terça-feira, 30 de setembro de 2025

FREDRIC, WILLIAM E A AMAZONA. PERSEGUIÇÃO E CENSURA AOS QUADRINHOS

 


Fredric, Willian e a Amazona: perseguição aos quadrinhos, traz a biografia conjunta do psiquiatra Dr. Fredric Wertham e do psicólogo  William Moulton Marston. O primeiro, autor do livro Sedução do Inocente,  ficou conhecido por ser protagonista da famigerada companha de perseguição aos quadrinhos, que na década de 1950 representou um duro golpe à indústria dos quadrinhos nos Estados Unidos e que teve reflexos diversos países do ocidente. O segundo, ficou conhecido como criador da Mulher Maravilha, a primeira grande heroína surgida na égide da segunda onda do feminismo, durante a Segunda Guerra Mundial.

O quadrinhos nos traz uma história que busca reproduzir o contexto de criação da Mulher Maravilha e, ao mesmo tempo, o surgimento das teorias de Wertham, que condenava a leitura dos quadrinhos. Os autores buscam reconstituir os bastidores desse processo, colocando na mesa as influências que este dois homens tiveram para construírem seu legado. 

Wertham, mergulhado no mundo do crime, analisando perfis de psicopatas, imerso numa visão mais pessimista e traumatizante da realidade, perpassada  pela violência em seu estado mais perverso. Ao mesmo tempo, o psiquiatra tenta contrabalancear esta negatividade promovendo auxilio psiquiátrico a comunidades negras nos Estados Unidos. No entanto, de acordo com a narrativa da obra, ele não consegue se distanciar do fato de estar imerso na violência, e assume uma postura rígida com relação principalmente a quadrinhos de crime e de terror.

Marston, é sempre apresentado de forma otimista, um idealista que tem uma vida excêntrica com suas duas esposas (ele era adepto do poliamor). Ele encontra nos quadrinhos uma forma de popularizar suas ideias acerca das relações de gênero e do feminismo e de sua invenção, o polígrafo, comumente chamado de detector de mentiras. Suas relações familiares fazem parte do enredo, destacando sua relação com sua esposa e sua amante. 

Não acho que o termo “amante” seja correto para descrever a relação dele com Olive Byrne mas não me veio em mente outra palavra, visto que, levando em conta os paradigmas sociais da época, ela se encaixava dentro desta categoria, embora sua relação com Marston não fosse clandestina (inclusive, se alguém tiver um termo melhor que eu possa usar, aceito sugestões). Há de se destacar a forte presença de sua  esposa, Elizabeth Holloway Marston, e sua importância tanto no que tocante ao bom andamento das relações familiares quanto ao seu trabalho de Marston e à própria criação da Mulher Maravilha.

Esta HQ, de autoria dos franceses Jean-Marc Lainé (roteiro) e Thierry Olivier (arte). O roteirista, Lainé, criou a narrativa deste quadrinho a parte do seu conhecimento sobre a história dos quadrinhos estadunidenses, tendo experiências tanto como editor quanto como pesquisador de quadrinhos. A obra, apesar de possuir muitos elementos ficcionais, até porque não há como escapar deles quando se constrói uma narrativa biográfica em quadrinhos, é bem factualmente bem embasada, inclusive com  textos complementares, ao final da obra que valem a pena ser lidos.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

CHÃO ANCESTRAL - LIVRO DE POESIAS

 

A poesia teve um papel importante na minha adolescência. No Ensino Médio eu escrevia cadernos e mais cadernos de poemas. Isto foi incentivado pela minha professora de português e literatura da época, Terezinha Meneghitti. Ela chegou até a organizar um grande sarau com os alunos quando eu estava no segundo ano. Mas o tempo da poesia acabou ficando no passado. Por décadas, sem exagero, eu não tive contato mais intenso com a poesia nem como leitora, e muito menos escrevi uma simples estrofe.

Isso mudou com a minha entrada para a Academia Leopoldinense de Letras e Artes - ALLA. Participando sempre do sarau da ALLA,  que ocorre mensalmente aos sábados no Museu Espaço dos Anjos, de Leopoldina (MG). Não voltei a escrever, mas a ler e ouvir atentamente declamação de poesias. Por isso tirei alguns minutos para escrever e recomentar este livro de poesias "Chão Ancestral" (2023), que também traz a fotografia como parte da narrativa. Este livro tem como autora Margarida Montejano. 


