Uma surpresa que a Netflix trouxe para mim este mês foi a série turca
"Cemitério (Graveyard)". Minha primeira série turca por sinal. A série tem duas temporadas e foi originalmente lançada em 2022. A primeira temporada tem 4 episódios, com uma média de uma hora e meia cada. A segunda em 8 episódios com uma média de 45 minutos cada. A série mostra o trabalho da Unidade de Crimes
especiais liderada pela inspetora chefe Önem Özülkü, interpretada pela fantástica
atriz Birce Akalay . A unidade da polícia turca foi criada como resposta ao
aumento dos crimes de feminicídio. Já de início percebe-se que sua criação foi
um ato político e que não se espera muito dela nem dos seus membros. Na verdade, há quem preveja seu
fracasso. Isso porque os problemas
que eles têm que enfrentar não se resumem apenas em investigar crimes de
feminicídio e capturar os criminosos. Eles também lidam com o machismo
estrutural da sociedade turca, que é constantemente denunciado
em cada episódio da série.
Aliás, o próprio nome da séria conduz a várias questões. A Unidade de
Crimes Especiais foi instalada no porão do prédio e obrigada a operar junto ao arquivo
de crimes não solucionados. O local recebe o nome de “Cemitério” e, o que no início
é visto como algo pejorativo, depois acaba ganhando um simbolismo maior, representando
a luta da equipe para impedir que crimes contra as mulheres façam parte dos “casos
não solucionados”. Eles passam, inclusive, a se autointitular equipe do “Cemitério”,
para horror de seus superiores.
Eu, particularmente, sei muito pouco sobre a Turquia e nunca parei
imaginar que em um país islamizado, e aí peço desculpas pelo meu preconceito, as
mulheres tivessem espaço não apenas para denunciar na televisão, como é o caso
da série, a violência e, menos ainda, que houvesse um movimento atuante que busca
ações concretas contra o feminicídio no país. Neste ponto devo agradecer à
Netflix que me vez pesquisar o tema. Uma das primeiras coisas que eu descobri
é que a Turquia é um estado secular, sem religião oficial, apesar da
maioria se mulçumana, e lá vigora a liberdade religiosa. No entanto, o partido atual no poder, é
islâmico e vem sendo constantemente acusado por sua inércia e tolerância com
relação à violência contra as mulheres. Além disso elas ainda possuem baixa representatividade política. O Parlamento Turco possui maioria de homens
– nas últimas eleições, em 2023, 121 mulheres garantiram assento no parlamento
com 600 membros
A série não aborda diretamente questões religiosas.
Ela foca na violência contra a mulher de forma indistinta e que leva à sua morte.
Namorados e maridos violentos, pais omissos. Casos de abusos de jovens por
parentes próximos são denunciados também. Ao investigar um caso de feminicídio,
os policiais trazem a toda uma séria de violências e gênero que perpassaram a vida
da vítima e de pessoas próximas a ela. E material para isso não falta.

Só em 2024 foram registrados 394 casos de mulheres assassinadas por
homens e mais 259 mulheres foram encontradas mortas de forma suspeita. Estes
números foram considerados recordes e apontam para aumento progressivo da violência
contra as mulheres na Turquia. Segundo os dados da We Will
Stop Femicide Platform (Vamos acabar com o feminicídio), entre as principais causas do aumento de crimes de morte contras as mulheres
esta “a falta de implementação efetiva da Lei de Proteção nº 6284, a retórica
misógina e anti-criança, a participação de grupos reacionários e intolerantes
no poder e a inadequação das políticas para as mulheres”.
A impunidade também é apontada como uma das razões.
“A Plataforma "Vamos Acabar com o Feminicídio", também conhecida ela sigla KCDP, relatou que 3.185 mulheres foram
mortas por homens entre 2008 e 2019, e pelo menos 1.499 entre 2020 e setembro
de 2024, com o número de feminicídios aumentando a cada ano. As mortes de cerca
de 1.030 mulheres também foram consideradas suspeitas.
