domingo, 20 de julho de 2025

L’ ATELIER DES SORCIERS: A PENA ENCANTADA DE KAMOME SHIRAHAMA


Uma das exposições mais concorridas em todos os dias do 52º Festival International de Bande Dessinée de Angouleme foi “L’atelier des Sorciers : La Plume Enchantée de Kamome Shirahama”, no Hôtel Saint-Simon, uma construção que remonta ao ano de 1540, localizado no centro da cidade. Este mesmo espaço foi dedicado, em 2023, para uma exposição com a obra de a Julie Doucet, vencedera do Grand Prix de 2023. Duas mulheres com estilos diferentes mas que marcaram história em Angoulême.

Kamome Shirahama  pode não ter sido  premiada pelo festival, mas sua popularidade é inegável. A fila, todos os dias, enquanto a exposição estava acessível, parecia não ter fim. Muitos jovens, crianças e adultos, usando chapéus de cone, alguns, apesar do frio, fantasiados. Para quem não sabia o que estava acontecendo, aquela aglomeração de pessoas em uma rua estreita, esperando sua vez para entrar no Hôtel Saint-Simon poderia causar estranhamento. Comparadas as outras grandes exposições esta, possivelmente, foi uma das que teve o maior público do festival.

Kamome Shirahama se formou em Design na Universidade de Artes de Tóquio . Ela começou a fazer capas variantes e outras ilustrações e trabalhos conceituais para a Marvel Comics , DC Comics e Star Wars em 2015, depois que sua arte foi notada na New York Comic Con , trabalhando em títulos como Star Wars: Doctor Aphra , Deadpool e Batgirl and the Birds of Prey . Ela ganhou e foi indicada para vários prêmios, incluindo o Eisner Award , o Harvey Award , o Kodansha Manga Award , o Manga Taishō , o Daruma d'or manga no Japan Expo Awards , o Mangawa Award e o Prix Babeliom, sendo que em 2019 o mangá foi indicado para o prêmio de Melhor Quadrinho Jovem, no 46º FIBD de Angoulême.

Não levou o prêmio, em 2019, mas ganhou uma exposição fantásticas em 2025. O reconhecimento do público ao trabalho de Kamome Shirahama  e seu trabalho como mangaká é mais do que merecido. A exposição traz a magia da série em mangá , L’Atelier des Sorciers  (Witch Hat Atelier), iniciada pela autora em 2016 e publicada no Brasil pela Panini. O mangá de fantasia tem seu universo inspirado em Ghibli e na fantasia britânica (O Senhor dos Anéis, Harry Potter, Nárnia, etc.) revisitando seus arquétipos.


Hôtel Saint-Simon, Angoulême.

No cenário escolhido para a exposição, o hotel Saint-Simon, ajuda a mergulhar ainda mais no mundo fantástico criando por Kamome Shirahama. A entrada, as escadas de pedra em caracol e a própria disposição na qual as imagens selecionadas e as informações sobre a obra foram distribuídas, faz com que o visitante possa entrar dentro da própria história. Há rascunhos, desenhos inéditos e muito material tanto para quem é fã quanto para quem está conhecendo a obra de Shirahama.

É um mangá de muito sucesso entre os jovens, pois traz para o centro da narrativa questionamentos do papel que os jovens, em sua pluralidade, podem ter na sociedade e sobre a emancipação com relação aos adultos. Fala sobre o amadurecimento e tomada de responsabilidades sobre suas próprias ações. Por atrair um público plural, o mangá se tornou um sucesso tão grande que em julho de 2024 havia de cópias em circulação 5,5 milhões. Witch Hat Atelier é, também, um mangá apreciado pela comunidade LGBTQ+, com personagens usando roupas neutras e possuindo o casal queer. A diversidade de representações que a obra traz faz com que seus leitores sejam plurais.É um é um mangá seinen, para o público masculino jovem adulto, mas que acabou atingindo segmentos variados da sociedade.


Por fim, vale ressaltar o mangá lidera atualmente mais de 50% das vendas de quadrinhos em na França, segundo dados divulgados pelo FIBD, relativos a 2023/2024, com milhões de exemplares vendidos anualmente. Pelo menos duas grandes exposições, em espaços nobres, são reservadas para homenagear mangakás e é existe um enorme complexo dedicado ao gênero dentro do festival, a Mangá City, com 2000² dedicados ao mangá. No entanto, em 52 anos de festival, apenas dois mangakás forma receberam  o Grand Prix (prêmio máximo do festival): Katsuhiro Otomo, criador de Akira, em 2017 , e Rumiko Takahashi, conhecida pelo personagem Inuyasha, dentre outros, em 2019.

