No
início da República ocorreu uma polêmica envolvendo o jurista Rui Barbosa que,
quando Ministro da Fazenda durante o governo de Deodoro da Fonseca, teria
ordenado a queima em praça pública dos arquivos da
escravidão, em 1889. Arquivos estes que continham os nomes e informações de escravos
e de quilombos.
Defensores de Rui Barbosa contestam o fato, e afirmam que o
jurista não ordenou tal ação. Eles podem até estar certos e talvez Rui Barbosa
tenha sido tão vitima quando os ditos arquivos, cujas cinzas foram carregadas
pelo vento. Mas é fato que muitos arquivos sobre a escravidão se perderam após
o a abolição e com eles muitos indivíduos também perderam sua identidade. Os anos que se seguiram ao fim da escravidão
foram de reconstrução desta identidade.
Muitos ex-escravos devem ter sentido o choque de estar em uma
sociedade que não se definia mais pelo fato de ser ou não livre. Perdidos neste
novo mundo muitos deles ficaram entrincheirados entre passado e futuro. Para o
mais românticos um recomeço, a chance de uma nova vida longe das senzalas e das
chibatas. Para os mais céticos trocava-se um passado de trabalho e
sofrimento por um futuro marcada pelo preconceito e
a exclusão.
Tal reflexão trouxe-se à mente um poema da escritora e
poetiza Carolina Maria de Jesus, que sintetiza a situação do negro, mais de
meio século após a abolição
MUITAS FUGIAM AO ME VER
Muitas fugiam ao me ver
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia
Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto
Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia
Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto
Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.
Carolina
Maria de Jesus, em Antologia pessoal. (Organização
José Carlos Sebe Bom Meihy). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
Mais do que isso, a ideia de apagar a escravidão da memória
nacional, a queima de arquivos, aponta para uma tendência: a pouca ou quase
nenhuma preocupação com a preservação, seja do patrimônio cultural, seja da
informação produzida ao longo dos anos. O Brasil não tem uma tradição de preservação da
memória. De fato, parece que estamos fadados a optar muitas vezes pelo
esquecimento.
Paul
Ricoeur chama a atenção para os abusos advindos da manipulação da memória e do
esquecimento pelos detentores do poder. A memória manipulada leva à
fragilização da identidade coletiva. No processo de colonização da memória são
escolhidos os monumentos que devemos preservar, os heróis que devemos honrar e
informação que devemos esquecer.
A
escravidão, ditadura e movimentos populares são alguns dos temas que são
constantemente ameaçados pelo esquecimento. Exalta-se a bravura de Palmares e
se esconde a exclusão do negro da sociedade. Por várias décadas, por exemplo,
foi tabu falar sobre a Revolta da Chibata, movimento ocorrido dentro da Marinha
brasileira, liderada por negros e mulatos, como João Cândido. Aqueles que
tentaram tirar das sombras a memória da revolta foram duramente reprimidos. Foi preciso
quase um século para que a Marinha brasileira reconhecesse a importância do
movimento.
Ao
longo da nossa história centenas de milhares de brasileiros foram massacrados
por forças oficiais por terem se levantando contra a exploração e a miséria. A
memória manipulada construiu uma história, contatada e recontada ao longo do
século XX, onde estes cidadãos foram tratados como párias, loucos ou fanáticos
e seus algozes como heróis. O que não pode ser esquecido é manipulado.
Somos
por vezes forçados ao esquecimento e quando isso não é possível cria-se uma
memória manipulada que produz uma identidade fragilizada, onde os significados se
perdem, assim como se perde a nossa capacidade de questionar, dialogar, de
reconhecer o valor da nossa herança, seja ela intelectual ou cultural.
Agora,
no tempo presente, a manipulação da memória nunca foi tão intensa. São
constantemente relatados casos de professores hostilizados impedidos de debater
sobre temas como tortura e o autoritarismo. Já foram flagrados descartes irregulares
de arquivos da ditadura, com o objeto de se encobrir o passado, de apagar a
memória e de se impedir a construção de uma história não manipulada. Até Paulo Freire tem sido vítima desse processo: querem lhe tirar o título de Patrono da Educação Brasileira, excluindo da história a memória do filósofo e educador que tano lutou por uma escola inclusiva e de qualidade.
O
tempo se torna inimigo da memória e da história uma vez que nosso passado está
constantemente ameaçado pelo esquecimento, nosso presente marcado pela
manipulação e as projeções para o futuro cada vez mais incertas e voláteis.
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