"Mais de 1,4 milhão de mulheres relataram ter sofrido violência
doméstica entre janeiro de 2013 e julho de 2024, informou o site de
notícias Turkish Minute , citando dados recebidos do
Ministério da Família e Serviços Sociais pelo jornal diário Birgün. (Texto
traduzido)”
 |
Protestos em outubro de 2024, na Turquia. |
A questão da impunidade é um dos maiores ranços da protagonista da série, a
inspetora chefe Önem Özülkü, que constantemente se revolta com as penas leves
dadas a assassino de mulheres. Outra
razão é o discurso que aponta as mulheres como a causa dos
feminicídios e dizem: “As mulheres que são mortas são tão culpadas quanto os
homens que as matam”. Há ainda aquele pensamento de que as mulheres são também
culpadas pela sua própria morte. Este discurso apareceu em um dos episódios da
série e que foi duramente refutado com excelentes argumentos e uma boa dose de
revolta por parte dos policiais. Uma realidade, por sinal, não muito diferente do Brasil onde a vítima na maioria das vezes é culpabilizada pela violência que sofre.
As mortes correm principalmente dentro dos lares e as vitima são
esposas e filhas, “Em 2024, 280 mulheres foram mortas pelo homem com quem eram
casadas, pelo pai, filho ou parente”. E o alvo não tem sido apenas mulheres adultas
e adolescentes. Em 2024, 19 meninas
foram assassinadas pelos pais e 9 delas foram assassinadas junto com suas mães”.
Quanto ao governo, ele vê estes casos como problemas no âmbito familiar e promove
ações para proteção a família, como um todo, e não de proteção para as mulheres,
o que agrava muito mais a situação e acaba aumentando a impunidade. E assim como
acontece aqui no Brasil, a legislação criada para proteger as mulheres encontra muitos
obstáculos. Em 2024, 20 mulheres que estavam sob proteção policial foram assassinadas.
Não é à toa que a Turquia está entre os piores países do mundo em violência
contra as mulheres.
Eu poderia escrever muito mais o assunto, mas vou retomar à serie pois não
posso deixar de falar sobre a Birce Akalay, que encarna a protagonista. A forma como
ela desenvolve a personagem é perfeita. Fiz uma busca para saber mais sobre ela e
o que descobri ratificou a primeira impressão que ela me passou. De aspirante
a Miss Turquia a professora no
departamento de teatro da Universidade Haliç, ela ainda se dedica a causas
sociais, é meioambientalista e defensora dos direitos das mulheres, sendo ainda Embaixadora
da Bondade e Esperança da LÖSEV, instituição sem fins lucrativos
dedicada a crianças com leucemia. Ninguém melhor para encarnar a inspetora
chefe Önem Özülkü.
Para finalizar
gostaria de deixar aqui o trecho de um artigo sobre feminicídio na Turquia que
trabalha este conceito.
“O conceito de
feminicídio, usado já na década de 1800 para se referir ao assassinato de uma
mulher, foi reintroduzido por Radford em 1976 no Tribunal de Crimes Contra as
Mulheres como o assassinato misógino de mulheres por homens. Na década de 1970,
o conceito de feminicídio se tornou popular e foi modificado pelo movimento
feminista em um conceito político. O movimento feminista insistiu na dimensão
sexista do homicídio feminino, em contraste com o termo neutro
"homicídio". O discurso do feminicídio representa um "objetivo
político de reconhecer e tornar visível a discriminação, a opressão, a
desigualdade e a violência contra as mulheres sistemática que, em sua forma
mais extrema, culmina na morte". As definições de feminicídio e violência
contra as mulheres apresentam “características compartilhadas” . Ambas estão
enraizadas em uma cultura de “violência e discriminação contra as mulheres”,
bem como “em conceitos patriarcais de inferioridade e subordinação das mulheres.
Essas características são construídas por meio da cultura, mentalidades e
costumes e não são casos aleatórios de violência”.