Fotos da exposição – 29 de janeiro de 2025

 
















 


POSY SIMMONS - HERSELF

 


Indo contra a corrente do individualismo contemporâneo, as histórias desenhadas por Posy Simmonds são fruto de um olhar meticuloso sobre o outro. Essa leitura refinada do período nos permite perceber melhor as nuances do nosso cotidiano” (Exposição Posy Simmons. Herself, Angoulême, 2025).

 

“Posy Simmons. Por ela mesma” foi uma das exposições mais concorridas durante o 52º FIBD de Angoulême, tanto pela obra e trajetória da autora, uma veterana entre as quadrinistas britânicas, quanto pelo fato de se tratar de laureada de 2024. Sim, estamos falando de um das (poucas) mulheres que recebeu o Grand Prix (o prémio máximo do festival) em duas 52 edições. E ela mereceu, certamente. Esta autora não é conhecida do público brasileiro, mas influenciou várias gerações de artistas britânicos e de outros países, nos quais sua obra foi traduzida, como a França.

Rosemary Elizabeth "Posy" Simmonds é uma cartunista de jornal britânica, escritora e ilustradora de livros infantis e graphic novels. Ela é mais conhecida por sua longa associação com o The Guardian, para o qual desenhou as séries Gemma Bovery (2000) e Tamara Drewe (2005–2006), ambas publicadas posteriormente como livros. Assim como Claire Bretecher usou da sátira e do humor para criar histórias que criticavam e expunham os vícios das classes médias francesas, Posy faz algo bem semelhante, mas com um estilo mais “gentil”.  

Ela cria retratos psicológicos precisos, zomba das deficiências da classe média e do cenário cultural, caricatura a seriedade e critica os desenvolvimentos sociais. Entre suas influencias literárias estão escritores como Gustave Flaubert e Charles Dickens. Suas personagens femininas têm como característica serem obstinadas. Elas não necessariamente terão um final feliz. Elas são "heroínas condenadas", como em romances góticos dos séculos XVIII e XIX, mas claro, dialogando com o presente, o moderno. Suas obras mais famosas são Tamara Drewe e Gemma Bovery (Denoël).

Nascida em 1945, a autora completa este ano 80 anos, sendo mais de 50 anos como cartunista. acrescentam mais camadas às histórias. Posy Simmonds ficou famosa nacionalmente por sua tira “The Silent Three of St. Botolph's”, que começou a aparecer no “The Guardian” em 1977 e era sobre três amigas de longa data. Mais tarde, ela publicou-o em livros e desenvolveu-o ainda mais para criar sua primeira história em quadrinhos, “True Love”. Suas outras publicações também começaram como tiras no “The Guardian”.

Simmons publicou ainda livros e quadrinhos infantis. Sua exposição traz essa longa trajetória, mostrando várias facetas da autora, sobretudo, sua preocupação com a memória. Em “Posy Simmons. Herself” temos uma imersão na história dos quadrinhos britânicos antes de chegarmos propriamente na produção da autora. Este detalhe, que pode até passar por despercebido por que está lá apenas pela autora, demonstra a importância dada por ela e pela curadoria do festival em trazer à tona a história dos quadrinhos da qual esta veterana, e porque não dizer, e pioneira faz parte.

Na exposição podemos conhecer mais sobre Posy Simmons. Seu engajamento em questões políticas, sua intimidade, sua visão de mundo e, suas mulheres, figuras tragicômicas que derrubam códigos sociais. Suas influencias também estão presentes, seja na arte ou na literatura. A exposição trouxe ainda desenhos inéditos da autora que, por sinal, abriu a exposição no dia 29 de janeiro, com uma visita guiada exclusivamente para profissionais.

Entre o material inédito da exposição estão os cadernos de Posy Simmons, nos quais podemos perceber como a autora faz sua leitura do cotidiano, sua sensibilidade ao representar em seus desenhos os destituídos e anônimos. Ao mesmo tempo ela denuncia as formas contemporâneas de alienação, dando voz aos anônimos. Pessoas comuns, pessoas que passam por privações e que muitas vezes ficam convenientemente invisíveis para a sociedade. Ela se posiciona conta o individualismo e lança um olhar meticuloso sobre o outro.

