quinta-feira, 26 de outubro de 2017

UM DUELO ENTRE SERPENTES EM LEOPOLDINA, EM 1887, E A BUSCA PELA CURA PRA O VENENO OFÍDICO NO SÉCULO XIX


Eu gosto de visitar sempre que tenho oportunidade a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde se encontram vários jornais de Leopoldina e região digitalizados. Busco neles inspiração para algum possível texto pra o blog ou mesmo para um artigo sobre História Local. Algumas vezes, eu me deparo com curiosidades, como foi o caso da morte de Michael Jackson, em 1856.

Esta semana tirei para ler o periódico Pharol, de Juiz de Fora (MG), e não é que eu achei uma notícia muito interessante? Quase um caso de pescador: a luta entre duas serpentes enormes no centro da cidade de Leopoldina (MG), em 1887. 

Leia a transcrição da notícia:

Diz uma folha, que temos à vista, que no dia dois do corrente, na Praça da Estação, na cidade de Leopoldina, atraía a atenção pública uma enorme cobra caninana, que tratara luta de morte com uma surucucu. A primeira saiu vencedora, engolindo a segunda pela cabeça.

Durante meia hora a caninana esteve imóvel, conservando fora da boca metade do corpo da adversária; depois, de um jato engoliu-a e enroscou-se, formando enorme rodilha sobre a calçada.

O major Botelho, da empresa telefônica, recolheu a caninana a uma gaiola de arame onde o réptil tornou-se objeto de admiração dos transeuntes[1].

Devo reconhecer fiquei surpresa com o desfecho da disputa: uma caninana[2] comendo uma surucucu[3]. Ou seja, uma das cobras mais mansas da América, devorando uma das mais venenosa e perigosas de todas. Tipo de coisa que só acontece em Leopoldina!

Ao que parece estes grandes répteis eram bom comuns na nossa região. O Leopoldinense noticiou, anos antes, o aparecimento de uma surucucu na vizinha cidade de Ubá: “Em Ubá matou-se em meio à rua mais pública e populosa surucucu de dois metros e 50 cm de cumprimento; pesava quase 15 quilogramas!”[4]

Voltando ao episódio narrado, reparem que o major Botelho optou por recolher a cobra, viva. Algo que não aconteceu em Ubá, onde a surucucu de quase três metros foi morta. Eu tenho, particularmente, uma teoria sobre isso. A Caninana não é um cobra mortífera e, portanto, não representava perigo para a população. De fato ela acabou eliminando a ameaça da de uma surucucu, que poderia ter feito uma ou mais vítimas na cidade. A cobra vitoriosa, em processo de digestão tornou-se “objeto de admiração”. Afinal, era um animal grande e exótico, um chamariz para quem quiser observar de perto uma serpente sem correr riscos.

Em Juiz de Fora, alguns anos antes, em 1884, a casa de ferragens de Carlos Montreuil anunciou durantes meses a presença de uma jiboia de “15 palmos” que era “exposta gratuitamente” naquele estabelecimento[5]. A cobra, não peçonhenta, era visivelmente utilizada para atrair visitantes e potenciais clientes para aquele estabelecimento.


No século XIX as receitas para combater o veneno das cobras eram os mais diversos. O Pharol fala das “Favas de Cobra”, usadas na ilha do Marajó para cuidar de animais e pessoas picadas por cobras como a cascavel.[6] O Pharol reproduz uma reportagem do Jornal do Commercio que fala do uso do suco de limão azedo para tratar a picada de cobra que “desde muito tempo é empregado em algumas fazendas das províncias do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e outras”, inclusive em caso de “mordedura de jararaca".[7]

Acidentes ofídicos eram muito comuns na zona rural, principalmente envolvendo escravos. Por isso a busca de uma cura não cessava. É possível perceber que os jornais se dispunham a divulgar todo tipo de prática, muitas vezes validada por médicos. Como o caso de Barra Mansa (RJ), onde escravos picados por cobras eram tratados com permanganato de sódio[8]. Outro remédio milagroso para mordida de cobra, noticiado pelo Pharol, era feito a base de pimenta malagueta.

Contra o vírus venenoso da cobra, qualquer que seja a sua espécie, a pimenta malagueta é um remédio heroico. Dá-se às pessoas mordidas da seguinte forma:

Machuca-se uma mão cheia de pimentas malaguetas, dilue-se-as na água e se dá a beber ao doente, com cascas e sementes em volta.

