Entrevista
a seguir foi realizada no dia 26 de janeiro de 2015. Na verdade é uma parte
dela, que eu traduzi (então peço desculpas antecipadas caso o texto não fique
totalmente claro) que acredito seja de relevância
geral.
Chantal é muito direta nas suas respostas, é pragmática e não “papas na língua”. Deixa
bem claro o que pensa sobre a situação atual dos quadrinhos na França, seja sua
utilização pedagógica, sua tendência editorial e a participação das mulheres.
Ela não tem uma visão “cor de rosa” sobre o futuro da indústria do quadrinhos, no que tange ao engajamento político e social dos autores e autoras, privilégio
de quem tem uma larga experiência construindo uma carreira onde não faltaram
obstáculos.
*****
Natania Nogueira - Dentro da sua experiência profissional, como a senhora avalia o
potencial político e pedagógico das Histórias em Quadrinhos?
Chantal Montellier - Se eu me recordo dos números, ao longo de 2014 mais de
5000 álbuns de quadrinhos foram lançados na França. Portanto o gênero parece
prolífico e bem sucedido. Se olharmos o
conteúdo desses álbuns, eles possuem bastante diversidade dentro da qual a
política e a pedagogia são ainda minoritárias.
Os
quadrinhos são um artesanato, uma arte, que associa texto e imagem,
multiplicando desta forma suas potencialidades. A força de uma obra deste
gênero, por menor que seja, deve-se – além da sua atratividade - à sua
distribuição e difusão. Ao contrário de uma pintura ou uma escultura, um álbum
de HQ pode ser transportado consigo, ele pode ser visto e lido em toda parte,
das prateleiras das livrarias às bibliotecas, mediatecas e gibitecas públicas
ou privadas, mesmo em um consultório médico ou no transporte público. Uma HQ
pode também ser distribuída na forma de um panfleto na saída de uma empresa ou
de uma fabrica, e isso foi muito praticado durante certa época (nos anos
1970)... Daí uma sutil reação para recolocá-los
no seu lugar. Atualmente as HQs têm
servido para fins comerciais, distrair crianças e adolescentes pré e pós-púberes
e “renarcisar” alguns “bobos”[1]
com problemas de ego, daí a onda recente de autobiografias dos últimos anos (vide
uma estrutura editorial como Egocomix).
Dito isso,
este potencial político e pedagógico é próprio – em diferentes proporções – a
toda forma de expressão e não apenas aos quadrinhos.
Uma coisa
que me parece evidente, hoje em dia, é que a HQ comercial e de entretenimento domina
claramente o mercado, enquanto quadrinhos como "ferramentas" de
emancipação, de tomada de consciência, de liberação e de educação popular
estão, eu acredito, muito mal representados. O
potencial pedagógico e político desta mídia é considerável, mas relativamente
pouco e mal explorado. Também deve ser
dito que um engajamento (político, sindical, feminista) que automaticamente
reduza o público (sobretudo o jovem) não é em geral bem visto pelos editores.
Pouquíssimas
são as pessoas que, como José-Louis Bocquet da Dupuis, se atreveram a consagrar
uma coleção à redescoberta de grandes personagens históricas, muitas delas do
sexo feminino, como Marie Curie ou Rose Valland. Sem mencionar editoras como Actes
Sud ou Denoël, que me permitiram redescobrir Christine Brisset (L’Insoumise)
ou reinvestigar o caso Rey-Maupin (Les Damnés de Nanterre) e falar sobre
o que realmente aconteceu em Chernobyl (Tchernobyl mon amour), muito
distante do que foi apresentado ao público. Além disso, estamos numa época em
que o consensual e o “pensamento único” (forma inédita de totalitarismo soft) reinam
supremos e a produção sofre com isso.
N.N. - Como a senhora vê na atual geração
de mulheres cartunistas francesas o engajamento político e social? Algum nome
se destaca em especial?
C. M. - Há
mais mulheres aparecendo hoje em dia do que nos anos anteriores, mas muitas
destas autoras, na maioria trintonas, falam acima de tudo de coisas do foro
íntimo (relacionamentos entre casais ou entre mãe e filha). A despolitização me
parece bastante evidente assim como o desengajamento feminista, enquanto que os
problemas entre homens e mulheres estão longe de serem resolvidos. As HQs
chamadas de “girly” (femininas) são um exemplo claro do que eu estou
descrevendo aqui.