Cabe por fim acrescentar que Posy Simmons, além de profissional de grande estatura e que hoje represente uma das vozes mais fortes entre as autoras britânicas, é uma criatura dotada de grande gentiliza. Seu semblante suave e sua voz mansa deixam todos ao seu redor confortáveis. Mas não se deixem enganar por seu semblante sereno. Por detrás dele há uma mulher forte, capaz de colocar em suas obras representações da realidade política e social intensas que nos fazem questionar padrões normatizados de comportamento.

Imagens da exposição – 29 de janeiro de 2025













UMA CONSTELAÇÃO DE MULHERES


Uma das exposições deste ano do Festival Internacional de Bande Dessinée de Angoulême, na França, foi a exposição “Constellation Graphique” (Constelação Gráfica), que reuniu obra de 9 autoras espanholas que representam a nova geração de quadrinistas espanholas: Bàrbara Alca, Marta Cartu, Genie Espinosa, Ana Galvañ, Nadia Hafid, Conxita Herrero, María Medem, Miriam Persand e Roberta Vázquez. Esta exposição, embora configura dentro das exposições principais do festival, talvez não tenha sido a mais badalada ou visitada, mas certamente foi uma das mais originais que o 52º FIBD trouxe este ano. Isso porque, além de trazer um espaço aberto para a diversidade é, também, um espaço 100% destinado às mulheres, algo que em outras edições do FIBD nem sempre foi possível encontrar.

Na exposição, que foi até 16 de março de 2025, no Museu de Angoulême, a curadoria do evento destacou como um de seus pontos principais a renovação dos quadrinhos espanhóis. As autoras trazem em suas obras uma diversidade de linguagens, de registros estéticos, por meio do uso da cor, do grafismo ou da experimentação estilística e narrativa. Elas representam, desta forma, a vanguarda dos quadrinhos espanhóis, nesta segunda década do século XXI.

Este grupo de mulheres, cada uma em seu próprio estilo e abordando temas diversos, trazem-nos um olhar crítico e bem humorado da realidade da geração dos millenials, também conhecida como "Geração Y", formada por pessoas que nasceram entre os anos 1981 e 1996.  A exposição faz um raio x da sociedade espanhola, por meio do olhar de mulheres, que colocam em seus quadrinhos uma carga intensa de emoção, autocrítica, crítica social e, acima de tudo, expressando expectativas e desilusões.

O panorama cultural e profissional dos quadrinhos espanhóis passou por uma série de mudanças a partir da década de 1980, com o aumento da demanda pelo produto, o que levou ao surgimento de novos títulos e possibilitou a profissionalização de toda uma geração de autores oriundos no underground. O mercado se ampliou, como a abertura de lojas especializadas e com os primeiros festivais. As nove quadrinistas que foram escolhidas para ter sua obra exposta na exposição “Constellation Graphique” representam a geração nasceu no bojo do boom dos quadrinhos espanhóis, marcado pela dissidência estética, assim como pelo questionamento de lugares-comuns e formas canônicas de expressão, embora a estabilidade profissional permaneça um horizonte distante.

Roberta Vázquez possui um estilo que se inspira nas fontes da tradição underground, mas canibaliza ícones pop de seu contexto geracional na forma de fan art.  Vázquez tem no humor corrosivo uma marca registrada, que lhe permite realizar uma leitura implacável da sociedade líquida e da precariedade econômica que condicionam a vida dos millennials.

Marta Cartu, possui um trabalho que se aproxima com o de Jeffrey Brown, gradualmente abordando os desafios de uma história em quadrinhos conceitual, com um olhar sobre os códigos e formas da arte contemporânea. Sua obra é intimista e reflexiva, e nela a pesquisa formal é inseparável de uma meditação sobre noções e questões contemporâneas, como identidade, competitividade e autoexigência, a arbitrariedade dos papeis de gênero, aspectos utópicos, o potencial distópico das novas tecnologias e a servidão de múltiplos empregos.

