatos mantêm-se no terreno da ficção. Mas não será produtivo encarar as coisas de forma tão rígida, opondo verdade e mentira, acontecido e não acontecido. No momento em que se considera a ficção como algo “que não é verdade”, ela se torna um obstáculo para a compreensão da realidade. Ao contrário, é preciso saber observar o quanto de verdade existe na ficção. Em muitos casos, o que aparenta ser simples recurso literário pode representar um costume da época ou um símbolo essencial para a compreensão de algum acontecimento. O importante é localizar, no texto de ficção, situações e características que incitem discussões sobre o período abordado ou o contexto em que a obra foi escrita.

As fábulas medievais permitem ao aluno se familiarizar com conceitos como cidade, campos, camponeses, castelo, rei, comércio, igreja, impostos, cavaleiros, guerra, guerreiros, povos, ministros, dinastias, casamento, sucessão, etc., que terão utilidade mais adiante, quando ele se defrontar com a disciplina de História.

Por exemplo: tanto em O gato de botas, escrito pelo francês Charles Perrault (1628-1703), quanto em fábulas como “A guardadora de gansos”, recolhida pelos Irmãos Grimm na Alemanha do início do século XIX, e “As roupas novas do Imperador”, do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), os pobres são sempre retratados exercendo algum ofício. Já os mais ricos não têm uma profissão definida, dedicando-se apenas a passeios, festas e caçadas. Ao destacar esses pontos em comum entre os três contos, pode-se discutir a idéia de que, na Idade Média, “os nobres guerreiam, o clero reza e o povo trabalha”.

A figura do ladrão, ou do personagem que engana os outros para subir na vida, é também muito comum nas fábulas medievais. Ele está na contramão de histórias como “A Cigarra e a Formiga”, de La Fontaine (1621-1695), que, embora escrita no século XVII, teria grande disseminação após a Revolução Industrial, pela apologia que faz do trabalho.

Costumes do cotidiano aparecem em todas as narrativas. O que as pessoas comem? Que animais domésticos as rodeiam? Que objetos têm em casa? Que meios de transporte utilizam? Como é o local de moradia? Onde se passam as ações principais e as ações secundárias (no campo, à beira de um rio, no castelo)?

Um elemento sempre presente nas histórias infantis, e de fundamental importância para a compreensão da vida cotidiana, é a estrutura familiar, a rede de relações consangüíneas na qual cada indivíduo está envolvido. A abordagem da rede familiar envolve, por exemplo, o estudo da figura da madrasta, muito freqüente nos contos infantis. Há, porém, outros graus de parentesco interessantes, em geral acompanhados de características específicas: o primeiro filho, a filha mais velha, a filha mais nova, a função da tia, as funções das mulheres e dos homens, o papel das aias e dos agregados e outras figuras. Ao tratar da estrutura das famílias reais, é interessante se deter no estudo dos casamentos. O rei está sempre preocupado em casar filhos e filhas e garantir descendentes. Isso pode ser aproveitado para o estudo da sucessão dinástica e seus efeitos na História. Inclusive a História do Brasil, como no episódio da União Ibérica (1580-1640). A morte do jovem rei Sebastião de Portugal abriu uma crise sucessória, pois ele não tinha descendentes. O rei espanhol Filipe II reivindicou o trono por ser neto do falecido rei Manuel I, e com isso uniu sob o seu poder os reinos de Portugal e Espanha.

Os contos de Andersen e dos Irmãos Grimm referem-se a numerosos problemas políticos derivados de casamentos, ou da falta deles, preocupação com os nascimentos e as heranças, intrigas da corte e questões de valores e preconceitos, como em “A roupa nova do imperador” e “O patinho feio”.

Romances, contos e fábulas – como toda obra de arte – estão repletos de idéias subjetivas, emoções e interpretações dos fatos. Nem por isso devem ser desqualificados por seus supostos “erros históricos”. Mesmo que não sejam documentos históricos tradicionais, ajudam a identificar e compreender elementos culturais, econômicos, sociais e ideológicos de uma época.

Por meio da contação de histórias, do uso de gravuras e da leitura de pequenos textos, o aluno desenvolve o raciocínio e a descrição mais elaborada de cenários históricos. Mais do que simples obras de arte, as peripécias do gato de botas, da guardadora de gansos, da cigarra e da formiga têm muito a contar sobre a Europa moderna e medieval. E até mesmo sobre os dias de hoje.

Fernando Seffner é professor orientador de Estágios Docentes em História na Faculdade de Educação da UFRGS e Ramiro Bicca Jr. é professor de História e Literatura no Centro Universitário Metodista/IPA-RS

Um roteiro de trabalho

O projeto “Hora do Conto/Hora da História” é uma proposta de atividades a partir da relação entre História e Literatura, trabalhando com livros infantis e infanto-juvenis. As obras literárias são abordadas, em geral, a partir de um roteiro que organiza as atividades em cinco grandes eixos, permitindo estabelecer relações entre o ficcional e o histórico:

1) Descrever e analisar situações presentes na narrativa literária escolhida pelo professor que contenham elementos que possam ser relacionados e comparados com acontecimentos reais (revoluções, guerras, conflitos, tratados, casamentos, etc.);

2) Caracterizar os personagens ficcionais presentes na obra, suas trajetórias, profissões ou ocupações, buscando, através da pesquisa, elementos de aproximação com personagens históricos (reis, revolucionários, camponeses, artistas, cientistas, etc.);

3) Identificar e analisar os espaços ficcionais construídos pela narrativa – em geral representados pelo ambiente do castelo, o ambiente da aldeia, o ambiente da floresta, etc. – e procurar relacioná-los com a realidade histórica;

4) Perceber a crítica ideológica embutida na estrutura da história (a moral, os valores da época em que se passa a narrativa), por meio da análise das falas do narrador e dos personagens, buscando relacioná-la com os valores da sociedade moderna;

5) No fim, aprofundar, via debate, uma análise mais ampla da obra escolhida, enriquecida com elementos históricos e literários, tomando o cuidado de não frisar supostos “erros históricos” – ou seja, respeitando o aspecto criativo da obra literária que serve, nessa abordagem, como uma ferramenta para melhor compreensão e/ou interpretação do contexto histórico em diversos aspectos, e não como descrição científica.

Saiba Mais:

ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
Centro de Pesquisas Literárias PUCRS. Guia de Leitura para alunos de 1º e 2º Graus. São Paulo: Cortez, 1989.
CHAVES, Flávio Loureiro. História e Literatura. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1988.
KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Ática, 1986.

Fonte: Revista de História

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