A única
quadrinista que mostra algum engajamento feminista (e social) na sua obra
é Catel Muller, com sua série de
álbuns sobre mulheres excepcionais, de Olympe de Gouges à Benoite Groult. Ela
recebeu o prêmio Artemísia do quadrinho feminino por essa obra. Mas Catel,
nascida em 1964, tem atualmente mais de 50 anos…
Eu
acredito que podemos dizer sem medo de errar que a sociedade patriarcal
francesa não nos permitiu ter “herdeiras”. E é o mesmo na Itália onde Cécilia Capuana também se vê afastada das
novas gerações que, ainda mais do que na França, têm muita dificuldade em se
estabelecer no mercado.
N.N. - O
engajamento das quadrinistas está ligado às ideias feministas ou simplesmente a
outras propostas políticas?
C. M. - As
“ideias feministas” não se deram bem e atualmente são mal vistas, particularmente
pelos editores de HQs. Os leitores são predominantemente homens e a sociedade regrediu em relação a estas questões devido
ao aumento do desemprego, da precariedade, da despolitização, do individualismo
e do triunfo incontestável do liberalismo, que impõe a lei de todos contra
todos, estes mesmas editores procuram surfar na onda de um imaginário
igualmente retrógrado (do meu ponto
de vista). Magia (negra), fantasmas, onirismo… histórias medievais e/ou pós-apocalípticas…
Trolls, dragões, sereias, demônios, monstros e mutantes de todos os tipos vão
de vento em popa. Tudo isso em termos de HQs de massa.
Para a
classe média alta as HQs “bobo” (da burguesia boêmia) e seu narcisismo estão
por todo lado. A sociedade e o que a constitui, suas classes, suas
instituições, suas evoluções ou involuções, são pouco exploradas, mas, bem, não
somos sociólogos, somos apenas testemunhas…
Restam os
aventureiros que encontramos nas grandes editoras com divisões dedicadas às HQs
(geralmente muito pouco desenvolvidas). No meu caso, são a Actes Sud e a Denoël
Graphique. Os responsáveis por estes setores são muitas vezes as pessoas que
conheceram o período dos anos 70/80 e que têm uma abordagem menos estritamente
comercial do que os editores mais jovens. Eles também são menos tendenciosos e
mais conscientes do jogo político.
N.N. - Dos trabalhadores da indústria dos
quadrinhos na França, apenas 10% são mulheres. A senhora acha que a indústria
dos quadrinhos ainda limita propositalmente a participação feminina ou não
existe interesse das meninas em investir na carreira?
C. M. - Eu acho que sim. Os editores de
HQs, com uma exceção, Marie Moinard da “Des ronds dans l’eau”, são homens. Eles
não se reconhecem nas imagens de mulheres. Elas os desestabilizam. Sem
mencionar o medo da castração... Um dos meus editores, o falecido John Paul
Mougin (Ed Casterman) afirmava categoricamente que "quadrinhos para
mulheres, não vendem. É uma coisa para meninos, para que eles possam masturbar
debaixo do edredom!”.
N.N. - Iniciativas como o prêmio Artemísia
vêm tirando jovens cartunistas das sombras e dando visibilidade à sua obra. Até
que ponto prêmios como a Artemísia têm seu valor reconhecido pelas editoras
francesas? Elas têm contratado mais mulheres nos últimos anos?
Nem sempre elas estão na sombra. A nossa última vencedora (2015), uma
alemã chamada Barbara Yeling já é conhecida na França, com os dois álbuns
anteriores publicados pela Actes Sud.
Sim, estão contratando um pouco mais, até onde eu sei. As editoras
gostam de prêmios, de modo geral. Mas fazemos isso acima de tudo para honrar e encorajar o
trabalho criativo das mulheres.
Obs: Agradecimento especial ao amigo Pedro Bouça, que deu um revisada na minha tradução e a deixou mais inteligível.
Obs: Agradecimento especial ao amigo Pedro Bouça, que deu um revisada na minha tradução e a deixou mais inteligível.
[1]
Bobo é uma expressão usada para designar a chamada “Burguesia Boêmia” (bourgeois
bohème) , o que seria o equivalente, a grosso modo, ao nosso “mauricinho”,
Um comentário:
Belissima entrevista, belas questoes !
Bastante articulada a Chantal MOntellier, que maravilhar ler pessoas inteligentes falando de quadrinhos e colocando questões importantes.
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