Ana Galvan é a mais experiente do grupo de quadrinistas da exposição e se destaca dentro da vanguarda dos quadrinhos espanhois pela  influência de seu corpus oratório e por seu papel impulsionador nas redes de difusão de artistas de vanguarda. Galvan construiu um universo pessoal no qual a influência composicional e cromática do construtivismo russo e uma narração fria e desinteressada foram colocadas a serviço de uma leitura distópica da realidade. 

Genie Espinosa destaca-se pelos seus personagens, de formas arredondadas, que podem ser interpretadas como uma firme reivindicação de corpos não normativos. Eles introduziram nos quadrinhos uma energia urbana explosiva, salpicada de girl power. Um espírito que também é encontrado em seu trabalho no campo do design de cartazes e em murais de arte de rua, que destilam ecos dos subúrbios com a sofisticação de uma nova forma de glamour.

O trabalho de Maria Medem tende à abstração e parte de elementos mais poéticos do que narrativos, aprofundando o que ela mesma chama de estética conelse, uma abordagem formal que exige um tratamento muito específico e essencialista da linha, da cor e do texto. O artista busca a ambiguidade, refletindo a sensação de distância que o leitor percebe em personagens deslocados em meio a paisagens que amplificam a força dos elementos naturais.

Nadia Hafid trabalha junto com Marta Cartu a partir da experimentação formal por meio da composição da página é uma das características das obras de Nadia Hafid e Marta Cartu. A obra conjunta das duas autoras, exposta na exposição, são obras cerebrais e sintéticas nas quais nenhum dos elementos presentes é acidental. Hafid se afasta dos códigos hegemônicos do realismo para se aproximar da estética de um pós-modernismo seduzido pelo potencial expressivo das geometrias fractais e suas infinitas fragmentações. O resultado são quadrinhos estimulantes e vibrantes.

Bárbara Alca em sua obra retrata uma geração (a sua) perdida, decepcionada e às vezes considerada frívola e superficial. Suas histórias hilárias exalam um componente autobiográfico misturado à cultura pop que a torna única em sua geração. Seu trabalho foi publicado nas revistas El País, El Jueves e Ruby Star.

Herrero consolidou nos quadrinhos de vanguarda com um estilo sintético e potente, que mescla expressão gráfica e poética. Transitando entre costumes locais, fantasia e experimentação. A formação autodidata de Conxita Herrero, que só começou a se interessar por histórias em quadrinhos aos dezoito anos, permitiu que ela quebrasse os códigos tradicionais do meio, de uma forma quase subversiva. Ela adota a atitude de vanguarda que surge da liberdade de ação daqueles que abordam uma língua a partir das periferias, sem se verem obrigados a respeitar nenhuma tradição. Ainda que a história em quadrinhos ocupe apenas uma pequena parte de um corpus considerável que colocou a poesia, a colagem, o grafismo e as canções a serviço de um discurso de si, que também percorre as páginas de sua fundamental Gran bola de helado.

Miriam Persand um dos aspectos mais marcantes da sua obra é ahabilidade de dar vida a criaturas antropomorfizadas. Seu fascínio por animais como corujas, pombos, ratos e jacarés – especialmente jacarés devido aos nossos "cérebros ansiosos reptilianos" – serve como ponto de partida para abordar emoções complexas. Com seu estilo vibrante trata de problemas cotidianos usando abusando das metáforas. Temas como ansiedade fazem parte dos seus quadrinhos, assim como uma busca para o próprio sentido da vida.  Persand cria histórias que evocam uma sensação de admiração, expandindo os limites do que é esperado no mundo real.

FOTOS DA EXPOSIÇÃO (29/01/2025)







As informações do texto foram retiradas do material fornecido pela exposição, complementado por dados retirados de sites das autoras.


sábado, 19 de julho de 2025

MEUS CLIENTES FANTASMAS: DRAMA DENUNCIA A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO NA COREIA DO SUL

Desde que comecei a me interessar por produções do leste asiático eu tenho tido surpresas principalmente acerca de temas que são tratados nestas produções. Quando assisti W: Entre dois mundos, por exemplo, o tema do suicídio chamou minha atenção. Um tema, que por sinal, é recorrente nas produções sul-coreanas, dos dramas escolares aos históricos. Assim como livros e quadrinhos, estas produções trazem representações da sociedade que compõem o cenário e os roteiros. Humberto Eco já havia afirmado que a ficção se alimenta da realidade e isso é muito perceptível nos k-dramas. 

