Durante uma mesa
redonda que assisti no VIII Encontro
Nacional Perspectivas do Ensino de História, na Unicamp, uma fala da
professora Maria de Fátima Guimarães
(USF) chamou minha atenção. A pesquisadora afirma que somos condicionados
pelo pensamento dominante a acreditar que o que deve ser preservado são os
símbolos da prosperidade e do progresso, como se patrimônio fosse apenas aquilo
que marca a ação da elite. É a colonização do presente pelo passado. É a elite
que escolhe o que deve ser lembrado e tombado.
Daí, o interesse pela
grandeza arquitetônica do monumento. Ele deve lembrar a era de ouro, período que resguarda a prosperidade local, simboliza
o florescimento ou a consolidação de grupos que detêm o poder econômico ou o
poder decisório. Assim, quando promovemos o tombamento de prédios públicos,
palacetes, catedrais e teatros estamos preservando a memória de um grupo e não
a memória de toda uma comunidade.
Os espaços da
memória são muito mais amplos. Eles podem ser encontrados nos campinhos de
futebol frequentados por gerações e gerações de crianças; na casa de
pau-a-pique onde seu João criou seus
filhos e netos, onde dona Francisca
benzeu os filhos dos vizinhos e de pessoas das quais ela mal sabia o primeiro
nome.
A memória em si
enfrenta uma série de percalços, de interrogações, presentes na historiografia
em seu todo. Seu estudo, seja a partir de testemunhos, seja a partir de
relatos, apresenta questionamentos acerca do valor da narrativa – seja ela oral
ou escrita – a partir do “eu”, do sujeito histórico, da(s) forma(s) como ele(a)
constrói suas lembranças, interpreta passagens da sua vida e o próprio contexto
em que vive: “... não temos nada melhor que a memória para significar que algo
aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela”. [1]
Para Paul Ricoeur o que diferencia história e
memória é o fato da história ser a narrativa que se preocupa com ações
importantes, ao passo que a memória trata somente de coisas cotidianas. Para o
autor, toda narração é narração de uma ação e, portanto, narra ações dos
protagonistas. A partir da memória podemos, assim, adentrar à narrativa
cotidiana de uma forma específica e própria, impossível de ser obtida por meio
da análise de um documento oficial, por exemplo.
E esta narrativa
se faz, também, por meio da cultura material. O patrimônio material é formado
por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza:
arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes
aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis – núcleos urbanos, sítios
arqueológicos e paisagísticos e bens individuais – e móveis – coleções
arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos,
arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.
Todos estes bens
são depositórios da memória uma vez que são testemunhos do passado. O
reconhecimento e a valorização do património é um direito de todo cidadão assim
como o uso do patrimônio deve estar de acordo com os interesses da sociedade e
não uma extensão dos interesses da elite.
Tão importante
quanto restaurar e preservar, por exemplo, a casa onde morou Augusto dos Anjos,
é preservar o que restou de uma vila operária ou um tipo de construção rústica que
tenha marcado determinado período da nossa história. A última casa da vila
Arminda, que fazia parte do patrimônio ferroviário de Leopoldina foi demolida recentemente
teve seu processo de tombamento interrompido.
Para a elite ela
não representava um espaço importante da memória mas, para a cidade, era o
último marco de uma época, testemunho de várias mudanças pelas quais a paisagem
urbanística passou no último século. Entre os que defenderam sua demolição estava
o argumento vazio de que ela não apresentava nenhuma relevância ou característica
arquitetônica marcante que justificasse seu tombamento.
É importante lembrar
que o Plano Diretor Participativo de Leopoldina determina que sejam previstas
ações para ações
para preservação e recuperação do patrimônio ferroviário, essencial na história
da cidade.[2]
Vila Arminda, Hotel
Gomes e a estação ferroviária
(Fonte: Jornal
Leopoldinense)
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Presenciamos neste caso específico a colonização da memória: o que
não representa a grandeza, que não marca a prosperidade da cidade e sua elite
deve ser apagada. Assim, a memória Leopoldinense, e a de inúmeros outros
municípios, vem sendo selecionada. Presenciamos há décadas o um grande silêncio construído
no discurso acerca do nosso patrimônio histórico e cultural. Devemos levar em conta que o discurso é a prática social de
produção e nele se reflete uma visão específica de mundo determinada,
diretamente relacionada a seu autor(a) e à sociedade em que vive. [3]
Temos, entretanto, um espaço onde o silêncio das
camadas não privilegiadas pode ser quebrado, o discurso pode perder suas
amarras e a memória pode ganhar um sentido mais amplo: a escola. Uma escola
consciente da necessidade de se preservar nosso patrimônio histórico, nossa
memória.
Mesmo que os prédios sejam demolidos a memória pode sobreviver por
meio de imagens e de relatos. É necessário se implementar nas escolas, no
ensino de história em especial, a valorização do conhecimento cotidiano. É
preciso falar do passado como algo vivido e que pode permanecer vivo por meio
dos relatos escritos, orais, imagéticos. É preciso ensinar que tão importante
quanto conhecer a vida de um grande escritor ou um grande político é guardar a memória do seu João e da dona Francisca e romper com este ciclo infindável de colonização do
passado. A memória precisa encontrar sua emancipação e este processo deve
começar por meio da educação.
[1] RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007, p. 40.
[2] PLANO
Diretor Participativo de Leopoldina: leitura da realidade municipal, p. 56.
Disponível em http://www.camaradeleopoldina.mg.gov.br/arquivos/PlanoDiretorLeopoldina.pdf,
acesso em 07/07/2012.
[3] OLIVEIRA,
Geimes. Concepções de teorias do análise do discurso: da discursividade à
criticidade textual. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/artigos/701059,
aceso em 10/09/2011.
2 comentários:
Muito bem Natania! O trabalho em Leopoldina nessa área é árduo! Nosso problema não é a ênfase, ou as privilegiadas opções de preservação da elite, pois não temos nem uma coisa e nem outra.
Uma boa opção que pode ajudar a conduzir a aprendizagem nas escolas nessa linha, é a pesquisa folclórica. Quando os professores entendem a abrangência do assunto, não é difícil trabalhar com pesquisa folclórica nas escolas e os alunos gostam muito. No mais, é o que já conversamos: qualificação para os professores; educação patrimonial para os alunos...
Um forte abraço!
Claudia Conte
Claudia, eu acho que temos uma mentalidade elistista, sim.Veja os poucos prédios que foram tombados até hoje. Acho que o caminho é a educação. O folclore pode ser uma opção, principalmente no fundamental I e II. Agora, uma ênfase na educação patrimonial é fundamental em toda a educação básica e a gente tem que começar isso com quem é a ferramenta mais importante: o profesor. Temos que preparar melhor nossos professores e mostrar a eles que tratar certos temas não é "aumento de serviço" mas uma forma de facilitar o processo educativo. Falta um tempo para o profissional docente se atualizar, ouvir e dar opinião sobre sua prática cotidiana.
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