Conheci Margarida Montejano, e na época adquiri o livro, durante a 3ª Feira Literária da Academia Lavrense de Letras, de 2024, promovida pela Academia Lavrense de Letras - ALL. Seus poemas têm como tema principal as mulheres: mulheres simples, que lutam para sobreviver no dia a dia, mulheres que são condenadas por suas ações apenas por serem mulheres. Traz ainda, em seus versos a simbologia da bruxa e a ancestralidade da "deusa".

Eu particularmente gostei bastante deste livro que fui lendo a conta-gotas e revisitando algumas partes. Selecionei uma para finalizar esta postagem.

Maria

tarde da noite Maria sai
enfrenta as ruas
os olhares de esgueio
o julgamento alheio
Maria sabe que a caminhada é longa
que há perigos à espreita
e, mesmo temendo, confia
endireita o tronco, respira fundo
floreia e segue
espanta o medo, segura a fé,
enfrenta o mundo
sente na pele o preconceito,
o machismo, a ignorância
sente no corpo a sede,
a fome e o cansaço
Maria segue
Maria resiste

Maria vence

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

ALGUMAS NOTAS SOBRE O LIVRO KIM JIYOUNG, NASCIDA EM 1982


Tenho lido poucas obras que não são relacionadas ao trabalho, principalmente ficção. Uma boa ficção ajuda muito no trabalho intelectual pois estimula a criatividade. Ficar presa apenas a textos acadêmicos pode fazer com que um(a) pesquisador(a) reduza consideravelmente seu repertório prejudicando, inclusive sua escrita. 

Sendo assim, eu resolvi separar algumas obras que estão se empilhando nas prateleiras das minhas estantes para ler, nem que fosse apenas algumas páginas diárias. Livros de poesia, romances de ficção e muitas histórias em quadrinhos, que eu comprei e ainda nem folhei. Decidi, também, colocar como meta toda semana tentar tirar um tempo para fazer um pequeno texto sobre das obras cuja leitura encerrei.

Vou começar com o livro “Kim Jiyoung, nascida em 1982”, que eu terminei de ler na semana passada. Este livro foi publicado originalmente na Coreia do Sul em 2016 e se tornou um fenômeno internacional. Foi recomendação da amiga Fabiana Rubira. A autora do livro é Cho Nam-Joo, uma ex-roteirista de televisão. Na época da publicação de seu livro, na Coreia do Sul, estava emergindo o movimento #MeToo no país. Foi uma coincidência feliz para a autora, que viu seu livro ganhando visibilidade graças ao amplo debate sobre o papel da mulher na sociedade sul-coreana, fortemente marcada pela desigualdade de gênero.

Neste livro ela narra a vida de Kim Jiyoung uma jovem sul-coreana que pode representar qualquer uma jovem comum, na faixa dos 30 anos de idade. Vinda de uma família simples, Kim Jiyoung encontrou-se sob uma grande pressão para atender as expectativas do mercado de trabalho e ao mesmo tempo da sociedade. Ela quer investir em uma carreira, conseguir um bom casamento e construir uma família.

Parece tudo muito engessado, e realmente é. Kim Jiyoung é uma das milhões de mulheres que andam na corda-bamba na Coreia do Sul. Ela tem ambições, mas vê pouco a pouco seus sonhos escapando entre seus dedos quando opta por ter o primeiro filho. Por detrás disso há uma forte pressão social. A moça o engravida e é obrigada a abrir mão da sua carreira e dos seus sonhos para viver como esposa e mãe.  

O livro vai e volta no tempo, trazendo a jovem Kim Jiyoung, suas experiências na infância e na juventude, assim como os obstáculos que teve que enfrentar em uma sociedade que ainda valoriza mais os homens, seja como filhos ou como trabalhares. Na Coreia do Sul, muito mais do que no Brasil, e aí podemos destacar a influência do confucionismo naquele país, os homens ainda são acima das mulheres, até na própria família. Era muito comum, por exemplo, as irmãs começarem a trabalhar cedo para pagar os estudos dos irmãos. Em tempos mais antigos, as mulheres nem mesmo podiam comer na mesma mesa que os homens e nem mesmo partilhar da mesma comida.