As questões sociais, tais como violência doméstica, o alcoolismo e o bullying são frequentes, assim como a assédio moral no ambiente de trabalho. Quem nunca assistiu em um k-drama o chefe ofendendo seus subordinados, obrigando-os a irem em jantares e se embebedarem ou mesmo fazendo-os se ajoelhar e mesmo agredindo-os fisicamente? Tais comportamento são adicionados aos enredos por representarem situações cotidianas. As cenas podem ser ficcionais, mas a ações são bem reais.

Mas a questão da exploração do trabalho e de como a legislação trata os direitos trabalhista é algo que nunca havia visto em um k-drama, pelo menos não como um tema central. Lembro-me de alguns episódios em dramas de advogados, mas nada muito aprofundados. Houve ainda o k-drama "Médicos em colapso" (2024), cuja protagonista desenvolveu depressão por conta de abusos que sofreu no ambiente de trabalho, mas sem enfoque na questão dos direitos do trabalhador.

E foi isso que me chamou atenção em "Meus clientes Fantasmas" (2025). Um drama no qual um advogado trabalhista resolve casos se clientes que já morreram e cujas mortes estavam ligadas a desrespeitos à lei e abusos de empregadores. Não é um romance, não espere por cenas clichês ou triângulos amorosos. 

O protagonista é Noh Mu-jin (Jung Kyung-ho), advogado que passa por dificuldades financeiras e é obrigado a se reinventar como advogado trabalhista. Fracassado de muitas formas ele acaba sendo contratado por uma divindade para ajudar fantasmas ressentidos, que morreram de forma injusto por conta do seu trabalho. É um drama trabalhista, que embora tenha uma certa pitada de humor, trata de forma séria casos de desrespeito aos trabalhadores, critica o neoliberalismo e a exploração das grandes empresas.

O drama possuí 10 episódios e trata de diferentes casos envolvendo violação de direitos trabalhistas. Nele temos exploração de jovens, que são obrigados a trabalhar em ambientes insalubres e perigosas, sem a devida proteção, o que os leva a morte; fundiários de uma empresa que morrem durante um incêndio, por falta de segurança e negligência dos empregadores; um enfermeira vitima de assédio moral no trabalho, que desenvolve depressão e tira a própria vida; trabalhadores idosos submetidos a assédio moral para desistiram do trabalho e pedirem demissão. Os casos são variados e, muitas vezes, chocantes.

E nem é preciso pesquisar muito para encontrar dados assustadores sobre o trabalho na Coreia do Sul. Uma das maiores potências do leste asiático, a Coreia do Sul deve muito do seu sucesso econômico ao sangue e suor de seus trabalhadores, literalmente. Pesquisas realizadas na Coreia do Sul indicam que o ambiente de trabalho pode ter influência na saúde metal[1], levando a desenvolvimento de casos graves de depressão e de Síndrome de Burnout[2].

Na Coreia do Sul é comum a jornada de trabalho alcançar 12, 14 horas por dia e os funcionários ainda trabalharem nos finais de semana, sem receber o devido pagamento aditivo por horas extras. Há casos de jovens trabalhadores que morrem por excesso de trabalho.[3]  Há até um nome para isso "gwarosa" (過勞死), um termo coreano que se refere à morte causada por excesso de trabalho, incluindo condições como ataques cardíacos, derrames e problemas de saúde mental. 

Umas categorias mais atingidas pela gwarosa e por acidentes e doenças relativas ao trabalho é a dos entregadores. Durante a pandemia Covid-19, eles foram os mais afetados. Além disso, eles não possuem não são cobertos por leis trabalhistas que garantem benefícios como o pagamento de horas extras, férias e seguro contra acidentes de trabalho, por serem classificados como trabalhadores autônomos.[4]

“De acordo com o Centro para Segurança e Saúde dos trabalhadores, grupo que defende os direitos trabalhistas, o entregador médio na Coreia do Sul trabalha 12 horas por dia, seis dias por semana. E de acordo com dados do governo, o número de ferimentos e acidentes de trabalho subiu 43% no primeiro semestre deste ano.”[5]

A jornada de trabalho extensa tem como uma das consequências o alcoolismo, que acaba engrossando dados relativos à violência doméstica e ao suicídio.

