Tenho lido poucas obras que não
são relacionadas ao trabalho, principalmente ficção. Uma boa ficção ajuda muito no trabalho intelectual pois estimula a criatividade. Ficar presa apenas a textos acadêmicos pode fazer
com que um(a) pesquisador(a) reduza consideravelmente seu repertório
prejudicando, inclusive sua escrita.
Sendo assim, eu resolvi separar
algumas obras que estão se empilhando nas prateleiras das minhas estantes para
ler, nem que fosse apenas algumas páginas diárias. Livros de poesia, romances de ficção
e muitas histórias em quadrinhos, que eu comprei e ainda nem folhei. Decidi,
também, colocar como meta toda semana tentar tirar um tempo para fazer um pequeno texto sobre das obras
cuja leitura encerrei.
Vou começar com o livro “Kim Jiyoung, nascida em
1982”, que eu terminei de ler na semana passada. Este livro foi publicado originalmente na Coreia do Sul em 2016 e se tornou um fenômeno internacional. Foi recomendação da amiga
Fabiana Rubira. A autora do livro é Cho
Nam-Joo, uma ex-roteirista de televisão. Na época da publicação de seu livro, na Coreia do Sul, estava emergindo o movimento #MeToo no país. Foi uma coincidência feliz para a autora, que viu seu livro ganhando visibilidade graças ao amplo debate sobre o papel da mulher na sociedade sul-coreana, fortemente marcada pela desigualdade de gênero.
Neste livro ela narra a vida de Kim Jiyoung uma jovem sul-coreana que pode representar qualquer uma jovem comum, na faixa dos 30 anos de idade. Vinda de uma família simples, Kim
Jiyoung encontrou-se sob uma grande pressão para atender as
expectativas do mercado de trabalho e ao mesmo tempo da sociedade. Ela quer investir em uma carreira, conseguir um
bom casamento e construir uma família.
Parece tudo muito engessado, e
realmente é. Kim Jiyoung é uma das milhões de mulheres que andam na corda-bamba
na Coreia do Sul. Ela tem ambições, mas vê pouco a pouco seus sonhos escapando entre seus dedos quando opta por ter o primeiro filho. Por detrás disso há uma forte pressão social. A
moça o engravida e é obrigada a abrir mão da sua carreira e dos seus
sonhos para viver como esposa e mãe.
O livro vai e volta no tempo, trazendo a
jovem Kim Jiyoung, suas experiências na infância e na juventude, assim como os obstáculos que teve que enfrentar em uma sociedade que ainda valoriza mais os homens, seja como filhos ou como trabalhares. Na Coreia do Sul, muito mais do que no Brasil, e aí podemos destacar a influência do confucionismo naquele país, os homens ainda são acima das mulheres, até na própria família. Era muito comum, por exemplo, as irmãs começarem a trabalhar cedo para pagar os estudos dos irmãos. Em tempos mais antigos, as mulheres nem mesmo podiam comer na mesma mesa que os homens e nem mesmo partilhar da mesma comida.
Uma coisa que me chamou atenção neste livro, é que a autora teve a preocupação de inserir dados retirados de artigos científicos, de matérias jornalistas e indicadores estatísticos. É uma forma de embasar a história de vida da protagonista e chamar atenção para os obstáculos que as mulheres têm que enfrentar, da infância à vida adulta. Entre estes dados estão aqueles relacionados à questão de desigualdade de gênero e sobre o mercado de trabalho.
A saúde mental é outra questão que o livro aborda, resultado de todos esta pressão social que se coloca sobre as mulheres. Kim Jiyoung passa a frequentar um psiquiatra após ter sua criança, sentindo-se perdida e sem perspectivas de futuro. A maternidade é apresentada como sendo o fim da possibilidade de acessão profissional pois, apesar de existir licença maternidade, as mulheres são levada a desistir de seus empregos e voltar para sua posição original, após alguns anos, é muito raro.
Muitas mulheres que têm filhos optam por empregos de meio período, descartando sua formação universitária e sua experiência profissional. Aí alguém pode dizer: "Ah, mas ela não precisa fazer isso!". Talvez para quem viva no Brasil e em outros países ocidentais isso possa ser uma possibilidade, e temos muitos exemplo no nosso dia a dia, mas lá na Coreia do Sul a coisa não é bem assim. Não são todas que conseguem permanecer em seus empregos após ter filhos e mesmo aquelas que retornam podem ainda abandonar o trabalho devido ao acumulo de responsabilidades profissionais e domésticas.
Um drama recente, "A cidade e lei" (2025), traz uma situação semelhante quando uma advogada, Bae Mun Jeong, interpretada pela atriz Ryu Hye Young, engravida e procura se informar sobre sua licença maternidade (ou licença parental). Ela ouve do chefe que, nestes casos, o normal é se demitir. Ela não aceita a situação e busca manter seu direito adquirido por lei: de afastar, ter seu(ua) filho(a) e retomar às suas atividades profissionais ao fim da licença. Mesmo sendo advogada ela tem muita dificuldade para conseguir, reproduzindo uma situação que afeta ainda em 2025 muitas mulheres naquele país. Aliás, a roteirista do drama tem formação em advocacia, o que dá uma certa profundidade à experiência desta personagem em particular.
Tanto o livro quanto nesta série podemos perceber que mulheres que se casam são vistas como um problema, pois eventualmente podem engravidar e interromper suas tarefas. O retorno é visto como inviável, e muito disso se deve à grande competitividade. Um dos dados que a autora apresenta é justamente sobre essa questão, em 2009 "quatro em cada dez mulheres trabalham sem a garantia de licença maternidade"(p. 93).
A mesma sociedade, que atualmente vive uma crise séria de crescimento demográfico, quer que as mulheres casem e tenham filhos, mas acabam obrigando-as a escolher entre família e profissão, como se não houvesse um meio termo (aquele encontrado pela advogada da série que eu citei). Como a autora gosta de inserir dados estatísticos e informações retiradas de fontes científicas, vou finalizar o texto com alguns dados atuais com relação às mulheres na Coreia do Sul.
"A partir da década de 2010, mais mulheres optaram por permanecer solteiras ou casadas e sem filhos. Políticas familiares como creche e licença parental não foram suficientes para tornar o trabalho e a criação dos filhos compatíveis em geral e, portanto, não tiveram os efeitos desejados sobre a fertilidade e o emprego feminino. Os efeitos das intervenções políticas variam com base em fatores como a posição das mulheres no mercado de trabalho e o acesso a programas de apoio, como creches de qualidade. A análise indica que, até que o emprego e a maternidade possam ser combinados de forma razoável para a maioria das mulheres, o custo alternativo da maternidade permanecerá alto e a fecundidade permanecerá baixa ou cairá ainda mais"
(Women’s employment and fertility in Korea. OECD. 18 October 2024. Disponível em: https://www.oecd.org/en/publications/women-s-employment-and-fertility-in-korea_ac53879e-en.html Acesso em 25 set. 2025).