Uma coisa que me chamou atenção neste livro, é que a autora teve a preocupação de inserir dados retirados de artigos científicos, de matérias jornalistas e indicadores estatísticos. É uma forma de embasar a história de vida da protagonista e chamar atenção para os obstáculos que as mulheres têm que enfrentar, da infância à vida adulta.  Entre estes dados estão aqueles relacionados à questão de desigualdade de gênero e sobre o mercado de trabalho.

A saúde mental é outra questão que o livro aborda, resultado de todos esta pressão social que se coloca sobre as mulheres. Kim Jiyoung passa a  frequentar um psiquiatra após ter sua criança, sentindo-se perdida e sem perspectivas de futuro. A maternidade é apresentada como sendo o fim  da possibilidade de acessão profissional pois, apesar de existir licença maternidade, as mulheres são levada a desistir de seus empregos e voltar para sua posição original, após alguns anos, é muito raro. 

Muitas mulheres que têm filhos optam por empregos de meio período, descartando sua formação universitária e sua experiência profissional. Aí alguém pode dizer: "Ah, mas ela não precisa fazer isso!". Talvez para quem viva no Brasil e em outros países ocidentais isso possa ser uma possibilidade, e temos muitos exemplo no nosso dia a dia, mas lá na Coreia do Sul a coisa não é bem assim. Não são todas que conseguem permanecer em seus empregos após ter filhos e mesmo aquelas que retornam podem ainda abandonar o trabalho devido ao acumulo de responsabilidades profissionais e domésticas.

Um drama recente, "A cidade e lei" (2025), traz uma situação semelhante quando uma advogada, Bae Mun Jeong, interpretada pela atriz Ryu Hye Young,  engravida e procura se informar sobre sua licença maternidade (ou licença parental). Ela ouve do chefe que, nestes casos, o normal é se demitir. Ela não aceita a situação e busca manter seu direito adquirido por lei: de afastar, ter seu(ua) filho(a) e retomar às suas atividades profissionais ao fim da licença. Mesmo sendo advogada ela tem muita dificuldade para conseguir, reproduzindo uma situação que afeta ainda em 2025 muitas mulheres naquele país. Aliás, a roteirista do drama tem formação em advocacia, o que dá uma certa profundidade à experiência desta personagem em particular.

Tanto o livro quanto nesta série  podemos perceber que mulheres que se casam são vistas como um problema, pois eventualmente podem engravidar e interromper suas tarefas. O retorno é visto como inviável, e muito disso se deve à grande competitividade. Um dos dados que a autora apresenta é justamente sobre essa questão, em 2009 "quatro em cada dez mulheres trabalham sem a garantia de licença maternidade"(p. 93). 

A mesma sociedade, que atualmente vive uma crise séria de crescimento demográfico, quer que as mulheres casem e tenham filhos, mas acabam obrigando-as a escolher entre família e profissão, como se não houvesse um meio termo (aquele encontrado pela advogada da série que eu citei). Como a autora gosta de inserir dados estatísticos e informações retiradas de fontes científicas, vou finalizar o texto com alguns dados atuais com relação às mulheres na Coreia do Sul.

"A partir da década de 2010, mais mulheres optaram por permanecer solteiras ou casadas e sem filhos. Políticas familiares como creche e licença parental não foram suficientes para tornar o trabalho e a criação dos filhos compatíveis em geral e, portanto, não tiveram os efeitos desejados sobre a fertilidade e o emprego feminino. Os efeitos das intervenções políticas variam com base em fatores como a posição das mulheres no mercado de trabalho e o acesso a programas de apoio, como creches de qualidade. A análise indica que, até que o emprego e a maternidade possam ser combinados de forma razoável para a maioria das mulheres, o custo alternativo da maternidade permanecerá alto e a fecundidade permanecerá baixa ou cairá ainda mais" 

(Women’s employment and fertility in Korea. OECD. 18 October 2024. Disponível em: https://www.oecd.org/en/publications/women-s-employment-and-fertility-in-korea_ac53879e-en.html Acesso em 25 set. 2025).