As mulheres estão entre as maiores vitimas de assédio moral e sexual no trabalho. São obrigadas a fazer tarefas que não dizem respeito à seu cargo (muitas vezes tarefas domésticas) por imposição de seus chefes. Por serem mulheres são muitas vezes ignoradas quando participam de reuniões e poucas delas conseguem conquistar cargos de direção. “As mulheres ocupam apenas 5,8% dos cargos executivos nas empresas de capital aberto da Coreia do Sul”. [6]

Um relatório do Human Rights Watch referente a 2023 denuncia o fato do governo da Coreia do Sul não ter retificado a Convenção nº 190, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exige que os Estados ratificantes implementem medidas para pôr fim ao assédio e à violência no local de trabalho.[7] Ou seja, apenas se haver recursos para denúncias não há de fato ações eficazes para acabar com o assédio no local de trabalho e a violência, seja ela moral ou física, ainda se reproduz.

Outra questão importante é a exploração do trabalho análogo à escravidão na Coreia do Sul. Entre os trabalhadores mais explorados estão imigrantes, das Filipinas, do Nepal, Vietnã, Mongólia, Laos, Camboja, Uzbequistão e Tailândia.[8] Os trabalhadores são atraídos por ofertas de empregos e acabam sendo submetidos a todo tipo de exploração. Eles são o recuso que empresas encontram pra suprir a falta de mão de obra num país que envelhece rapidamente e cuja taxa de natalidade é superada pela de mortalidade.


[1] SILVA, Alanessa Nikole Carvalho da . Os abusos no ambiente de trabalho e suas representações em obras sul-coreanas (2024). Disponível em: https://sites.ufpe.br/cea/2024/06/27/artigo-de-opiniao-os-abusos-no-ambiente-de-trabalho-e-suas-representacoes-em-obras-sul-coreanas/. Acesso em 19 jul. 2025.

[2] Um distúrbio emocional caracterizado por exaustão extrema, estresse e esgotamento físico, resultante de situações de trabalho desgastantes e de alta pressão

[3] GOMES, Amanda. Violação de leis trabalhistas na Coreia do Sul (2017). Disponível em: https://www.brasileiraspelomundo.com/leis-trabalhistas-na-coreia-do-sul-361460307. Acesso em 19 jul. 2025.

[4] Entregadores na Coreia do Sul morrem por excesso de trabalho (2020). Disponível em: https://olhardigital.com.br/2020/12/15/noticias/entregadores-na-coreia-do-sul-estao-morrendo-por-excesso-de-trabalho/. Acesso em 19 jul. 2025.

[5] Entregadores na Coreia do Sul morrem por excesso de trabalho (2020). Disponível em: https://olhardigital.com.br/2020/12/15/noticias/entregadores-na-coreia-do-sul-estao-morrendo-por-excesso-de-trabalho/. Acesso em 19 jul. 2025.

[6] MACKENZIE, Jean. “MEU chefe me mandou lavar toalhas dos meus colegas homens”: o machismo na Coreia do Sul (2022). Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63994873. Acesso em 19 jul. 2025.

[7] HUMAN Rights Watch World Report 2023. Disponível em: hrw.org/world-report/2023/country-chapters/south-korea. Acesso em 19 jul. 2025.

[8] RAMOS, Mariejo. Coreia do Sul é acusada de escravidão moderna com esquema de trabalhadores sazonais (2024). Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/coreia-do-sul-e-acusada-de-escravidao-moderna-com-esquema-de-trabalhadores-sazonais,4d0484e1240837351d7ab258f7a61f60ht9cluvi.html?utm_source=clipboard. Acesso em 19 jul. 2025.


domingo, 27 de abril de 2025

CEMITÉRIO: REFLEXÕES SOBRE FEMINICÍDIO

 


Uma surpresa que a Netflix trouxe para mim este mês foi a série turca "Cemitério (Graveyard)". Minha primeira série turca por sinal.  A série tem duas temporadas e foi originalmente lançada em 2022. A primeira temporada tem 4 episódios, com uma média de uma hora e meia cada. A segunda em 8 episódios com uma média de 45 minutos cada. A série mostra o trabalho da Unidade de Crimes especiais liderada pela inspetora chefe Önem Özülkü, interpretada pela fantástica atriz Birce Akalay . A unidade da polícia turca foi criada como resposta ao aumento dos crimes de feminicídio. Já de início percebe-se que sua criação foi um ato político e que não se espera muito dela nem dos seus membros. Na verdade, há quem preveja seu fracasso.  Isso porque  os problemas que eles têm que enfrentar não se resumem apenas em investigar crimes de feminicídio e capturar os criminosos. Eles também lidam com o machismo estrutural da sociedade turca, que é constantemente denunciado em cada episódio da série.