Outra porção igual é machucada e posta sobre a mordedura da cobra.
Repete-se o remédio duas ou três vezes com intervalo de 2 ou 3 horas.

Algumas pessoas que tem testemunhado curas operadas com esse remédio em indivíduos já muito prostrados pela ação do vírus maléfico, dizem que tais indivíduos ao engolirem a beberagem, sentem logo um alívio imenso, dizendo depois que essa beberagem lhes pareceu água gelada. Tal é a escandescência produzida pelo veneno da cobra no organismo.[9]

Apesar dessas práticas médicas terem sido reproduzidas no Brasil durante boa parte da nossa história, o tratamento para a peçonha das serpentes só daria seus primeiros passos a partir de 1890, com a descoberta da soroterapia, por Emil Adolf Von Behring (1854-1917) e Kitasato Shibasaburo (1853-1931)[10]. Em 1894 veio a descoberta da soroterapia antiveneno. Na pesquisa por um soro mais eficiente, destacou-se o mineiro Vital Brazil, que após muitos estudos, em 1896, veio a confirmar sua teoria de que para cada tipo de veneno e cobra é necessário um soro antiofídico específico. Pela primeira vez tínhamos um produto realmente eficaz para o combate o veneno de cobra.

De peçonha mortal e maléfica o veneno da cobra acabou se tornando importante objeto de estudos pra a cura de muitas doenças. Em 1933, a Gazeta de Leopoldina traz a notícia dos avanços do veneno de cobra no tratamento de doenças como o câncer.[11] Na edição seguinte, o jornal fala da reabilitação da serpente, dando destaque ainda maior às contribuições do veneno de cobra no combate a doenças[12].





[1] Pharol. Juiz de Fora, 18 de maio de 1887, m. 113,  p. 01.
[2]A cobra caninana é comum em locais como América do Sul e América Central, pode também ser conhecida como cainana, arabóia, jacaninã, cobra-tigre, entre outros nomes atribuídos a ela. É uma cobra imensa, que pode chegar a medir até os quatro metros de comprimento, mas a maioria das cobras caninanas mede em torno de dois metros e meio de comprimento. Ela é considerada uma cobra mansa. Além destas características, a cobra caninana não possui veneno algum, sendo inofensiva para humanos e outros seres. COBRA Caninana – Tudo sobre cobras. Disponível em: http://cobras.blog.br/especies/cobra-caninana, acesso em 25 out. 2017.
[3] A surucucu (Lachesis muta) é a maior cobra peçonhenta da América do Sul e uma das maiores do mundo, pertence à família das Veperidae e à ordem Squamata. Este animal pode atingir até 4,5m de comprimento e suas presas medem 3,5cm. No Brasil é também conhecida como surucucu pico-de-jaca.Vive em florestas densas principalmente na Amazônia, mas conhece-se registros na literatura da presença desse animal até em áreas isoladas de resquícios de Mata Atlântica. SURUCUCU, a maior cobra venenosa. Disponível em: http://portalamazonia.com.br/amazoniadeaz/interna.php?id=1060, acesso em 25 out. 2017.
[4] O leopoldinense. Leopoldina, 18 de março de 1883, n12, p. 02
[5] Pharol Juiz de Fora, 5 de abril, 1884, n. 39, p.03.
[6] Fava de Cobra. Pharol. Juiz de Fora, 16 de fevereiro, 1882, n. 20, p.02.
[7]  O succo do limão. Pharol, Juiz de Fora, 24 de outubro de 1882, m. 124, p. 02.
[8] Pharol, Juiz de Fora, 14 de novembro de 1882, m. 132, p. 02.
[9] A pimenta malagueta e o veneno da cobra. Pharol, Juiz de Fora, 3 de novembro,1884 n.127, p.02.
[10] CUNHA, Luis Eduardo Ribeiro da.  Soros antiofídicos: história, evolução e futuro. Journal Health NPEPS. 2017. Disponível em: http://bit.ly/2iCwgfM, acesso em 26 out. 2017.
[11] O veneno ofídico no tratamento do Câncer. Gazeta de Leopoldina. Leopoldina, 25 de julho de 1933, n. 80, p. 01.
[12] Rehabilitação da serpente. Gazeta de Leopoldina. Leopoldina, 26 de julho de 1933, n. 81, p 02.

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