domingo, 15 de julho de 2012

ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UMA BREVE REFLEXÃO


Durante uma mesa redonda que assisti no VIII Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História, na Unicamp, uma fala da professora Maria de Fátima Guimarães (USF) chamou minha atenção. A pesquisadora afirma que somos condicionados pelo pensamento dominante a acreditar que o que deve ser preservado são os símbolos da prosperidade e do progresso, como se patrimônio fosse apenas aquilo que marca a ação da elite. É a colonização do presente pelo passado. É a elite que escolhe o que deve ser lembrado e tombado.

Daí, o interesse pela grandeza arquitetônica do monumento. Ele deve lembrar a era de ouro, período que resguarda a prosperidade local, simboliza o florescimento ou a consolidação de grupos que detêm o poder econômico ou o poder decisório. Assim, quando promovemos o tombamento de prédios públicos, palacetes, catedrais e teatros estamos preservando a memória de um grupo e não a memória de toda uma comunidade.

Os espaços da memória são muito mais amplos. Eles podem ser encontrados nos campinhos de futebol frequentados por gerações e gerações de crianças; na casa de pau-a-pique onde seu João criou seus filhos e netos, onde dona Francisca benzeu os filhos dos vizinhos e de pessoas das quais ela mal sabia o primeiro nome.

A memória em si enfrenta uma série de percalços, de interrogações, presentes na historiografia em seu todo. Seu estudo, seja a partir de testemunhos, seja a partir de relatos, apresenta questionamentos acerca do valor da narrativa – seja ela oral ou escrita – a partir do “eu”, do sujeito histórico, da(s) forma(s) como ele(a) constrói suas lembranças, interpreta passagens da sua vida e o próprio contexto em que vive: “... não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela”. [1]  

Para Paul Ricoeur o que diferencia história e memória é o fato da história ser a narrativa que se preocupa com ações importantes, ao passo que a memória trata somente de coisas cotidianas. Para o autor, toda narração é narração de uma ação e, portanto, narra ações dos protagonistas. A partir da memória podemos, assim, adentrar à narrativa cotidiana de uma forma específica e própria, impossível de ser obtida por meio da análise de um documento oficial, por exemplo.

E esta narrativa se faz, também, por meio da cultura material. O patrimônio material é formado por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis – núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais – e móveis – coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos. 

Todos estes bens são depositórios da memória uma vez que são testemunhos do passado. O reconhecimento e a valorização do património é um direito de todo cidadão assim como o uso do patrimônio deve estar de acordo com os interesses da sociedade e não uma extensão dos interesses da elite.

Tão importante quanto restaurar e preservar, por exemplo, a casa onde morou Augusto dos Anjos, é preservar o que restou de uma vila operária ou um tipo de construção rústica que tenha marcado determinado período da nossa história. A última casa da vila Arminda, que fazia parte do patrimônio ferroviário de Leopoldina foi demolida recentemente teve seu processo de tombamento interrompido. 

Para a elite ela não representava um espaço importante da memória mas, para a cidade, era o último marco de uma época, testemunho de várias mudanças pelas quais a paisagem urbanística passou no último século. Entre os que defenderam sua demolição estava o argumento vazio de que ela não apresentava nenhuma relevância ou característica arquitetônica marcante que justificasse seu tombamento. 

É importante lembrar que o Plano Diretor Participativo de Leopoldina determina que sejam previstas ações para ações para preservação e recuperação do patrimônio ferroviário, essencial na história da cidade.[2]

Vila Arminda, Hotel Gomes e a estação ferroviária
(Fonte: Jornal Leopoldinense)
Presenciamos neste caso específico a colonização da memória: o que não representa a grandeza, que não marca a prosperidade da cidade e sua elite deve ser apagada. Assim, a memória Leopoldinense, e a de inúmeros outros municípios, vem sendo selecionada. Presenciamos há décadas o um grande silêncio construído no discurso acerca do nosso patrimônio histórico e cultural. Devemos levar em conta que o discurso é a prática social de produção e nele se reflete uma visão específica de mundo determinada, diretamente relacionada a seu autor(a) e à sociedade em que vive. [3] 
Temos, entretanto, um espaço onde o silêncio das camadas não privilegiadas pode ser quebrado, o discurso pode perder suas amarras e a memória pode ganhar um sentido mais amplo: a escola. Uma escola consciente da necessidade de se preservar nosso patrimônio histórico, nossa memória.
Mesmo que os prédios sejam demolidos a memória pode sobreviver por meio de imagens e de relatos. É necessário se implementar nas escolas, no ensino de história em especial, a valorização do conhecimento cotidiano. É preciso falar do passado como algo vivido e que pode permanecer vivo por meio dos relatos escritos, orais, imagéticos. É preciso ensinar que tão importante quanto conhecer a vida de um grande escritor ou um grande político é guardar a memória do seu João e da dona Francisca e romper com este ciclo infindável de colonização do passado. A memória precisa encontrar sua emancipação e este processo deve começar por meio da educação.


[1] RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, p. 40.
[2] PLANO Diretor Participativo de Leopoldina: leitura da realidade municipal, p. 56. Disponível em http://www.camaradeleopoldina.mg.gov.br/arquivos/PlanoDiretorLeopoldina.pdf, acesso em 07/07/2012.
[3] OLIVEIRA, Geimes. Concepções de teorias do análise do discurso: da discursividade à criticidade textual. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/701059, aceso em 10/09/2011.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bem Natania! O trabalho em Leopoldina nessa área é árduo! Nosso problema não é a ênfase, ou as privilegiadas opções de preservação da elite, pois não temos nem uma coisa e nem outra.
Uma boa opção que pode ajudar a conduzir a aprendizagem nas escolas nessa linha, é a pesquisa folclórica. Quando os professores entendem a abrangência do assunto, não é difícil trabalhar com pesquisa folclórica nas escolas e os alunos gostam muito. No mais, é o que já conversamos: qualificação para os professores; educação patrimonial para os alunos...
Um forte abraço!
Claudia Conte

Natania A S Nogueira disse...

Claudia, eu acho que temos uma mentalidade elistista, sim.Veja os poucos prédios que foram tombados até hoje. Acho que o caminho é a educação. O folclore pode ser uma opção, principalmente no fundamental I e II. Agora, uma ênfase na educação patrimonial é fundamental em toda a educação básica e a gente tem que começar isso com quem é a ferramenta mais importante: o profesor. Temos que preparar melhor nossos professores e mostrar a eles que tratar certos temas não é "aumento de serviço" mas uma forma de facilitar o processo educativo. Falta um tempo para o profissional docente se atualizar, ouvir e dar opinião sobre sua prática cotidiana.