Aliás, o próprio nome da séria conduz a várias questões. A Unidade de Crimes Especiais foi instalada no porão do prédio e obrigada a operar junto ao arquivo de crimes não solucionados. O local recebe o nome de “Cemitério” e, o que no início é visto como algo pejorativo, depois acaba ganhando um simbolismo maior, representando a luta da equipe para impedir que crimes contra as mulheres façam parte dos “casos não solucionados”. Eles passam, inclusive, a se autointitular equipe do “Cemitério”, para horror de seus superiores.

Eu, particularmente, sei muito pouco sobre a Turquia e nunca parei imaginar que em um país islamizado, e aí peço desculpas pelo meu preconceito, as mulheres tivessem espaço não apenas para denunciar na televisão, como é o caso da série, a violência e, menos ainda, que houvesse um movimento atuante que busca ações concretas contra o feminicídio no país. Neste ponto devo agradecer à Netflix que me vez pesquisar o tema. Uma das primeiras coisas que eu descobri é que a  Turquia é um estado secular, sem religião oficial, apesar da maioria se mulçumana, e lá vigora a liberdade religiosa.  No entanto, o partido atual no poder, é islâmico e vem sendo constantemente acusado por sua inércia e tolerância com relação à violência contra as mulheres. Além disso elas ainda possuem baixa representatividade política. O Parlamento Turco possui maioria de homens – nas últimas eleições, em 2023, 121 mulheres garantiram assento no parlamento com 600 membros

A série não aborda diretamente questões religiosas. Ela foca na violência contra a mulher de forma indistinta e que leva à sua morte. Namorados e maridos violentos, pais omissos. Casos de abusos de jovens por parentes próximos são denunciados também. Ao investigar um caso de feminicídio, os policiais trazem a toda uma séria de violências e gênero que perpassaram a vida da vítima e de pessoas próximas a ela. E material para isso não falta.

Só em 2024 foram registrados 394 casos de mulheres assassinadas por homens e mais 259 mulheres foram encontradas mortas de forma suspeita. Estes números foram considerados recordes e apontam para aumento progressivo da violência contra as mulheres na Turquia. Segundo os dados da  We Will Stop Femicide Platform (Vamos acabar com o feminicídio), entre as principais causas do aumento de crimes de morte contras as mulheres esta “a falta de implementação efetiva da Lei de Proteção nº 6284, a retórica misógina e anti-criança, a participação de grupos reacionários e intolerantes no poder e a inadequação das políticas para as mulheres”. [1] A impunidade também é apontada como uma das razões. 

“A Plataforma "Vamos Acabar com o Feminicídio", também conhecida ela sigla KCDP, relatou que 3.185 mulheres foram mortas por homens entre 2008 e 2019, e pelo menos 1.499 entre 2020 e setembro de 2024, com o número de feminicídios aumentando a cada ano. As mortes de cerca de 1.030 mulheres também foram consideradas suspeitas.

"Mais de 1,4 milhão de mulheres relataram ter sofrido violência doméstica entre janeiro de 2013 e julho de 2024, informou o site de notícias Turkish Minute , citando dados recebidos do Ministério da Família e Serviços Sociais pelo jornal diário Birgün. (Texto traduzido)”[2]

Vários protestos de mulheres exigindo uma reação mais forte do governo, organizadas pela We Will Stop Femicide Platform, ocorreram em 2024, que foi considerado o ano das Jovens Feministas na Turquia. A Federação de Jovens Feministas organizou seminários em muitas universidades e desenvolveram políticas para lidar com os problemas das mulheres jovens.


Protestos em outubro de 2024, na Turquia.

A questão da impunidade é um dos maiores ranços da protagonista da série, a inspetora chefe Önem Özülkü, que constantemente se revolta com as penas leves dadas a assassino de mulheres.  Outra razão é o discurso que aponta as mulheres como a causa dos feminicídios e dizem: “As mulheres que são mortas são tão culpadas quanto os homens que as matam”. Há ainda aquele pensamento de que as mulheres são também culpadas pela sua própria morte. Este discurso apareceu em um dos episódios da série e que foi duramente refutado com excelentes argumentos e uma boa dose de revolta por parte dos policiais. Uma realidade, por sinal, não muito diferente do Brasil onde a vítima na maioria das vezes é culpabilizada pela violência que sofre.

As mortes correm principalmente dentro dos lares e as vitima são esposas e filhas, “Em 2024, 280 mulheres foram mortas pelo homem com quem eram casadas, pelo pai, filho ou parente”. E o alvo não tem sido apenas mulheres adultas e adolescentes.  Em 2024, 19 meninas foram assassinadas pelos pais e 9 delas foram assassinadas junto com suas mães”.[3] Quanto ao governo, ele vê estes casos como problemas no âmbito familiar e promove ações para proteção a família, como um todo, e não de proteção para as mulheres, o que agrava muito mais a situação e acaba aumentando a impunidade. E assim como acontece aqui no Brasil, a legislação criada para proteger as mulheres encontra muitos obstáculos. Em 2024, 20 mulheres que estavam sob proteção policial foram assassinadas. Não é à toa que a Turquia está entre os piores países do mundo em violência contra as mulheres. 

Eu poderia escrever muito mais o assunto, mas vou retomar à serie pois não posso deixar de falar sobre a Birce Akalay, que encarna a protagonista.  A forma como ela desenvolve a personagem é perfeita. Fiz uma busca para saber mais sobre ela e o que descobri ratificou a primeira impressão que ela me passou. De aspirante a Miss Turquia a professora no departamento de teatro da Universidade Haliç, ela ainda se dedica a causas sociais, é meioambientalista e defensora  dos direitos das mulheres, sendo ainda Embaixadora da Bondade e Esperança da LÖSEV, instituição sem fins lucrativos dedicada a crianças com leucemia. Ninguém melhor para encarnar a inspetora chefe Önem Özülkü.[4]

Para finalizar gostaria de deixar aqui o trecho de um artigo sobre feminicídio na Turquia que trabalha este conceito.

“O conceito de feminicídio, usado já na década de 1800 para se referir ao assassinato de uma mulher, foi reintroduzido por Radford em 1976 no Tribunal de Crimes Contra as Mulheres como o assassinato misógino de mulheres por homens. Na década de 1970, o conceito de feminicídio se tornou popular e foi modificado pelo movimento feminista em um conceito político. O movimento feminista insistiu na dimensão sexista do homicídio feminino, em contraste com o termo neutro "homicídio". O discurso do feminicídio representa um "objetivo político de reconhecer e tornar visível a discriminação, a opressão, a desigualdade e a violência contra as mulheres sistemática que, em sua forma mais extrema, culmina na morte". As definições de feminicídio e violência contra as mulheres apresentam “características compartilhadas” . Ambas estão enraizadas em uma cultura de “violência e discriminação contra as mulheres”, bem como “em conceitos patriarcais de inferioridade e subordinação das mulheres. Essas características são construídas por meio da cultura, mentalidades e costumes e não são casos aleatórios de violência”. [5]



[1] We Will Stop Femicides Platform 2024 Annual Report. Disponível em> https://kadincinayetlerinidurduracagiz.net/veriler/3130/we-will-stop-femicides-platform-2024-annual-report. Acesso em 27 de mai. 2025.

[2] ECHOLS, William. Turkey's ruling party uses misinformation to downplay scope of femicide (2024). Disponível em: https://www.voanews.com/a/turkey-s-ruling-party-uses-misinformation-to-downplay-scope-of-femicide-/7826624.html. Acesso em 27 de mai. 2025.

[3] We Will Stop Femicides Platform 2024 Annual Report. Disponível em> https://kadincinayetlerinidurduracagiz.net/veriler/3130/we-will-stop-femicides-platform-2024-annual-report. Acesso em 27 de mai. 2025.

[4] Birce Akalay . Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Birce_Akalay. Acesso em 27 de mai. 2025.

[5] Traduzido e adaptado de Koç, G. (2022). A Study of Femicide in Turkey From 2010 to 2017. SAGE Open12(3). https://doi.org/10.1177/21582440221119831 (Original work published 2022)